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domingo, 1 de setembro de 2024

A Emigração Veneta como Ato de Rebeldia

 


A Emigração Veneta como Ato de Rebeldia


A emigração veneta, especialmente a partir de meados do século XIX, pode ser compreendida como uma forma de protesto silencioso, mas potente, contra as injustiças sociais, econômicas e políticas que afligiram essa região da Itália ao longo dos séculos. Para entender esse fenômeno, é fundamental contextualizar o povo veneto dentro da complexa história que se desenrolou após a queda da Sereníssima República de Veneza, uma entidade que, por quase mil anos, havia garantido certa estabilidade e prosperidade ao seu povo.

Com a invasão de Napoleão em 1796 e a subsequente anexação do Vêneto ao Império Austríaco, a vida dos venetos começou a mudar drasticamente. A antiga serenidade da República Veneziana foi substituída pela rigidez e austeridade do domínio austríaco, que, embora garantisse uma relativa segurança, não conseguia mais prover a mesma qualidade de vida. A frase popular "Com a Sereníssima almoçávamos e jantávamos; com Cesco Bepi almoçávamos; com os Savoia, nem almoçávamos, nem jantávamos" expressa com clareza a percepção de um povo que viu sua situação deteriorar-se rapidamente.

Com a unificação da Itália sob a Casa de Savoia, o cenário para os venetos tornou-se ainda mais desolador. A degradação econômica que já se fazia sentir sob o domínio austríaco foi exacerbada pela pressão dos novos impostos e pela instabilidade política do recém-criado Reino da Itália. Os pequenos agricultores, que por gerações haviam vivido como meeiros ou proprietários de pequenas parcelas de terra, viram-se cada vez mais espremidos entre os altos impostos e a necessidade de vender suas terras para sobreviver.

A emigração, nesse contexto, surgiu como uma resposta natural, quase inevitável, para muitos venetos. Incentivada pelas autoridades e muitas vezes também pelos sermões dos padres nas igrejas, que viam na emigração uma forma de evitar um conflito armado iminente, essa fuga em massa não foi apenas uma busca por melhores condições de vida. Foi, sobretudo, um ato de resistência passiva contra os "senhores de terras" que haviam explorado esses trabalhadores por tanto tempo. A expressão "Tasi sempre, Obedire sempre", que havia caracterizado a relação dos venetos com seus patrões e com a Igreja, começou a perder força à medida que esses camponeses decidiram, em grande número, buscar uma nova vida em terras distantes, especialmente nas Américas.

Esse êxodo massivo foi um golpe para a velha ordem social. De repente, aqueles que haviam exercido poder e controle sobre os trabalhadores rurais, se viram sem mão de obra para trabalhar suas terras. Em uma virada irônica do destino, muitos dos antigos proprietários de terras, antes poderosos, foram forçados a sujar as mãos no trabalho duro que antes delegavam, pois não tinham mais quem o fizesse por eles.

Assim, a emigração veneta pode ser vista como uma forma de protesto contra a opressão e a exploração, uma maneira de dizer "basta" a uma situação insustentável. Foi um movimento impulsionado pelo desejo de uma vida melhor, mas também por um sentimento profundo de revolta e de não conformidade com uma realidade que havia se tornado intolerável. Para os venetos, emigrar não foi apenas uma escolha econômica; foi um ato de dignidade e resistência, uma forma de reivindicar o direito de viver com dignidade, mesmo que isso significasse deixar para trás a terra dos antepassados e buscar novos horizontes em lugares desconhecidos.


sexta-feira, 22 de dezembro de 2023

Gatos Venezianos: Guardiões da Salvação e Testemunhas da Peste


 


A festividade da Madonna della Salute, celebrada em 21 de novembro em Veneza, é profundamente enraizada na história da cidade, especialmente durante a terrível epidemia de peste bubônica que assolou o norte da Itália entre 1630 e 1631. Como mencionado por Alessandro Manzoni em "I Promessi Sposi", essa epidemia teve um impacto devastador na população veneziana.

A transmissão da peste bubônica ocorria principalmente através das pulgas dos ratos, que eram abundantes em áreas urbanas densamente povoadas. Para combater essa ameaça, os venezianos recorreram aos gatos, conhecidos por sua habilidade na caça a roedores. Durante a era da Sereníssima, quando Veneza era uma potência marítima, os gatos eram incluídos nas embarcações que partiam em longas viagens comerciais ao Oriente.

Os venezianos não escolhiam gatos comuns; eles preferiam raças específicas conhecidas por sua agilidade e destreza na caça, como os "soriani" importados da Síria. No entanto, mesmo com essas precauções, o risco de transportar ratos inadvertidamente em navios comerciais persistia. Diante dessa ameaça contínua, os venezianos organizaram expedições à Dalmácia para abastecer os navios com gatos adicionais, que eram então soltos pelas ruas e praças da cidade.

Esses elegantes felinos venezianos rapidamente se tornaram parte integrante da vida na cidade. Os venezianos nutriam um carinho especial por esses animais, reconhecendo sua importância na proteção contra a propagação da peste. Mesmo diante da tragédia da epidemia, os gatos permaneceram como figuras fundamentais na história de Veneza, sendo considerados heróis peludos que contribuíram para preservar a saúde da população.

Além do papel prático dos gatos na defesa contra os roedores durante a epidemia, sua presença na cultura veneziana ganhou contornos especiais. Os gatos não eram apenas considerados guardiões eficazes contra a peste, mas também adquiriram um significado simbólico na vida cotidiana dos venezianos. Sua elegância e agilidade eram admiradas, e muitos viam neles uma representação da graça e da destreza que a cidade buscava em tempos difíceis.

Durante as expedições à Dalmácia para trazer mais gatos, os venezianos não apenas garantiam a segurança sanitária da cidade, mas também reforçavam a conexão única entre Veneza e esses animais. Os gatos tornaram-se parte integrante da identidade veneziana, simbolizando não apenas a resistência contra a peste, mas também a resiliência e a adaptação em face das adversidades.

Com o tempo, a presença dos gatos em Veneza foi além da necessidade prática de controle de pragas. Os venezianos desenvolveram uma relação afetuosa com esses animais, muitas vezes cuidando deles e proporcionando-lhes um lar nos becos e praças pitorescas da cidade. Esses felinos não eram apenas guardiões da saúde pública, mas também companheiros estimados, e essa ligação especial persiste na mentalidade veneziana até os dias de hoje.

Atualmente, enquanto caminhamos pelas ruelas de Veneza, podemos capturar vislumbres fugazes desses descendentes dos valentes gatos da época da peste. A presença de gatos nas ruas venezianas serve como uma ponte viva para o passado, uma lembrança das lutas enfrentadas pela cidade e da resiliência que a caracteriza. Esses felinos, muitas vezes solitários, tornam-se embaixadores silenciosos de uma época em que Veneza contou com sua destemida população de gatos para superar uma das mais desafiadoras crises de sua história.