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quarta-feira, 11 de junho de 2025

A Carta de um Emigrante

 


A Carta de um Emigrante

Um romance de esperança, terra e destino.


Capítulo I — A Voz de Deus no Vento

Quando Alessandro Bellarossi escreveu à família de Cismon, não o fez apenas com a pena — mas com a alma inteira. Cada palavra daquela carta parecia gotejar suor, esperança e o eco de uma travessia ainda recente. Mais do que uma mensagem, era um testamento de fé: a promessa sul-americana não era mito, era chão — e ele já o havia pisado. Vinte dias antes, com a mulher Annetta e os três filhos ao lado, Alessandro finalmente tocara a terra escura e úmida da Colônia Dona Isabel, aninhada nas brumas altas do Rio das Antas, onde a mata parecia antiga como a própria criação.

Ele viera de um lugar onde os vales mal respiravam entre as rochas dos pré Alpes Vênetos — um vilarejo modesto e esmagado pela indiferença do tempo e a ganância dos senhores da terra. Ali, mesmo depois da unificação da Itália, a liberdade seguia sendo apenas uma palavra dita em voz baixa, nas esquinas. Os ricos ganharam bandeiras e exércitos. Os pobres, dívidas, fome — e filhos demais para alimentar.

A travessia não foi apenas uma viagem: foi um corte profundo entre dois mundos. O Vapor Roma, abarrotado de camponeses, zarpou de Gênova como um navio de promessas — mas flutuava sobre um oceano de incertezas. Na segunda semana, o cheiro de corpos e medo era mais forte que o sal do mar. Morreram quatro crianças e duas mães. As preces sussurradas à noite misturavam-se aos lamentos abafados nas redes, enquanto o balanço do casco lembrava a todos que a terra firme era um privilégio distante.

Mas Alessandro não se deixava vencer. Alimentava a família com pão duro e coragem. E, quando avistou os primeiros pinheiros, altos como campanários e mergulhados em névoa, soube, com uma clareza que tocava o fundo da alma, que tinha chegado. Não a um fim — mas a um começo.

Foi então que se recordou das palavras do velho padre Giustino, ditas numa manhã fria, antes da partida:

— “Às vezes, a voz de Deus sopra do Sul.”

E naquele instante, entre a cerração da serra gaúcha e os gritos dos homens abrindo picadas na mata com machados rombudos, Alessandro ouviu essa voz. Não era alta, nem miraculosa. Mas era clara. E dizia, simplesmente: "Fique. Aqui se planta o destino."

Capítulo II — Terra Prometida

Colônia Dona Isabel ainda era um esboço de civilização — uma fronteira onde tudo estava por fazer. Clareiras abertas à machadada rasgavam a mata como feridas frescas. Os caminhos eram lamaçais trêmulos, moldados pelas rodas de carroças e pelas botas de imigrantes. A terra, embora selvagem, era deles. Pela primeira vez na vida, Alessandro podia chamar um pedaço do mundo de seu.

Cem hectares por família. Um sonho inimaginável nas colinas magras do Vêneto. E agora, ali, entre troncos de araucária e o sussurro distante de bugios, ele e os outros colonos erguiam casas com os próprios braços. Cada tábua pregada era uma oração. Cada parede, um escudo contra o medo do desconhecido. A farinha era feita moendo milho em pedras improvisadas. O pão tinha gosto de suor, mas também de liberdade.

A carta que Alessandro escrevera ao pai, semanas antes, começava com entusiasmo quase infantil:

"Bella posizione, terra fertile, aria sana, e il governo ci assiste."

E pela primeira vez na vida, ele não exagerava. O Império do Brasil, ansioso por povoar o sul, fornecia sementes, ferramentas rudimentares, bois magros, e o mais precioso de todos os recursos: tempo. Nove meses de auxílio antes que a terra exigisse resposta. Nove meses para transformar selva em lavoura, barracos em lar. Era pouco, mas era algo. Era mais do que a pátria lhes dera em séculos.

Lucia, sua esposa, começava a sorrir de novo — ainda tímida, como quem teme a própria esperança. Os pés estavam sempre cobertos de lama até os tornozelos, os dedos inchados de tanto lavar e carregar, mas os olhos… os olhos haviam reencontrado o brilho que ela tivera no altar de Cismon. Havia algo na mata, talvez o ar espesso da manhã, que lhe dava ânimo. Talvez fosse o silêncio sem fome.

Matteo e Elvira, seus dois mais velhos, corriam pelos campos como animais livres. Exploravam o novo mundo como se fosse um quintal de infância eterna, sem muros nem limites. Criavam cabanas com galhos e imitavam o som dos tropeiros. Chamavam os vizinhos alemães de “gigantes loiros” e riam com sotaques misturados. Elvira falava de plantar flores silvestres. Matteo, de construir uma roda d’água.

Até o pequeno Paolo, nascido na travessia em meio ao cheiro de sal, enjoo e orações sufocadas, parecia já parte da terra. Tinha os pulmões fortes, os olhos atentos — e as mãos cerradas como se segurassem já, com teimosia, as raízes daquele novo mundo.

À noite, quando o fogo de lenha aquecia o chão de terra batida e o vento das araucárias sussurrava entre as frestas da madeira crua, Alessandro olhava ao redor e pensava: 

"Não é o paraíso. Mas é um começo. E o começo, às vezes, é mais sagrado que o fim."

Capítulo III — Giacomo e o Barro de Sangue

Chegou ao entardecer, quando o sol se escondia lento por trás das cristas da Serra e o céu se tingia de cobre e vinho. A carroça improvisada descia aos solavancos o trilho escavado no barro, puxada por dois bois magros e coberta por uma lona manchada de sal e tempo. Em cima, com os olhos cavados pela travessia e a barba crescida até o peito, vinha Giacomo Bellarossi, o irmão mais novo de Alessandro.

Lucia foi a primeira a vê-lo, aparando água com um balde no córrego. Correu. E gritou. Os filhos vieram atrás, descalços e sujos, como cães de matilha reencontrando o dono ausente. Alessandro largou o machado onde estava e caminhou, ainda incrédulo, até o irmão.

Abraçaram-se em silêncio por longos minutos. O abraço dos que carregam a mesma cruz e a mesma fé — a fé de que o outro não teria vindo se o destino ainda fosse incerto. Mas os olhos de Giacomo não brilhavam. Não como os de quem encontrou paz, mas como os de quem fugiu de uma guerra.

“Cismon está mais vazio, Sandro. E mais velho. O padre faleceu. Mamma ficou. 
Disse que o coração dela não atravessaria o mar... e talvez tenha razão.

— “Você vem por esperança... ou por desespero?

— “Qual a diferença?”

Instalaram-no na pequena cabana de tábuas atrás da casa principal. Na primeira semana, Giacomo pouco falava. Ajudava no que podia — cerrava madeira, cavava valas, cuidava das crianças quando Lucia precisava ir ao rio. Mas havia nos seus gestos uma tensão dura, como se esperasse o chão desabar a cada passo.

E então veio o dia da desgraça.

Foi numa manhã encharcada de neblina, quando Giacomo seguiu com Matteo ao campo mais baixo, junto ao limite da propriedade, para levantar cercas. Um grupo de colonos vizinhos, de origem alemã, trabalhava do outro lado da linha marcada. Houve palavras. Depois, gritos. Depois, o som seco de um murro.

Matteo voltou correndo, aos prantos, coberto de lama e sangue. Giacomo havia sido golpeado na cabeça com um pedaço de madeira. Estava caído no barro, imóvel, o rosto desfigurado por um corte profundo na testa. Os vizinhos diziam que ele avançara primeiro. Que fora tomado por um acesso de fúria.

— “Disse que a terra era nossa, que o marco estava errado. Xingou o nome de Deus. Depois pegou o facão...”

Alessandro chegou a tempo de impedir o linchamento. Levou o irmão de volta arrastado, enquanto Lucia gritava ordens e Elvira corria buscar água quente. Paolo berrava no berço, sem entender o caos.

Durante três dias, Giacomo ficou entre a febre e a sombra da morte. Delirava em italiano, murmurava o nome da mãe, contava os filhos que não teve. Alessandro não saiu do seu lado. Lucia rezava.

Na noite do quarto dia, quando os grilos voltaram a cantar, ele abriu os olhos.

“Tanta terra, Sandro… e ainda assim… brigamos por um palmo.”

— “Talvez não seja a terra, Giacomo. Talvez ainda carreguemos dentro de nós as correntes de onde viemos.

Foi então que ambos entenderam: a terra era fértil, sim. Mas também selvagem. E o sangue, uma semente que não podiam deixar brotar. 

Capítulo IV — O Arado e a Promessa

A cicatriz na testa de Giacomo não desapareceu. Tornou-se uma linha torta e roxa, cruzando a sobrancelha como um lembrete gravado a ferro: até mesmo a terra prometida exige sangue em troca de paz.

Nos dias seguintes à briga, Alessandro reuniu os vizinhos — italianos, alemães e alguns poucos luso-brasileiros — sob o velho galpão do coronel Gasparini, o administrador da colônia. Era preciso mais que madeira e barro para se construir um povoado. Era preciso estabelecer respeito, regras simples, e sobretudo, confiança.

— “Ninguém veio do outro lado do oceano pra começar outra guerra aqui,” disse Alessandro, de pé sobre um caixote, a voz rouca e carregada de sotaque. “Viemos pra construir algo que nossos filhos não precisarão fugir pra encontrar.

Não houve aplausos. Apenas acenos de cabeça. Mas no dia seguinte, o colono Hans Jäger — o mesmo que ameaçara Giacomo — deixou na varanda dos Bellarossi uma cesta com pão preto e um saco de sementes de centeio.

Na lavoura, o barro começou a se transformar em sulcos. O arado emprestado dos franceses da colônia vizinha gemia atrás dos bois, abrindo veias na terra escura. Giacomo, com a cabeça coberta por um chapéu velho de aba larga, era o primeiro a erguer-se com o sol e o último a largar a enxada. Como se tentasse redimir-se diante dos deuses da nova terra.

Lucia cuidava da roça de feijão e das galinhas, e ainda encontrava tempo para ensinar Elvira a ler, usando um velho catecismo que trouxera escondido entre as roupas da travessia. Matteo crescia rápido, com os ombros já duros como madeira. Paolo aprendia a andar sobre a terra batida da varanda, tropeçando nos degraus de tábua e rindo como se o mundo fosse apenas aquilo: sol, milho, e o cheiro da mãe.

No final do outono, antes que os ventos frios cortassem a serra como lâminas, veio a primeira colheita. Pequena, modesta. Mas deles. Os sacos de milho e batata-doce foram levados ao galpão comum, onde uma tábua improvisada de madeira servia de altar para os agradecimentos. O padre Celestino, recém-chegado de Caxias, celebrou uma missa ao ar livre, sob uma cruz cravada entre dois pinheiros bravos.

“A terra é dura, meus filhos. Mas é virgem. E como todas as virgens, precisa de paciência, cuidado... e fé,” disse ele, enquanto o vento soprava entre as tábuas do telhado ainda inacabado.

Naquela noite, houve música. Um velho violino, duas gaitas e vozes roucas cantando canções do Vêneto. Os risos ecoaram pela mata. Pela primeira vez desde que cruzaram o oceano, os Bellarossi se permitiram dançar. Mesmo Giacomo. Sob as estrelas, com um copo de vinho ácido nas mãos e as calças sujas de terra, ele olhava para o céu como se pedisse perdão por ter duvidado.

Foi nesse momento que Alessandro pegou uma estaca, gravou nela o nome da família — "Bellarossi, 1888" — e a cravou junto à entrada do terreno.

Era mais que um marco de posse.

Era uma promessa.

Capítulo V — A Sombra na Serra

O inverno chegou silencioso, como um cão de caça espreitando ao longe. Nas encostas da Serra Gaúcha, o frio descia pelas árvores como uma névoa viva, cobrindo as plantações com um véu de orvalho gelado e apertando os ossos dos mais velhos como um torno invisível.

O milho secava antes do tempo. O feijão apodrecia na palha. E os bois, que antes eram músculos em movimento, agora mirravam as costelas sob a pele como esqueletos ambulantes.

Lucia acordava tossindo, enrolada num xale remendado com linha de tear. Paolo — que mal começara a andar — tinha febres noturnas. Alessandro cavava valas para escoar a água que se acumulava no terreno, mas era como tentar esvaziar o oceano com uma colher. E quando a comida começou a faltar nas mesas dos vizinhos, a sombra mais temida se insinuou pelas frestas das janelas: a dúvida.

“E se a promessa for mentira?” cochichavam alguns nas reuniões noturnas.

“E se o imperador nos abandonou como fizeram os senhores da Itália?”

E então, chegaram os rumores.

Diziam que em Porto Alegre o Império tremia. Que os abolicionistas exigiam o fim do trabalho escravo, e que os fazendeiros, temendo perder a mão-de-obra, olhavam com desconfiança para os imigrantes livres que agora recebiam terras e apoio do governo.

A tensão subia como a fumaça dos fogões a lenha. Alessandro sentia no ar: algo estava por vir.

Na segunda semana de julho, Gasparini — o velho administrador da colônia — apareceu a cavalo, encharcado e com o rosto mais branco que as neves do Vêneto. Trazia más notícias: os auxílios seriam suspensos.

“A ordem veio da Corte. Dizem que o erário está seco. Que é preciso cortar as despesas nas colônias.”

O silêncio que se seguiu à frase pesava mais que o frio que entrava pela porta escancarada do galpão.

“Mas e os nove meses de ajuda prometidos?” perguntou um dos colonos alemães, franzindo a testa.

Gasparini não respondeu. Apenas puxou o capote e saiu. Os cascos do cavalo sumiram no barro como se a notícia quisesse se esconder.

Lucia apertou a mão de Alessandro. Ele não disse nada. Apenas olhou para os filhos, que brincavam com gravetos perto do fogo.

Foi naquela noite, depois que todos dormiram, que ele tomou uma decisão.

No silêncio da cozinha, sob a lamparina a óleo, puxou o velho caderno de anotações que trouxera da Itália — a única herança do pai. Ali, entre receitas de vinho e contas de colheitas, ele começou a rascunhar um plano. Não um plano para resistir. Mas para prosperar, mesmo sem o Império, mesmo sem promessas.

Ele escreveria aos parentes que ainda estavam na Itália. Mandaria sementes, relatos, fotografias. Organizaria uma cooperativa rudimentar com os vizinhos, para que os que colhessem mais sustentassem os que colhessem menos.

“A terra nos quer aqui,” murmurou ele para si mesmo, como se confessasse um segredo à noite.

No dia seguinte, reuniu dez homens no campo aberto atrás da capela. Era o começo de uma nova fase: sobrevivência pela união. Estavam sozinhos agora. Mas não impotentes.

Na entrada da casa, Giacomo afiava uma enxada. As faíscas saltavam como vagalumes no fim da tarde. Matteo, já com treze anos, construía uma armadilha para tatus com madeira de galhos. E Elvira, entremeando letras no chão com um graveto, começava a escrever o nome da mãe.

Lucia, olhando tudo da janela, apertou Paolo contra o peito e sussurrou:

“A sombra pode até vir, mas nós... somos feitos de luz.”

Capítulo VI — Fumaça na Capela

O sino da capela soou três vezes — um toque lento, fúnebre, que não anunciava missa, mas luto.

A fumaça ainda dançava entre os pinheiros quando Alessandro chegou, o coração aos pulos e a enxada nos ombros. A capela de madeira, erguida com doações e esforço coletivo, estava parcialmente queimada. Não fora consumida por completo, mas o altar estava negro de fuligem, os bancos enegrecidos, e a imagem da Virgem havia caído, rosto rachado, olhos voltados ao chão.

Padre Giustino, pálido e ofegante, caminhava em círculos diante da porta semiaberta. Ao seu lado, Giacomo cerrava os punhos com tanta força que os nós dos dedos pareciam ossos de vidro.

“Cheguei cedo para rezar a missa… e encontrei isso.”

Alessandro passou a mão pelo rosto. Havia um cheiro agridoce no ar — madeira queimada misturada ao óleo das velas e algo mais: ódio.

“Foi fogo posto?” perguntou, sem rodeios.

Giacomo respondeu por entre os dentes:

“Não foi o acaso que acendeu esse inferno.”

Naquela noite, a colônia inteira se reuniu sob o galpão dos Brandt — os primeiros alemães que chegaram ali antes mesmo dos italianos. Havia tensão nos olhos, medo nos murmúrios e uma pergunta que atravessava todos os silêncios: quem faria isso... e por quê?

Padre Giustino levantou-se.

“Estamos sendo vigiados. Há gente que não nos quer aqui. Nem os nossos cultos, nem nossas escolas. Muito menos nosso progresso.”

Gasparini, o administrador, chegou tarde, com dois soldados brasileiros a cavalo e um olhar incomodado. Tentou acalmar os ânimos com promessas: o governo investigaria, a segurança seria reforçada, nada justificava atos de vandalismo. Mas ninguém acreditava de fato. O que era uma capela queimada diante da vastidão do império?

Alessandro, de pé junto à porta, disse em voz baixa, mas firme:

“Se querem nos intimidar, erraram de povo. Viemos de uma terra que ardeu em guerras e fome. Sobrevivemos ao mar, à peste e à lama. Não será o fogo de covardes que nos fará recuar.”

As palavras dele foram como brasas caindo na palha seca do ânimo dos colonos. Matteo, que escutava com os olhos arregalados, apertou o punho do pai em silêncio.

Na manhã seguinte, começaram a reconstruir a capela.

Cada homem trouxe uma tábua, um prego, um martelo. Cada mulher, uma vela ou uma imagem salvada do fogo. Até as crianças ajudaram, catando pedras para a fundação. Padre Giustino sorriu pela primeira vez em dias.

Lucia, enquanto sovava o pão com farinha minguada, disse baixinho a Alessandro:

“Eles tentaram apagar a fé, e acenderam a coragem.”

No entanto, nem todos reagiram com força.

Famílias começaram a falar em desistir. Uma carroça carregada deixou a colônia ao entardecer. Eram os Cortese, que não resistiram à sequência de perdas: um filho com febre tifoide, uma colheita perdida, e agora… medo.

Mas quando a carroça passou pelo campo de Alessandro, ele ergueu Paolo no colo e acenou. Não em despedida, mas em advertência.

“Se partirmos cada vez que o mundo treme, nunca teremos chão firme.”

Na noite em que a nova cruz foi erguida sobre o telhado da capela, os sinos tocaram outra vez. Não de luto. Mas de resiliência.

Sob o céu estrelado do sul, enquanto os colonos cantavam em vozes cruzadas — italiano, alemão, português —, uma certeza crescia em Alessandro: a colônia não era mais um abrigo, era uma pátria feita de barro, fé e feridas.

E toda pátria, cedo ou tarde, exige seus heróis.

Capítulo VII — As Vozes do Silêncio

O verão vinha quente demais, seco demais, e os ventos do Sul que antes traziam alívio agora sopravam apenas poeira. A terra endurecia. As plantações de milho encolhiam sob o sol impiedoso. E com a estiagem, vinha outro mal: o silêncio.

Não o silêncio da paz, mas o que precede a explosão.

Desde o incêndio da capela, as noites na Colônia Dona Isabel tornaram-se longas demais. Os homens recolhiam-se cedo, com espingardas encostadas à cabeceira. As mulheres cochichavam atrás das cortinas. Até as crianças pareciam caminhar com mais cuidado — como se seus pés pudessem acordar um monstro adormecido.

Giacomo passava mais tempo nos campos do que em casa. Trabalhava com fúria. Batia enxadas no solo como se pudesse vingar-se dele. Não falava do incêndio. Nem da ausência crescente de Gasparini, o administrador. Apenas cerrava os dentes.

Alessandro observava tudo com inquietação. Cada gesto calado era um alerta. Um povo que deixa de falar está à beira do colapso — ou da revolta.

Foi Matteo quem primeiro percebeu a diferença. Voltava da casa de um colono alemão, Hans Müller, quando ouviu vozes abafadas vindas do paiol. Era noite. Lá dentro, sombras agitavam-se sob a luz fraca de uma lamparina. Reconheceu uma: o próprio Giacomo.

“Eles vêm por nós”, dizia uma voz. “Querem nossa terra. Primeiro queimam a capela, depois intimidam os pequenos. Aos poucos, vão nos forçando a recuar.”

“Precisamos agir antes que seja tarde.”

Matteo prendeu a respiração. Um plano estava sendo armado. E seu pai, Alessandro, nada sabia.

Na manhã seguinte, Matteo contou tudo. O rosto de Alessandro ficou duro.

“Se partirmos para o confronto sem provas, viramos bandidos. Se calarmos, viramos cúmplices da nossa própria destruição.”

Lucia, que escutava em silêncio, disse apenas:

“Talvez devêssemos falar com quem ainda escuta.”

No dia seguinte, Alessandro selou um cavalo e partiu para Nova Palmira, uma vila distante três léguas, onde havia um posto imperial e um delegado. Levava consigo uma cópia da carta de doação das terras, o relatório do padre Giustino sobre o incêndio, e o diário do senhor Cortese, deixado para trás — onde se lia uma frase marcante: “Fomos atacados pelo medo, não pelo inimigo.”

Foram dois dias de viagem. Na vila, encontrou o delegado Abílio Rocha: um homem negro, de bigodes finos e olhar calculista. Escutou tudo, mas manteve-se impassível.

— “O senhor sabe que o Império tem os olhos voltados para o Norte. Aqui, somos retaguarda, senhor Bellarossi. Terra de silêncio. E de esquecidos.”

“Então que este silêncio exploda,” respondeu Alessandro. “Porque nós não seremos esquecidos. Nem calados.”

Rocha ergueu os olhos e pela primeira vez sorriu.

“O senhor é teimoso. Vai dar trabalho... Mas gosto de gente que não abaixa a cabeça.”

Voltou com ele um sargento e dois auxiliares. Mas o que Alessandro não esperava era a recepção tensa ao chegar.

Na sua ausência, Giacomo e outros homens haviam confrontado um grupo de guardas de terras — brasileiros contratados por um fazendeiro das redondezas, que alegava sobreposição de fronteiras com a colônia. Houve empurrões, tiros no ar, e um ferido: o jovem Pietro Moretti, baleado na perna.

A chegada do delegado evitou algo pior. Reuniu os líderes das famílias, os alemães e italianos juntos, e disse com clareza:

“Se há disputa de terra, há lei. Se há crime, há justiça. Mas se houver guerra... só haverá mortos.”

Naquela noite, a colônia dormiu como quem sobreviveu a um terremoto.

Lucia acendeu uma vela na nova capela e chorou em silêncio. Paolo, já engatinhando, brincava com um graveto no chão de terra batida. Matteo olhava o céu e buscava entre as estrelas uma que lhe dissesse que tudo ficaria bem.

E Alessandro, pela primeira vez desde que chegou à América do Sul, sentiu-se pequeno.

Mas também entendeu que a liberdade — como a terra — só se conquista com raízes fundas e espinhos no caminho.

Capítulo VIII — As Cinzas e o Aço

O amanhecer seguinte não trouxe alívio, apenas a constatação de que tudo mudara. A bala na perna de Pietro Moretti tornara-se símbolo de algo maior: a inocência da colônia tinha sangrado. E não havia como voltar atrás.

Giacomo caminhava de um lado a outro na varanda de sua casa, os olhos vermelhos de vigília e raiva. A mãe de Pietro, dona Celina, gritara com ele na noite anterior.

“Você levou meu filho pra guerra! Não é por terra que se mata!”

Ele não respondeu. Apenas fechou os punhos e virou o rosto. A dor, quando vinha, ele engolia em silêncio.

Enquanto isso, Alessandro passava de casa em casa, tentando acalmar os ânimos, falando com os chefes de família. Trazia palavras de conciliação, mas também alertas. A chegada do delegado Rocha fora um passo, não uma vitória.

“Não temos inimigos entre nós”, dizia. “Mas há quem queira que tenhamos. E isso... é mais perigoso do que o fogo ou o aço.”

Na igreja reconstruída às pressas, o padre Giustino reuniu os colonos para uma missa de reconciliação. Havia mais ausências do que presenças. Entre os que vieram, alguns cruzavam os braços; outros não rezavam. Era uma comunidade fraturada, como barro rachado ao sol.

Na homilia, o padre falou de Jó. De perdas, de provas, de fé no meio da desolação.

“Mas até Jó”, disse ele com a voz trêmula, “teve amigos que se sentaram ao seu lado no chão. E às vezes, mais importante que entender a dor... é não deixá-la sozinha.”

No fim da missa, Matteo observou Elvira acendendo uma vela por Pietro. Era pequena, mas firme. Havia algo novo em seus olhos. Não era medo — era fúria contida. Uma menina de dez anos que já aprendera que até a infância pode arder nas chamas do mundo dos homens.

Na tarde seguinte, Alessandro foi chamado à casa de Hans Müller. Lá, encontrou um mapa — antigo, desbotado, mas oficial. Mostrava as delimitações das terras imperiais na região do Alto Taquari.

“Olhe aqui”, disse Hans, apontando com o dedo grosso e calejado. “As terras do fazendeiro Fontoura param antes do nosso rio. A colônia está segura. O que ele quer... é poder. Não hectares.”

Alessandro assentiu. Aquilo não era apenas sobre posses — era sobre controle. Fontoura queria que os italianos soubessem que estavam sob sua sombra. Um jogo de intimidação sutil, pontuado por violência dos jagunços e por rumores espalhados entre os nativos. Uma tática antiga.

Mas os colonos, sem saber disso, começavam a se armar.

“Precisamos agir antes que haja outro Pietro. Ou algo pior.”

Na semana seguinte, Alessandro partiu outra vez, agora para Caxias. Lá, havia uma sede da Intendência Provincial. Levaria o mapa. E sua palavra.

Levou também Matteo. O menino insistira. Queria aprender. Queria proteger. Não era mais criança — era filho de colono, e isso mudava tudo.

A estrada era poeirenta, cruzando campos abertos e matas cerradas. Dormiram em cocheiras, comeram o que levavam nos bolsos: pão de milho, queijo duro, água morna. Em cada parada, Alessandro perguntava sobre Fontoura — e ouvia histórias. Terras cercadas à força. Grupos expulsos. Documentos desaparecidos.

Caxias surgiu ao longe como uma promessa — e um risco. Na sede do governo local, foram recebidos com frieza. O Intendente, um homem chamado Amaral, vestia linho branco e falava com palavras medidas.

“Senhor Bellarossi, sabemos da importância dessas colônias. Mas sabemos também das dificuldades que surgem quando povos se instalam sem compreender os limites da ordem.”

“E o senhor chama de ordem o incêndio, a ameaça, a bala que perfura a perna de um menino?”

O Intendente não respondeu de imediato. Passou os olhos pelo mapa.

“Essas terras foram traçadas por engenheiros imperiais. Se há conflito... será analisado. Mas tenha paciência. O Brasil é vasto. E lento.”

Ao saírem, Matteo perguntou:

“Pai... ele nos ouviu?”

“Ouviu. Mas não nos escutou.”

Na volta à colônia, o clima era outro. Pietro começava a andar com ajuda de uma bengala feita por Elvira. Os homens, por ordem de Giacomo, cavavam trincheiras discretas atrás das casas, como se se preparassem para uma guerra que ninguém queria, mas todos temiam.

E numa manhã em que o vento voltava a soprar do Sul — trazendo o cheiro fresco de pinho e umidade — chegou um mensageiro.

Trazia uma carta. Vinha de Porto Alegre. Era um comunicado oficial.

E nele, dizia-se que o Ministério da Agricultura, sob pressão de diversos representantes, enviaria um agrimensor ao local em trinta dias para reavaliar as fronteiras da Colônia Dona Isabel.

Lucia segurou o papel nas mãos e chorou. Pela primeira vez, não era medo. Era alívio.

Trinta dias. Um mês para resistir.

O jogo mudava. Mas ainda era de risco.

Capítulo X — A Medida de Todas as Coisas

O barulho dos cascos chegou antes da poeira.

João Vicente Lisboa apareceu na entrada da colônia numa manhã fria, envolto num sobretudo de lã escura, seguido por dois soldados e um ajudante mulato que carregava pranchetas e um nível topográfico.

Ele não sorriu.

Seu olhar percorreu a clareira como se estivesse mapeando almas, não hectares. Os colonos, em silêncio, deixaram os machados descansarem. Os rostos estavam sujos, as roupas remendadas, mas os olhos... os olhos ardiam com dignidade.

Alessandro foi ao encontro dele, acompanhado por Hans Müller e Giacomo. Ao vê-los, João Lisboa desmontou lentamente. Estendeu a mão — mas só depois de examinar.

“Sou João Vicente Lisboa. Oficial agrimensor, designado pelo Império. Trago as demarcações. Mas antes... quero ouvir a verdade.”

Era o início.

Instalado numa das poucas casas de alvenaria improvisada, Lisboa começou o trabalho como se estivesse interrogando um tribunal invisível. Recolheu testemunhos. Analisou documentos. Visitou lotes. Escutou o padre. Visitou a cruz da criança morta com sarampo — e não disse uma palavra, mas permaneceu ajoelhado mais tempo que o esperado.

Durante três dias, anotou. Mediu. Comparou mapas.

Na noite do quarto dia, alguém tentou incendiar o galpão onde dormia. O fogo foi contido a tempo — mas um dos soldados ficou com o rosto queimado. Lisboa não demonstrou medo. Apenas ordenou que montassem guarda armada nas trilhas.

No quinto dia, convocou uma assembleia.

Foi ao pé da grande figueira, onde os colonos realizavam suas missas ao ar livre. Mais de cem pessoas estavam reunidas — crianças no ombro dos pais, velhos sentados em troncos, mulheres com olhos fixos como pedra.

João Lisboa subiu num caixote e falou como um juiz, mas com a voz de um homem cansado:

“Esta terra foi prometida por decreto imperial. E foi conquistada por enxadas, suor e luto. A marca da legalidade... está aqui.”

Ergueu o mapa selado com o brasão do Império.

“A partir deste dia, a Colônia Dona Isabel está reconhecida como núcleo agrícola de povoamento livre. Os lotes serão titulados em nome das famílias pioneiras. Quem tentar expulsá-los será julgado segundo a lei dos homens — e, se for o caso, também pela de Deus.”

Um murmúrio percorreu a multidão. Alguns choraram. Outros apenas fecharam os olhos.

Giacomo, que até ali permanecera imóvel, murmurou:

“Vencemos sem matar ninguém.”

Mas Hans respondeu, com amargura:

“Sim. Só enterramos os nossos.”

Na noite seguinte, alguém deixou uma carta anônima cravada na porta da casa de Alessandro. Uma frase apenas:

"A terra pode ter dono, mas o medo não tem cerca."

Não foi o fim do conflito — mas foi o fim da dúvida.

Fontoura fugiria para o Uruguai semanas depois, abandonando os capangas e a posse falsa. E quanto ao traidor dentro da colônia — Lisboa soube quem era. Mandou-o embora, discretamente, sob escolta. Nenhum nome foi dito. A paz custava mais caro que a verdade completa.

Nos dias seguintes, o som das enxadas voltou. Com mais força. Como se cada batida na terra fosse uma afirmação:

Estamos vivos. Estamos aqui. Esta terra é nossa porque a fizemos nossa.

Elvira plantou flores ao lado da cruz do pequeno Paolo. Matteo escreveu seu nome no batente da casa. Lucia voltou a cantar ao moer milho. E Pietro... Pietro passou a copiar cada página do seu caderno em outra letra, mais firme — para que, um dia, outros pudessem ler.

João Lisboa partiu com o sol nas costas. Ao despedir-se, entregou a Alessandro um pequeno envelope selado.

“É o registro da posse legal. Assinado. Carimbado. Guardem bem — mas não para si. Guardem... para os netos.”

E montou no cavalo, desaparecendo entre as araucárias.

A colônia dormiu em paz naquela noite pela primeira vez em anos. Mas ninguém percebeu que, ao longe, o céu estrelado parecia mais limpo — como se até Deus respirasse aliviado.

Capítulo XI — Epílogo: Sob as Árvores do Tempo

O velho Pietro sentou-se devagar sob a sombra do pinheiro mais antigo da propriedade.

O tronco era grosso como três homens juntos. Os galhos erguiam-se como braços de gigantes, e o som do vento entre as agulhas fazia um murmúrio que lembrava vozes esquecidas. Ao seu lado, sua neta Clara, de apenas oito anos, segurava um caderno de capa vermelha.

“Nonno, conta de novo a história da cruz de madeira...”

Ele sorriu. Os olhos, turvos pela idade, ainda brilhavam com aquele fogo que nem o tempo apagara. Tocou de leve o pingente que pendia do pescoço — uma pequena cruz de ferro oxidado que ele mesmo moldara com pregos antigos do galpão queimado.

“Essa história não é minha, minha flor. É nossa. É da terra. É do sangue que regou o barro antes de ser solo fértil.”

E começou.

Contou sobre a viagem em porões apertados, sobre o suor colado nas tábuas do Vapor Roma. Falou do pai, Alessandro, que escrevia cartas como quem plantava sementes no coração dos que ficaram para trás. E da mãe, Lucia, que sorria mesmo depois de enterrar um filho no mar.

Descreveu o rosto de Giacomo, sempre sujo de lama e de coragem. E de Hans, que nunca abandonou ninguém, mesmo quando teve chance. Mencionou o Padre Giustino e sua fé que resistia às febres, às perdas, às pragas.

E falou de João Lisboa — o homem de farda que não usava espada, mas palavras.

Clara ouvia como quem recebia um tesouro invisível.

“E depois, Nonno? O que aconteceu com a colônia?”

Pietro suspirou.

“Ela cresceu. Virou cidade. Vieram escolas, igrejas, mercado. As casas de madeira deram lugar a paredes de pedra. Mas a raiz... essa nunca mudou.”

Apontou para o chão.

“Está aí embaixo. Nas fundações. Nos ossos dos que ficaram. Nos nomes que demos às ruas. Nos que nunca foram embora — mesmo mortos.”

Clara anotava com cuidado. Escrevia com a mesma letra firme que o avô ensinara. Quando terminou, o sol já se escondia atrás das colinas. As sombras alongavam-se como velhos amigos voltando para casa.

Pietro se levantou com esforço. Olhou para o horizonte.

“Promete que um dia você vai contar isso a alguém, Clara?”

Ela assentiu com os olhos grandes e sérios.

“Prometo, Nonno.”

“Então está feito.”

Naquela noite, Pietro adormeceu no quarto onde nascera. Ao lado da cama, repousava o caderno vermelho. Na última página, em caligrafia ainda infantil, lia-se:

“Esta terra foi conquistada com coragem, fé e lágrimas. E por isso, ela é nossa. Não porque a tomamos. Mas porque a amamos.”


Nota do Autor

A Carta de um Emigrante é um tributo ficcional, porém profundamente inspirado em testemunhos reais, às milhares de famílias italianas que, entre o final do século XIX e o início do século XX, deixaram suas aldeias nas montanhas do Vêneto, Trentino, Lombardia e outras regiões da Itália, rumo ao desconhecido continente sul-americano — mais especificamente, ao sul do Brasil.

Ao recriar a jornada de Alessandro Bellarossi e sua família, busquei captar o drama humano por trás dos registros estatísticos, dos editais de colonização e das fotografias em sépia que resistem ao tempo. Este romance é construído sobre as memórias transmitidas oralmente, sobre cartas verdadeiras encontradas em baús de família, sobre a fala pausada de nonnos que ainda lembram do cheiro da terra vermelha e do som dos machados abrindo clareiras na mata densa da Serra Gaúcha.

A Colônia Dona Isabel — hoje a cidade de Bento Gonçalves, no Rio Grande do Sul — foi uma das primeiras a receber imigrantes italianos em massa, a partir de 1875. Ali, como em tantas outras colônias, o desafio era absoluto: selva virgem, solidão, doenças, clima hostil e a dificuldade da língua. Mas foi também ali que se fincou, com unhas e raízes, uma das maiores e mais ricas heranças culturais e sociais da imigração europeia no Brasil.

Essa obra de Piazzetta, embora romanceada, procura ser fiel ao espírito da época. As cartas, os nomes, os sentimentos e até mesmo os silêncios refletem as vozes que a História oficial nem sempre escutou: as dos pobres, dos esquecidos, dos que vieram não em busca de glória, mas de pão e dignidade.

Aos leitores, deixo não apenas uma narrativa, mas um convite: ao resgate da memória, à empatia com nossos antepassados e ao reconhecimento do preço da esperança plantada em terra estranha.

O Autor




segunda-feira, 23 de setembro de 2024

A Cruz no Caminho


A Cruz no Caminho


Nas terras férteis e ainda selvagens da Colônia Dona Isabel, no coração do Rio Grande do Sul, a vida dos imigrantes italianos era marcada por um misto de esperança e sacrifício. Vindos de uma Itália assolada pela pobreza e pela falta de perspectivas, esses bravos homens e mulheres se agarravam a uma única certeza: a fé. Para muitos, era a fé que os sustentava diante das adversidades de uma terra desconhecida, repleta de desafios que testavam a força de suas convicções.
Fioravante, um homem robusto de mãos calejadas e olhar penetrante, estava de joelhos diante da pequena capela que ele mesmo ajudara a erguer. A capela, construída com madeira bruta retirada das florestas ao redor, era um refúgio sagrado para toda a comunidade. Era ali, entre as paredes simples, que as famílias se reuniam aos domingos, compartilhando não apenas suas preces, mas também suas histórias de lutas e saudades.
Ao lado de Fioravante, Maddalena, sua esposa, murmurava suas orações. Os olhos castanhos, sempre calmos, agora estavam úmidos. Maddalena trazia no peito um terço de contas de madeira, presente de sua mãe antes de deixarem a Itália. Aquela relíquia, simples em sua forma, era para ela um símbolo de proteção, algo que a conectava com a terra distante e com as tradições que tanto prezava.
O pároco local, Padre Giovanni, observava sua pequena congregação. Era um homem de estatura mediana, cabelos grisalhos e uma voz que transmitia serenidade. Havia chegado à colônia pouco tempo depois dos primeiros imigrantes, e desde então, dedicara sua vida a guiar espiritualmente aquele povo. Para ele, a fé era o alicerce da comunidade. Em suas homilias, repetia que Deus havia trazido todos para aquela terra promissora e que, apesar das dificuldades, não os abandonaria.
Os desafios, no entanto, eram muitos. O solo, ainda coberto de matas densas, exigia um esforço hercúleo para ser cultivado. As noites eram longas e frias, e a solidão se tornava palpável na vastidão daquela terra desconhecida. Muitos sentiam saudades dos parentes deixados para trás e das vilas italianas que outrora chamavam de lar. Nessas horas, a capela se tornava um lugar de encontro, onde os lamentos e as alegrias eram compartilhados como uma forma de aliviar os corações.
Um dos membros mais fervorosos da comunidade era Antonella, uma viúva que perdera o marido durante a travessia do Atlântico. Sozinha com dois filhos pequenos, Antonio de 9 anos e Fiorinda de 6, Antonella enfrentava a dureza da vida com uma coragem que poucos possuíam. Muitos se perguntavam por que ela não havia retornado à Itália após a morte do marido, mas aqueles que a conheciam sabiam que ela ficava por causa dos filhos. Era para garantir um futuro para eles que ela permanecia, resistindo às dificuldades com uma força que parecia vir de sua devoção inabalável.
Todos os dias, sem exceção, Antonella se dirigia à capela para rezar, pedindo por forças para continuar. Antonio e Fiorinda a acompanhavam, aprendendo desde cedo o valor da fé e da comunidade. Antonella era conhecida por seu espírito generoso, sempre disposta a ajudar os outros, especialmente aqueles que, como ela, lutavam para manter suas famílias unidas e seguras. Para ela, a religião não era apenas uma prática, mas uma fonte inesgotável de conforto e esperança.
Certo dia, uma forte tempestade abateu-se sobre a colônia. Os ventos uivavam e as águas corriam furiosas pelos barrancos. As pequenas casas de madeira tremiam sob a força da natureza. Nessa noite, muitos dos colonos se refugiaram na capela, implorando pela proteção divina. Fioravante e Maddalena estavam entre eles, abraçados, sentindo o calor das velas e ouvindo as palavras tranquilizadoras de Padre Giovanni.
Após a tempestade, um arco-íris apareceu no céu, como um sinal de renovação. Os colonos se entreolharam, e muitos choraram, agradecendo a Deus por terem sido poupados. A fé, mais uma vez, havia mostrado seu poder de união e fortalecimento. Naquele instante, a capela se tornou mais que um simples edifício; transformou-se no símbolo da resistência e da espiritualidade de um povo.
Mas nem todos os desafios eram tão visíveis quanto as tempestades. A comunidade também enfrentava dificuldades de adaptação às novas condições de vida, ao clima diferente e às doenças que surgiam. A malária, em especial, foi uma inimiga cruel, levando muitos ao leito de morte. A cada funeral, a capela se enchia de luto e orações. Padre Giovanni realizava os ritos com uma tristeza visível nos olhos, mas sempre lembrava que a alma dos fiéis estava em boas mãos.
Um dia, Fioravante recebeu uma carta da Itália, uma das poucas que conseguira chegar à colônia. Era de sua mãe, uma mulher já idosa, que lamentava a distância e expressava sua saudade. Fioravante, com o coração apertado, leu a carta em voz alta para Maddalena. Depois, ambos se dirigiram à capela, onde acenderam uma vela e rezaram por sua família distante. A fé, naquele momento, era o único elo tangível entre eles e sua terra natal.
O tempo passou, e as colheitas começaram a melhorar. Aos poucos, a terra respondia ao esforço incansável dos colonos. A pequena capela, agora adornada com flores e velas, tornou-se o centro de celebrações de colheita, casamentos e batismos. Cada evento era uma reafirmação da vida, uma lembrança de que, apesar das adversidades, a comunidade seguia em frente.
No entanto, uma tragédia inesperada abalou a colônia. Antonella, a viúva devota que tanto havia lutado por seus filhos, foi encontrada sem vida em sua casa. A notícia se espalhou rapidamente, e a comunidade ficou devastada. O velório, realizado na capela, foi marcado por lágrimas e orações. Padre Giovanni, ao realizar a última missa em sua memória, destacou a importância de manter a fé, mesmo diante da morte.
Antonio e Fiorinda, ainda crianças, ficaram sob os cuidados de vizinhos e amigos. A comunidade, movida pela compaixão e pela solidariedade, se uniu para garantir que eles tivessem um lar e o apoio necessário. Para Fioravante e Maddalena, a perda de Antonella foi um lembrete doloroso da fragilidade da vida. Mas também foi um momento de reflexão sobre a importância de sua própria fé e da comunhão com os outros. A partir daquele dia, eles se dedicaram ainda mais à capela e à comunidade, acreditando que a espiritualidade coletiva era a chave para superar qualquer obstáculo.
Com o tempo, a colônia cresceu e prosperou. Novas famílias chegaram, atraídas pelas notícias de terras férteis e oportunidades. A capela, no entanto, permaneceu como o centro espiritual, o lugar onde todos se reuniam para agradecer e pedir por dias melhores. Padre Giovanni, mesmo envelhecido, continuava a guiar seu rebanho com a mesma dedicação de sempre. Ele sabia que a fé daqueles imigrantes era a fundação sobre a qual se erguia toda a comunidade.
Antonio e Fiorinda cresceram sob os cuidados dos vizinhos, sempre amparados pelo carinho e pela solidariedade da colônia. Fioravante e Maddalena se tornaram como pais para eles, oferecendo não apenas abrigo, mas também amor e orientação. Naqueles anos, a capela foi palco de muitos eventos que marcavam a vida dos colonos: casamentos, batismos e até festas que celebravam as colheitas abundantes que a terra agora lhes concedia.
Mesmo diante das muitas provações, a pequena comunidade italiana floresceu na Colônia Dona Isabel. A cada nova conquista, por menor que fosse, os colonos se reuniam na capela para agradecer. Aquela cruz no caminho que os trouxe até ali, que tanto significava, agora simbolizava a vitória sobre o passado de dificuldades e a esperança em um futuro promissor.
Fioravante e Maddalena, junto com Antonio e Fiorinda, tornaram-se exemplos de fé e perseverança, sempre lembrando a todos que, embora longe de sua terra natal, estavam unidos por algo ainda mais forte: a fé em Deus e a crença na força da comunidade.
A história desses imigrantes, marcada por sacrifícios e superação, ficou para sempre gravada nas paredes daquela capela, que testemunhou a construção de uma nova vida em solo estrangeiro. E assim, a fé que os sustentou desde o primeiro dia continuou a guiá-los por muitos anos, até que novas gerações tomaram seu lugar, sempre lembrando-se das raízes plantadas com tanto amor e devoção.


segunda-feira, 9 de setembro de 2024

A Luz da Fé: Sob o Céu do Novo Mundo



A Luz da Fé: Sob o Céu do Novo Mundo


Em 1876, na recém-criada Colônia Caxias, no Rio Grande do Sul, as primeiras famílias italianas chegavam em grandes grupos após uma longa e árdua travessia do oceano. Vindos do norte da Itália, predominantemente das regiões do Vêneto e Lombardia, esses imigrantes chegaram em busca de um futuro melhor. No entanto, logo perceberam que a nova terra, embora cheia de promessas, apresentava desafios imensos, muito maiores do que haviam imaginado. Entre esses desafios, a saudade dos entes queridos, da pátria e a ausência de estruturas essenciais, como o conforto da presença de um sacerdote, tornavam-se questões centrais para aqueles católicos devotos.
Giuseppe, um homem de meia-idade, casado, pai de uma família de quatro filhos, oriundo do Vêneto, destacava-se entre os colonos. Com o rosto marcado pelo tempo e as mãos calejadas pelo trabalho, ele carregava consigo mais do que as poucas posses que restaram após a travessia. Giuseppe trazia a memória das tradições e a fé inabalável que aprendera com seus antepassados.
Logo nos primeiros dias, a comunidade começou a sentir a ausência de um sacerdote, do conforto espiritual que a religião lhes proporcionava, algo inédito para aqueles que sempre encontraram refúgio e esperança na fé. Esta que sempre fora o alicerce de suas vidas, parecia ameaçada pela distância e pela ausência de um líder espiritual. Em uma reunião do pequeno grupo, Giuseppe foi procurado pelos outros imigrantes para assumir essa liderança espiritual.
Numa manhã de domingo, em uma clareira aberta na mata densa, as famílias se reuniram para o primeiro grupo de oração conduzido por Giuseppe. Homens, mulheres e crianças se agruparam em silêncio, com os olhos voltados para aquele homem simples que, com um livro de orações numa mão e um terço na outra, tomou a frente e começou a cerimônia. A ausência de um altar foi sentida, mas a simplicidade do local não diminuiu a devoção. Giuseppe foi uma criança frágil, magro e frequentemente acometido por ataques de bronquite. Seu pai, percebendo sua condição debilitada, dispensou-o dos trabalhos pesados na roça e traçou um plano diferente para seu futuro: mais tarde enviá-lo para um seminário. Assim, devido ao seu estado de saúde, Giuseppe pôde frequentar os quatro anos do ensino primário, onde aprendeu a ler e escrever. Desde cedo, dedicou-se a ajudar o pároco de sua pequena cidade natal, participando ativamente das missas, celebrações e diversas outras atividades religiosas, demonstrando uma profunda devoção e interesse pelas práticas da fé. Agora, trazendo consigo essas memórias e conhecimentos, ele conduzia as orações na colônia, com uma voz serena que, embora não fosse imponente, carregava a profundidade de sua devoção e a força de um coração repleto de fé.
Com o passar dos meses, Giuseppe continuou a liderar as práticas religiosas. Os grupos de oração ao ar livre tornaram-se um ritual sagrado, uma reafirmação da fé que os mantinha unidos. As reuniões eram mais do que momentos de oração; eram o alicerce da vida comunitária, onde se discutiam problemas do dia a dia, compartilhavam-se alegrias e tristezas, e se criava um senso de comunidade em meio ao isolamento.
A fé, em sua ausência física de um sacerdote, tornou-se ainda mais essencial. Ela era a chama que iluminava o caminho daqueles que estavam longe de casa, mas nunca longe de Deus. Um dia, a morte visitou a Colônia Caxias. Uma das crianças, acometida por uma doença súbita, não resistiu. A tragédia abalou profundamente a comunidade. Mais uma vez, Giuseppe assumiu a liderança, preparando a cerimônia fúnebre e oficiando as rezas como o pároco fazia na Itália, mas agora em terras estrangeiras.
No pequeno cemitério improvisado, as famílias se reuniram em volta da sepultura. Giuseppe, com lágrimas nos olhos, proferiu palavras de consolo e esperança, recordando a todos que, apesar da dor, a fé era a única coisa que nunca deveriam perder. A fé era o elo que os mantinha conectados, não apenas uns aos outros, mas também à terra que deixaram para trás e ao Deus que nunca os abandonaria.
Com o tempo, a comunidade se fortaleceu. As primeiras colheitas trouxeram um alívio modesto, mas significativo, para as necessidades diárias. A cada domingo, o grupo de oração conduzido por Giuseppe era uma reafirmação da vida que todos estavam construindo juntos, com suor, lágrimas e fé. Quando finalmente um sacerdote chegou à colônia, a importância de Giuseppe na vida espiritual da comunidade não diminuiu. Ele continuou a ser a alma daquela gente, o homem que, com fé e coragem, manteve a chama viva quando tudo parecia sombrio.
A história de Giuseppe e da Colônia Caxias é um exemplo da força indomável da fé. É a história de um povo que, mesmo diante das adversidades, encontrou na religiosidade um porto seguro, um refúgio onde podiam renovar suas forças para enfrentar os desafios do novo mundo. Sob o céu do Rio Grande do Sul, a fé continuou a iluminar o caminho daqueles que, como Giuseppe, jamais perderam a esperança.


quinta-feira, 29 de agosto de 2024

Raízes de Esperança



O ano era 1875, e a Itália, bela em suas paisagens, estava ferida por crises econômicas e sociais. A pequena vila de Montebello, na região de Vêneto, sentia os efeitos dessa realidade. Era uma terra de vinhedos antigos, mas a promessa de prosperidade já não mais sustentava suas gentes.
Giuseppe, um homem de trinta e cinco anos, de olhar firme e mãos calejadas pelo trabalho na terra, decidiu que era hora de partir. Ao lado de sua esposa, Maria, e seus dois filhos, Enzo, de oito anos, e Sofia, de cinco, Giuseppe tomou a difícil decisão de deixar sua terra natal. Seus pais o aconselharam a ser corajoso, a confiar no futuro, mas as palavras pesavam como chumbo em seu coração.
A travessia do Atlântico foi longa e dolorosa. A bordo de um navio abarrotado de sonhos e incertezas, a família enfrentou tempestades e o medo do desconhecido. Giuseppe passava as noites acordado, segurando a mão de Maria, enquanto ela consolava as crianças, que choravam de saudade e fome. O futuro parecia uma promessa distante, mas a fé os mantinha de pé.
Quando finalmente avistaram terra, após meses de viagem, a família estava exausta. O Brasil os recebeu com um calor que contrastava com o frio que sentiam em suas almas. Chegaram, depois de mais algumas semanas de viagem, à Colônia Conde d’Eu, um pequeno aglomerado de barracos de madeira e terra batida, cercado por uma densa mata virgem. Giuseppe olhou para aquele cenário com uma mistura de alívio e desespero. Era terra nova, mas o trabalho seria árduo.
Giuseppe logo se pôs a trabalhar. Ele e os outros colonos desbravavam a mata, abrindo caminho para as futuras plantações de parreiras cujas mudas haviam trazido da cidade natal. A terra era fértil, mas o isolamento era cruel. As distâncias entre as casas eram enormes, e o silêncio da mata parecia engolir os sons da vida. A saudade da Itália, dos pais, dos amigos, era uma dor constante no peito de Giuseppe e Maria.
As noites eram frias, e o vento assobiava nas frestas das casas mal construídas. Os filhos sentiam falta das brincadeiras no pátio da velha casa em Montebello, agora substituído por um mundo de incertezas. Mas Giuseppe e Maria continuavam a lutar, dia após dia, acreditando que estavam construindo um futuro melhor para seus filhos.
Depois de anos de trabalho duro, finalmente chegou o momento da primeira colheita. Giuseppe sentiu um orgulho imenso ao olhar para as vinhas carregadas de uvas maduras. Ele sabia que aquele era o começo de uma nova vida para sua família. Com a ajuda de outros colonos, começaram a produzir o vinho, seguindo as técnicas que haviam aprendido na Itália.
O primeiro vinho produzido na colônia foi um marco. Era um vinho simples, mas carregado de significados. Para Giuseppe, cada gota daquele líquido representava o suor de seu trabalho, as lágrimas de sua esposa, e a esperança de seus filhos. Quando o vinho ficou pronto, os colonos se reuniram para celebrar. Era uma noite estrelada, e as risadas ecoaram pela colônia, afastando a solidão e a tristeza que tantas vezes os haviam visitado.
Naquela noite, Giuseppe brindou com os outros colonos, olhando para Maria e os filhos. Ele sabia que ainda havia muito a fazer, mas pela primeira vez desde que chegara ao Brasil, sentiu que haviam encontrado seu lugar no mundo.
Os anos passaram, e a colônia começou a crescer. Novos imigrantes chegaram, trazendo consigo novas esperanças e desafios. As casas de madeira foram substituídas por construções mais sólidas, e as plantações se expandiram. Mas com o progresso, vieram também os desafios.
As doenças eram uma ameaça constante. A febre e a malária ceifaram vidas, e os médicos eram raros na região. Maria se dedicou a cuidar dos doentes, usando os conhecimentos de ervas que havia aprendido com sua avó na Itália. Ela se tornou uma referência na comunidade, uma mulher de força e compaixão que todos respeitavam.
Sofia, agora uma jovem mulher, ajudava a mãe no cuidado dos doentes, enquanto Enzo seguia os passos do pai na vinícola. O vinho produzido por Giuseppe começou a ganhar fama na região, e ele sonhava em um dia ver seu nome associado aos melhores vinhos do Brasil.
Mas os tempos de dificuldade não haviam terminado. Uma praga devastadora atingiu as vinhas, ameaçando destruir tudo o que haviam construído. Giuseppe lutou com todas as suas forças para salvar as plantações, mas o futuro parecia incerto. A família se uniu ainda mais, enfrentando as adversidades com coragem e determinação.
Após anos de luta, o progresso finalmente chegou à colônia Conde d’Eu. As estradas foram abertas, facilitando o transporte dos vinhos para outras regiões do Brasil. Giuseppe, com sua visão e determinação, decidiu investir na produção de espumantes, uma bebida que começava a ganhar popularidade no país.
A primeira produção de espumante foi um sucesso. O espumante de Giuseppe se tornou conhecido em todo o Brasil, e a colônia começou a prosperar. A família se tornou uma referência na produção de vinhos e espumantes, e Giuseppe viu seu sonho se realizar.
Enzo, agora um homem feito, assumiu a responsabilidade pela vinícola, trazendo novas ideias e técnicas que aprendeu em suas viagens pela Itália. Sofia se casou com um imigrante italiano, também envolvido na produção de vinhos, e juntos começaram uma nova família.
Maria, sempre ao lado de Giuseppe, viu seus filhos crescerem e prosperarem, e sentiu que todos os sacrifícios haviam valido a pena. Ela e Giuseppe envelheceram juntos, olhando para as colinas cobertas de vinhedos, sabendo que haviam construído algo duradouro, algo que passaria para as próximas gerações.
O ano era 1900, e a colônia Conde d’Eu, agora conhecida como Garibaldi, havia se transformado em um próspero município. As ruas eram repletas de vida, e as cantinas de vinho eram famosas em todo o Brasil. O espumante produzido pela família de Giuseppe era apreciado em festas e celebrações, um símbolo do sucesso dos imigrantes italianos que haviam desbravado aquela terra desconhecida.
Giuseppe, agora com sessenta anos, olhava para tudo o que haviam conquistado com um misto de orgulho e nostalgia. Ele sabia que, sem a coragem de partir, sem a força de sua esposa, sem a determinação de seus filhos, nada daquilo teria sido possível. O nome de sua família estava gravado na história de Garibaldi, e ele sabia que seu legado perduraria.
Em uma noite estrelada, muito parecida com aquela primeira colheita, Giuseppe reuniu sua família e os amigos mais próximos para um brinde. Eles ergueram suas taças, cheias do espumante que havia se tornado o orgulho de Garibaldi, e brindaram ao futuro. Um futuro que, apesar das dificuldades, prometia ser brilhante, como as estrelas que iluminavam o céu acima da colônia.
Garibaldi, a capital brasileira do espumante, é hoje um símbolo de perseverança e sucesso. Os descendentes dos imigrantes italianos continuam a produzir vinhos e espumantes de renome, mantendo viva a tradição que Giuseppe e sua família começaram há mais de um século.
As vinícolas de Garibaldi são um legado da coragem daqueles que, em 1875, decidiram deixar tudo para trás em busca de uma nova vida. E em cada garrafa de espumante, em cada taça erguida, vive a história de uma família que construiu, com amor e suor, um novo lar no sul do Brasil.



quinta-feira, 11 de abril de 2024

Fuga tra le Dolomiti: L'Epica Odissea di Matteo - Capitolo 3


Fuga tra le Dolomiti: L'Epica Odissea di Matteo

La vita è una sola e dobbiamo cercare di viverla appienoe


Capitolo 3 


Di imponente statura e abituato fin dall'infanzia a sfidare i capricci del clima, il vigoroso corpo del viaggiatore, spinto da agili passi, resisteva al freddo che si insinuava. In quel momento, il gelido non trovava spazio per infiltrarsi, respinto dai contorni atletici del viaggiatore. Mentre procedeva, la sua mente, un ingranaggio prodigioso, girava velocemente, risvegliando ricordi di un'infanzia legata alle pendici di maestose montagne. La sua terra natale, un piccolo villaggio di montagna, si rivelava nei ricordi come una cartolina ingiallita, con le sue scarse abitazioni di legno e pietra che circondavano una modesta chiesa, lo scenario sacro dove i suoi genitori avevano scambiato voti più di quattro decenni prima. Lì, nelle acque battezzate dalla stessa chiesa, lui e i suoi cinque fratelli avevano ricevuto i loro nomi. Il più giovane di una numerosa prole, quattro uomini e due donne, tutti tranne lui già immersi nelle responsabilità della vita coniugale e nella creazione dei propri figli. La sua famiglia si era radicata in quelle terre, coltivando il suolo come un'eredità ancestrale. Tre dei suoi fratelli avevano costruito case nello stesso villaggio, mentre gli altri, in località limitrofe, sostenevano la tradizione agricola tramandata dagli antenati. In quel mosaico di legami familiari e tradizioni rurali, una constatazione lo colse con un pizzico di sorpresa: tra i suoi, era l'unico a spezzare le catene di quel luogo. La sua fuga dalle strettoie del villaggio era dovuta alla sua innata curiosità e all'amore appassionato per i libri, un dono raro del vecchio maestro che, di tanto in tanto, saziava la sua sete di conoscenza. Fu proprio questo maestro che, con saggezza, gli aprì la strada per entrare in una scuola di formazione religiosa, un'opportunità unica per un ragazzo di dodici anni. Così, con una valigia piena di sogni e al fianco di un giovane compaesano, si lanciarono nell'ignoto, verso un collegio in città. Ricordò l'addio, uno spettacolo di emozioni trattenute, soprattutto perché sentiva che quella partenza segnava un addio alla casa paterna. La madre, già malata in quel periodo, si congedò da lui con un sorriso malinconico che nascondeva la tristezza sottostante. Lei capiva che quel percorso era necessario per lui, l'ultima occasione di sfuggire ai limiti prestabiliti di quel villaggio apparentemente senza orizzonti. Così, le lacrime trattenute negli occhi materni echeggiavano la rassegnazione e la speranza, perché lei sapeva che quella strada era la bussola che avrebbe guidato suo figlio al di là dei confini prevedibili di quelle montagne. Con la madre che svaniva nel passato, il giovane esploratore si gettò nei corridoi dell'istruzione formale, portando con sé non solo l'eredità della famiglia, ma anche una promettente fiamma interiore, alimentata dalla conoscenza e dalla promessa di un destino unico. Le radici profonde della montagna continuavano a esercitare la loro influenza, ma, come un seme portato dal vento, lui partì, cercando nuovi orizzonti che solo i tomi rilegati e i brucianti desideri potevano offrire. In quell'addio, tra i sospiri del passato e i sussurri del futuro, divenne l'araldo di un percorso straordinario, spezzando il destino tracciato dalla sua discendenza, scrivendo le sue stesse pagine sulle ancora inesplorate foglie del suo libro di vita. Immerso nelle trame del passato, mentre attraversava la densità della foresta, si vide improvvisamente strappato dai suoi ricordi da uno spavento così repentino da proiettarlo di nuovo nella cruda realtà. L'ombra della pattuglia, che aleggiava nella sua mente come una minaccia costante, lo colse, e, in un riflesso istintivo, si gettò a terra, cercando rifugio dietro a un imponente tronco caduto. Tuttavia, la furia sonora che lo aveva strappato dalla sua introspezione non era che un capriccio della natura: rami di un albero dal tronco robusto caddero, trascinando con sé appendici di altri alberi, creando il fragore che echeggiò nella solitudine della foresta. Lo spavento, seppur effimero, servì come un vigoroso richiamo alla sua consapevolezza, risvegliandolo alla necessità di essere vigile sul suo entorno. La percezione acuta che la notte si avvicinava portò con sé l'urgenza di trovare rifugio. Il freddo, intensificato dall'impeto del vento proveniente dall'ovest, lo spinse a prendere precauzioni immediate. Negli ultimi istanti di luminosità, identificò una imponente roccia e alcuni rami sporgenti, da cui costruì una rudimentale capanna. Con maestria improvvisata, la rivestì con foglie abbondanti sul terreno. Strategicamente, costruì il rifugio sul lato opposto alla pietra, contrastando l'impeto del vento crudele. Lì, tra il riparo improvvisato e il mormorio della natura notturna, si preparò ad affrontare un'altra notte, rifugiandosi nella fugacità del rifugio che aveva scolpito con le sue stesse mani. Estenuato, si abbandonò al sonno, immergendosi in un turbine di sogni e incubi che si susseguivano incessantemente. Immagini veloci della sua fuga e della casa paterna danzavano davanti ai suoi occhi chiusi. Si svegliò più volte nella notte, e quasi all'alba, sotto le prime luci che tingevano l'orizzonte, notò che il vento aveva perso la sua furia, cedendo il posto a una nevicata implacabile, dove i fiocchi bianchi diventavano padroni del paesaggio. Accoccolato sopra lo strato generoso di foglie secche che aveva improvvisato come letto e coperta, sperimentò una sensazione di protezione, un fugace rifugio nella tempesta del suo viaggio. Conosceva intimamente quella regione montuosa, simile alle terre dove aveva vissuto fino ai dodici anni, prima di varcare le porte del seminario. Nei tempi passati, insieme al padre e ai fratelli, esplorava i sentieri tra le montagne, guidando le mucche nei pascoli nascosti tra gli alberi. Era consapevole che in quei terreni accidentati esistevano rifugi, santuari eretti per la salvezza dei montanari colti di sorpresa in mezzo a una tempesta di neve improvvisa e implacabile. Nutriva la speranza di trovare quei rifugi, fari di salvezza nella vastità imprevedibile della montagna.


Passaggio del libro 'La Fuga dei Dolomiti' di Luiz Carlos B. Piazzetta
Continua