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quarta-feira, 13 de agosto de 2025

O Eco do Mera sob o Sol do Brasil

 


O Eco do Mera sob o Sol do Brasil


O rio Mera, em seu curso rápido pelas encostas íngremes da Val Chiavenna, carregava mais do que a neve derretida das montanhas: levava histórias de resistência e saudade. À sua sombra nasceu, em 1869, Elisabetta Vassalli, filha de um pedreiro que passara temporadas longe, trabalhando nas obras ferroviárias da Lombardia, e de uma mãe que mantinha o lar aquecido com o tecer incessante de lã e linho.

A vida no vale era medida pelo som dos cascos dos mulos que desciam trazendo farinha e pelo murmúrio constante das águas geladas batendo nas pedras. Foi ali que Elisabetta cresceu, entre invernos longos e verões curtos, até se casar, em 1891, com Lorenzo Cantù, agricultor de poucas posses, descendente de uma família que vira suas terras minguarem geração após geração.

A partir do início da década de 1890, cartas amareladas vindas de parentes instalados no Brasil começaram a chegar ao vale, percorrendo um longo caminho de navios, trens e mensageiros até repousarem sobre a mesa da cozinha. Eram escritas com caligrafia apressada, às vezes manchadas por gotas de suor, terra ou borrões de tinta, e traziam descrições de lugares que pareciam extraídos de um sonho distante. Falavam de lavouras de café que se estendiam até onde a vista alcançava, de canaviais ondulando sob um sol constante, de pássaros de plumagem cintilante e de uma natureza tão abundante que, segundo diziam, uma semente lançada ao solo brotava em poucos dias.

Mas o conteúdo mais marcante não estava nas imagens idílicas, e sim na promessa velada que corria por entre as linhas: havia trabalho para quem tivesse força nos braços e disposição para suportar um clima que nunca conhecia o frio cortante do inverno alpino. O nome Piracicaba repetia-se nas cartas como um refrão hipnótico, carregado de possibilidades. Para Lorenzo, evocava a imagem de rios largos e caudalosos, capazes de alimentar plantações inteiras; para Elisabetta, soava como um antídoto contra as geadas súbitas que, no vale do Mera, podiam transformar uma lavoura saudável em um campo de hastes negras durante uma única noite.

Essas cartas, lidas e relidas à luz trêmula do lampião, plantaram no casal uma inquietação silenciosa. Cada relato parecia corroer, pouco a pouco, as raízes que os prendiam àquela terra pedregosa e imprevisível, até que a ideia de partir deixou de ser apenas uma possibilidade e começou a ganhar a força de um destino inevitável.

No inverno de 1895, depois de venderem quase tudo que possuíam e empenharem o pouco que restara, Elisabetta e Lorenzo deixaram a Val Chiavenna. Desceram até Gênova em vagões frios e lotados, embarcando num vapor misto que cruzaria o Atlântico. A travessia foi marcada pelo balanço incessante, pelo cheiro de carvão queimado e por noites abafadas nos porões da terceira classe. Para quem viera do ar rarefeito das montanhas, o calor do oceano parecia quase irrespirável.

A chegada ao Porto de Santos trouxe um impacto imediato: umidade espessa, aroma de sal misturado a frutas maduras e uma língua que soava como um turbilhão de sons desconhecidos. Do cais, foram conduzidos junto a outros recém-chegados para a Hospedaria dos Imigrantes, em São Paulo, um vasto edifício de tijolos que parecia uma fortaleza, mas cuja função era acolher. Ali, os corredores ressoavam com um mosaico de idiomas — dialetos italianos, espanhol, português, húngaro, alemão, até murmúrios em línguas eslavas — formando uma música estranha que acompanhava cada passo.

As longas mesas do refeitório se enchiam de homens e mulheres de diferentes nacionalidades, partilhando pratos simples de arroz, feijão, carne e pão, que para alguns era novidade e para outros um sabor de casa distante. As crianças, curiosas, exploravam os pátios internos, correndo entre malas de couro e baús de madeira marcados com nomes e destinos. A cada refeição, a sensação de exaustão cedida pela travessia marítima começava a dar lugar a um alívio cauteloso: estavam em terra firme, sob um teto seguro, com alimento garantido e a promessa de trabalho à frente.

Nos dormitórios coletivos, beliches de ferro alinhados lado a lado recebiam famílias inteiras. As noites eram interrompidas por tosses, choros de bebês e conversas sussurradas até tarde, mas havia também um clima de solidariedade improvisada — um empréstimo de coberta, um pedaço de pão repartido, uma tradução improvisada para quem não compreendia as ordens dos funcionários.

Lá permaneceram por alguns dias, tempo suficiente para que o cansaço se diluísse e para que a esperança se infiltrasse de novo nos gestos. Quando chegou a hora de partir, embarcando novamente em outro trem rumo ao interior, Elisabetta e Lorenzo deixaram a hospedaria com a impressão de terem passado por um ponto de cruzamento invisível: o último abrigo do velho mundo antes de entrarem, de fato, no novo.

O destino final foi uma fazenda nas proximidades de Piracicaba. Lorenzo, acostumado ao arado de madeira, precisou aprender o manejo rápido da foice na colheita da cana. O sol tropical castigava a pele clara e fazia arder cada movimento. Elisabetta, além de cuidar da alimentação dos empregados da fazenda, dedicou-se a um pequeno canteiro ao lado da casa de madeira, onde cultivava ervas trazidas do vale: alecrim, sálvia, basílico. Esses aromas, libertos no ar quente da tarde, eram seu último vínculo sensorial com o lugar de origem.

As estações no interior paulista se sucediam com violência: chuvas torrenciais que arrastavam o solo, seguidas por estiagens que rachavam a terra. Lorenzo guardava moedas com o objetivo de adquirir um pedaço próprio, mas o custo era alto. A vida seguia num compasso de trabalho exaustivo e paciência.

Em 1901, após seis anos de economia rígida e de incontáveis sacrifícios, conseguiram finalmente comprar um pequeno sítio. Não era a terra fértil e macia dos sonhos, mas um chão exausto de colheitas passadas, marcado por sulcos antigos e pedras que afloravam sob o sol. Ainda assim, pertencia a eles, e isso bastava para transformá-lo no território da esperança.

Entre os limites irregulares da propriedade, alguns pés de café sobreviviam, retorcidos pelo tempo e com folhas de um verde opaco, como se esperassem uma nova chance de frutificar. Havia também um pomar esquecido, onde árvores mal podadas guardavam frutos pequenos e ásperos, mas cujo perfume se espalhava pelo ar nas primeiras horas da manhã. No quintal mais próximo da casa, Elisabetta iniciou, quase de imediato, a construção de sua horta. Revirou a terra endurecida com as próprias mãos, misturou cinzas de fogão à lenha, plantou sementes guardadas com cuidado desde a travessia e, pouco a pouco, ergueu um refúgio verde que se tornaria sua marca.

A cana, cultivada nas faixas mais ensolaradas, era cortada e vendida para um engenho próximo. Nos dias de moagem, o ronco cadenciado das moendas ecoava pelo vale, misturando-se ao cheiro adocicado da garapa quente que impregnava o ar e atraía nuvens preguiçosas de abelhas. O sítio, ainda modesto, começou a pulsar como um organismo vivo: cada nova folha que brotava e cada saca vendida eram sinais de que, mesmo num solo cansado, havia futuro a ser colhido. O tempo trouxe perdas silenciosas: a morte de um filho, de vizinhos levados pela febre amarela, enchentes que invadiam a lavoura, secas que queimavam folhas e esperanças. Mas também trouxe raízes. Elisabetta nunca dominou totalmente o português, mas aprendeu a entender o gesto das vizinhas, a forma como penduravam roupas, como rezavam nas procissões e como conservavam frutas em compotas que lembravam as da sua infância.

O casal envelheceu vendo a terra dar frutos e falhar, mas sempre recomeçando. Do rio Mera, restava apenas uma lembrança fria e sonora, que às vezes parecia ecoar no ruído do rio Piracicaba nas cheias. Nunca voltaram à Itália. A data exata de suas mortes perdeu-se nas páginas do tempo, mas ainda hoje, num ponto discreto de terra perto de Piracicaba, há quem mostre uma antiga parreira e diga que ela nasceu nas montanhas da Lombardia, trazida por uma mulher que atravessou o oceano para criar raízes onde o sol era mais forte que a neve.

Nota do Autor

Esta narrativa nasceu do desejo de resgatar um fragmento esquecido da experiência imigrante, dando voz a homens e mulheres que trocaram o conhecido pela incerteza, movidos apenas pela esperança de um futuro menos árido. A história que o leitor tem em mãos é ficcional, mas profundamente ancorada em fatos, cenários e testemunhos reais do final do século XIX e início do XX, quando milhares de famílias italianas, empobrecidas e pressionadas pelas crises agrícolas e sociais da Europa, embarcaram rumo ao Brasil.

O fio condutor desta história acompanha uma família que deixa o vale alpino para enfrentar a travessia marítima, o choque cultural, a adaptação ao clima tropical e a árdua conquista da terra própria. Piracicaba, com seus rios largos e solos quentes, foi escolhida como cenário não por acaso: foi um dos destinos que mais recebeu imigrantes, e cuja paisagem ainda guarda marcas da época em que as colônias agrícolas floresciam.

Escrevi esta história não apenas para reconstruir um percurso individual, mas para que os descendentes — e todos aqueles que se reconhecem no gesto de partir — possam enxergar, nas linhas e entrelinhas, um pedaço de si. É um tributo à coragem silenciosa, ao trabalho persistente e à fé obstinada de quem construiu, com suor e raízes, um novo lar num continente distante.

Dr. Piazzetta