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quarta-feira, 17 de abril de 2024

Além do Horizonte: A Viagem de Retorno


 

Em uma das muitas jornadas do navio a vapor Carlo R, da renomada companhia de navegação Carlo Raggio, uma família italiana embarcou rumo ao desconhecido horizonte do Brasil. Pietro e Maddalena, com seus três filhos Giacomo, Aurora e Giovanni Battista, estavam repletos de esperança e expectativas enquanto deixavam para trás sua terra natal, Nápoles, no dia 27 de julho de 1893.
O Carlo R., com seus 101 metros de comprimento e 13 metros de largura, era uma relíquia adaptada às pressas para o transporte de passageiros em meio ao auge da emigração italiana. A bordo, cerca de 1.400 almas se amontoavam em condições precárias, uma situação agravada pela epidemia de cólera que assolava Nápoles naquele ano.
No quarto dia de viagem, o temor se concretizou quando um caso da doença surgiu a bordo. Ao invés de retornar ao porto de origem para tratamento adequado, o comandante optou por continuar a travessia, ocultando a gravidade da situação das autoridades locais. O resultado foi uma rápida propagação da epidemia entre os passageiros, transformando o navio em um verdadeiro inferno flutuante.
Quando o Carlo R. finalmente alcançou o porto do Rio de Janeiro, juntou-se a outros navios italianos igualmente atormentados pela tragédia. O Remo e o Vicenzo Florio compartilhavam do mesmo destino sombrio, com mortes a bordo e uma carga humana enferma.
Diante da ameaça de uma epidemia em território brasileiro, as autoridades decidiram não permitir o desembarque dos passageiros. Os navios foram escoltados para uma distante região próxima à Ilha Grande, onde passaram por desinfecção e reabastecimento.
Enquanto aguardavam uma decisão final, a angústia se instalava entre os passageiros, incluindo a família de Pietro e Maddalena. A incerteza do futuro pairava sobre eles como uma sombra constante.
Após semanas de espera, a ordem finalmente chegou: retornar à Itália. O procedimento padrão internacional para casos semelhantes exigia que os navios regressassem com sua carga humana. Para Pietro e Maddalena, era um retorno amargo, marcado pela dor das perdas sofridas durante a travessia e pela incerteza do que encontrariam ao voltar para casa.
Anos depois, em um tribunal italiano, o comandante do Carlo R. e a companhia responsável foram julgados e condenados pelas mortes ocorridas naquela fatídica viagem. No entanto, para Pietro e Maddalena, as cicatrizes daquela tragédia nunca desapareceriam completamente, permanecendo como testemunhas silenciosas de uma jornada marcada pela dor e pela perda.


sexta-feira, 22 de dezembro de 2023

Gatos Venezianos: Guardiões da Salvação e Testemunhas da Peste


 


A festividade da Madonna della Salute, celebrada em 21 de novembro em Veneza, é profundamente enraizada na história da cidade, especialmente durante a terrível epidemia de peste bubônica que assolou o norte da Itália entre 1630 e 1631. Como mencionado por Alessandro Manzoni em "I Promessi Sposi", essa epidemia teve um impacto devastador na população veneziana.

A transmissão da peste bubônica ocorria principalmente através das pulgas dos ratos, que eram abundantes em áreas urbanas densamente povoadas. Para combater essa ameaça, os venezianos recorreram aos gatos, conhecidos por sua habilidade na caça a roedores. Durante a era da Sereníssima, quando Veneza era uma potência marítima, os gatos eram incluídos nas embarcações que partiam em longas viagens comerciais ao Oriente.

Os venezianos não escolhiam gatos comuns; eles preferiam raças específicas conhecidas por sua agilidade e destreza na caça, como os "soriani" importados da Síria. No entanto, mesmo com essas precauções, o risco de transportar ratos inadvertidamente em navios comerciais persistia. Diante dessa ameaça contínua, os venezianos organizaram expedições à Dalmácia para abastecer os navios com gatos adicionais, que eram então soltos pelas ruas e praças da cidade.

Esses elegantes felinos venezianos rapidamente se tornaram parte integrante da vida na cidade. Os venezianos nutriam um carinho especial por esses animais, reconhecendo sua importância na proteção contra a propagação da peste. Mesmo diante da tragédia da epidemia, os gatos permaneceram como figuras fundamentais na história de Veneza, sendo considerados heróis peludos que contribuíram para preservar a saúde da população.

Além do papel prático dos gatos na defesa contra os roedores durante a epidemia, sua presença na cultura veneziana ganhou contornos especiais. Os gatos não eram apenas considerados guardiões eficazes contra a peste, mas também adquiriram um significado simbólico na vida cotidiana dos venezianos. Sua elegância e agilidade eram admiradas, e muitos viam neles uma representação da graça e da destreza que a cidade buscava em tempos difíceis.

Durante as expedições à Dalmácia para trazer mais gatos, os venezianos não apenas garantiam a segurança sanitária da cidade, mas também reforçavam a conexão única entre Veneza e esses animais. Os gatos tornaram-se parte integrante da identidade veneziana, simbolizando não apenas a resistência contra a peste, mas também a resiliência e a adaptação em face das adversidades.

Com o tempo, a presença dos gatos em Veneza foi além da necessidade prática de controle de pragas. Os venezianos desenvolveram uma relação afetuosa com esses animais, muitas vezes cuidando deles e proporcionando-lhes um lar nos becos e praças pitorescas da cidade. Esses felinos não eram apenas guardiões da saúde pública, mas também companheiros estimados, e essa ligação especial persiste na mentalidade veneziana até os dias de hoje.

Atualmente, enquanto caminhamos pelas ruelas de Veneza, podemos capturar vislumbres fugazes desses descendentes dos valentes gatos da época da peste. A presença de gatos nas ruas venezianas serve como uma ponte viva para o passado, uma lembrança das lutas enfrentadas pela cidade e da resiliência que a caracteriza. Esses felinos, muitas vezes solitários, tornam-se embaixadores silenciosos de uma época em que Veneza contou com sua destemida população de gatos para superar uma das mais desafiadoras crises de sua história.



domingo, 12 de março de 2023

Epidemia de Cólera a Bordo do Navio de Imigrantes



A família Esposito, composta por seis pessoas, partiu de Nápoles, na Itália, em direção ao Brasil em 1889, junto com centenas de outros imigrantes daquela região meridional. Eles esperavam encontrar uma vida melhor do outro lado do oceano, mas em vez disso encontraram uma viagem cheia de dificuldades. A bordo do navio em que viajavam, uma epidemia de cólera se espalhou rapidamente entre os passageiros e tripulantes, deixando muitos deles doentes e fracos. Muitos imigrantes e alguns tripulantes morreram durante a travessia e foram sepultados no mar. 

A jornada de navio dos Esposito começou com muito entusiasmo e esperança. A família se despedia de seus parentes e amigos em Nápoles com lágrimas nos olhos e corações pesados, mas com a promessa de um futuro melhor. No entanto, a viagem não foi tão tranquila quanto eles imaginavam. 

Logo na primeira semana a bordo, o chefe da família, Vittorio, começou a sentir-se mal. Ele tinha febre alta, dores abdominais e muita diarreia. A mãe, Maria, ficou preocupada e pediu ajuda ao médico do navio. Mas o médico, um jovem profissional recém saído dos bancos da Universidade de Nápoles, não tinha muita experiência com epidemias e logo muitos outros passageiros começaram a apresentar os mesmos sintomas. 

Os dias se passavam e a situação a bordo piorava. O cólera se espalhou rapidamente pelo navio, deixando muitos passageiros doentes e fracos. A comida e a água que eram escassas, e a higiene bastante precária. Maria tentava manter a calma e cuidar de sua família, mas estava cada vez mais difícil.

Já tinham ocorrido diversas mortes entre os passageiros mais debilitados, quase todos idosos ou crianças. A situação chegou a um ponto crítico quando o navio se aproximou do porto do Rio de Janeiro, onde esperavam ser recebidos e tratados para controlar a epidemia. Mas, para surpresa de todos, as autoridades sanitárias brasileiras se recusaram a permitir a entrada do navio no porto. O medo de que a epidemia se espalhasse pelo país foi a justificativa dada e esta era a conduta que todos os países do mundo adotavam para casos semelhantes.

A família Esposito e os demais passageiros ficaram desesperados. Eles não sabiam o que fazer ou para onde ir. Muitos passageiros morreram durante essa espera no navio, e a situação se tornou ainda mais desesperadora quando a comida e a água acabaram. 

Os Esposito e os sobreviventes da epidemia foram obrigados a permanecerem a bordo do navio por dias, com ele ancorado em alto mar, a alguns quilômetros fora do porto, à espera da autorização de desembarque das autoridades brasileiras. Foram dias muito tensos, de grande angústia e incerteza para todos. A única coisa que podiam fazer era orar e esperar por um milagre. 

Finalmente, depois de muito tempo, veio a temida notícia que ninguém queria ouvir: as autoridades sanitárias brasileiras não permitiram que os passageiros e a tripulação desembarcassem e nem mesmo que o navio ancorasse no porto. Era o tão temido "Torna Viagem" quando os imigrantes estavam quase concretizando o sonho de uma vida nova, viam seus planos irem por água abaixo, e necessitavam retornar à Nápoles.

O "Torna Viagem" foi um processo que ocorreu no Brasil durante o século XIX, quando navios que transportavam imigrantes para o porto do Rio de Janeiro eram impedidos de desembarcar devido à ocorrência de epidemias a bordo, especialmente o temível cólera. Em vez de desembarcar os passageiros, esses navios eram obrigados a retornar para seus portos de origem com todos os imigrantes a bordo.

Esse processo foi adotado como medida preventiva para evitar a propagação de doenças contagiosas no país. Os navios que chegavam ao porto do Rio de Janeiro eram submetidos a inspeções sanitárias rigorosas e, caso fossem detectados casos de doenças contagiosas com a ocorrência de mortes durante a viagem, especialmente o temível cólera, os passageiros eram impedidos de desembarcar. Esses navios eram então obrigados a retornar para seus portos de origem com toda a sua carga de sofrimento a bordo, em um processo conhecido como "Torna Viagem".

O processo de "Torna Viagem" foi bastante controverso na época, pois muitos outros imigrantes morriam durante a viagem de retorno devido às condições precárias a bordo e à falta de assistência médica adequada. Além disso, muitos imigrantes que chegavam ao Brasil em busca de uma vida melhor acabavam sendo obrigados a retornar para seus países de origem sem conseguir realizar seus sonhos.

Apesar das críticas, o processo de "Torna Viagem" foi mantido no Brasil até o início do século XX, quando medidas mais eficazes de controle de doenças contagiosas foram implementadas. Hoje, o "Torna Viagem" é lembrado como um triste capítulo da história da imigração no Brasil.

Os Esposito e os demais passageiros, depois de mais de vinte dias de sofrimento em um navio que enfrentava uma grave epidemia de cólera, finalmente chegaram no porto de Nápoles, foram retirados do navio, mas muitos deles estavam em estado grave. Os médicos e as autoridades locais trabalharam arduamente para controlar a epidemia e ajudar os doentes foram encaminhados para um hospital de Napoli, onde receberam tratamento e cuidados médicos.

A epidemia de cólera que os Esposito e os demais passageiros enfrentaram durante a viagem foi uma experiência traumática que os marcou para sempre. Eles aprenderam a valorizar a vida e a saúde, e a nunca subestimar os perigos que as doenças podem trazer. 

O desejo de fugir da Itália era tão forte que logo após se recuperarem da doença, Vittorio e a família decidiram que era hora de recomeçar e empreenderam novamente a viagem para o Brasil. Desta vez a viagem foi tranquila e chegaram com saúde ao Rio de Janeiro. Eles tinham perdido tudo o que possuíam durante aquela fatídica viagem, mas estavam determinados a reconstruir suas vidas no Brasil. Eles conseguiram um contrato de trabalho no interior do estado de São Paulo, em uma grande fazenda de café. 

A vida na fazenda não era fácil, mas já era uma melhoria em relação à situação em que se encontravam na Itália e durante a viagem de navio. Eles trabalhavam duro limpando os milhares de pés de café a eles confiados, fazendo economia de todo o dinheiro que conseguiam ganhar, na esperança de melhorar suas condições de vida no futuro. 

De fato, com o tempo, a família Rossi conseguiu comprar e se estabelecer em um lote na periferia de uma cidade paulista e principalmente prosperar. Mais tarde chegaram a abrir um pequeno negócio para comercializar os produtos que produziam em seu pequeno sítio. Aos poucos, este comércio se tornou um ponto de referência na cidade, e eles passaram a ser respeitados e admirados pela comunidade. 

Apesar de tudo o que passaram, os Esposito nunca esqueceram das dificuldades que enfrentaram durante aquela viagem de navio. Eles sempre lembravam da epidemia de cólera que quase lhes custou a vida, e do medo e incerteza que sentiram a bordo do navio e a desilusão de ter que retornar para a Itália. 

A família Esposito se tornou um exemplo de resiliência e superação, e sua história inspirou muitas outras pessoas a lutar por um futuro melhor.

Conto de
Dr. Luiz Carlos B. Piazzetta
Erechim RS