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sábado, 8 de julho de 2023

Embarque dos Sonhos: A Epopeia dos Emigrantes Vênetos

 




Nas águas rebeldes do oceano, um canto murmura em meus ouvidos, 
Histórias de emigrantes, aventuras de vida entre ondas e céus. 
Navegavam os corajosos vênetos rumo ao desconhecido, 
Levando esperanças, sonhos e o coração cheio de voto.

Mas nem tudo era sereno, o destino adverso agia, 
Doenças e pestes infestavam o navio, suspira. 
As epidemias impávidas dançavam entre os passageiros, 
Ceifando vidas, apagando sorrisos, como tristes mensageiros.

A triste travessia, com destino desconhecido adiante, 
A terra distante, promessa de um novo encanto, 
Mas a morte pairava, invisível e implacável, 
Roubando sonhos e esperanças, lágrimas sulcando o rosto amável.

As famílias se abraçavam, corações angustiados, 
Observavam seus filhos, frágeis seres que a peste assolava. 
Não podiam desembarcar, o Rio de Janeiro era proibido, 
A cólera se espalhava, maldita, implacável sopro destemido.

O mar devolvia os emigrantes, como um cruel bumerangue, 
Retorno à pátria, de mãos vazias e corações em frangalhos. 
As famílias desesperadas, esperanças despedaçadas como cristais, 
O destino havia brincado, cruel, entre mil ais.

Contudo, entre lágrimas e dores, 
Resiliência e coragem brilhavam, um fogo de valores. 
Os emigrantes, apesar de tudo, não se rendiam, 
No coração, a chama viva, o amor e a fé que mantinham.

Agora, recordemos essas almas fortes e corajosas, 
Que enfrentaram tempestades e doenças medonhas. 
Seu sacrifício, sua luta contra o desconhecido, 
Permanecem na história, tesouros valiosos, jamais esquecidos.

Aquelas embarcações de dor, entre as ondas do oceano infinito, 
Levavam sonhos quebrados e esperanças de um mundo florescido. 
Na memória daqueles emigrantes, perpetuamos sua história, 
E prestamos homenagem à sua força, à sua memória.

Nas águas rebeldes do tempo, suas vozes ecoam, 
Atravessando séculos, como um eterno perdurar. 
As epidemias, as doenças e a morte não podem apagar, 
O legado daqueles emigrantes, sua vontade de lutar.

Assim, no dialeto vêneto, quero cantar, 
As peripécias de nossos antepassados, a árdua travessia pelo mar. 
Lembremo-nos deles com amor, como estrelas que brilham no céu, 
Emigrantes corajosos, guardados em nossos corações, eternamente fiéis.


de Gigi Scarsea
erechim rs



terça-feira, 23 de maio de 2023

Da Itália ao Brasil: Um Caminho Permeado por Doenças na Saga dos Imigrantes Italianos




Durante o século XIX e início do século XX, milhões de italianos migraram para as Américas, incluindo o Brasil, em busca de melhores oportunidades devido ao crescimento populacional, crises político-econômicas e escassez de alimentos na Itália. A viagem para o Brasil costumava ser longa e árdua, com imigrantes viajando de navio a vapor em condições precárias, mal acomodados. Os navios eram velhos, até então somente usados para transporte de mercadorias e precariamente adaptados para o transporte de passageiros. Esses navios, eram muitas vezes chamados de "navios da morte" pela imprensa italiana da época, estavam frequentemente superlotados e careciam de instalações sanitárias e médicas adequadas. A falta de higiene adequada e o confinamento forçado por várias semanas criavam as condições ideais para o surgimento e propagação de doenças entre os passageiros, afetando preferencialmente os mais debilitados, as crianças e os idosos. Na verdade as epidemias não eram incomuns nesses navios, e várias são os tristes relatos de imigrantes italianos que adoeceram e até perderam a vida durante a travessia. Um exemplo bem conhecido é o do navio Matteo Bruzzo, que experimentou um surto de cólera durante sua viagem de três meses em 1884, com inúmeros passageiros morrendo da doença. O navio não recebeu ordens para desembarcar seus passageiros, nem mesmo tripulantes puderam descer, empreendendo viagem de volta ao porto de saída na Itália. Medidas de quarentena foram implementadas a partir do século XIV para proteger as cidades costeiras de epidemias de peste e no decorrer do tempo se tornaram mais rígidas e usadas quando ocorria outras epidemias graves, como o cólera. Os navios que chegavam de portos infectados, ou que tivessem tido episódios de epidemia a bordo, eram obrigados a permanecer fundeados por um determinado período antes do desembarque. No final do século XIX, com o grande aumento das viagens transoceânicas facilitadas pelo surgimento dos navios a vapor, surtos de cólera em navios de passageiros que chegavam da Europa levaram à prática de protocolos de quarentena ainda mais rígidos. No entanto, essas medidas nem sempre eram eficazes na prevenção da propagação de doenças entre os imigrantes que já se encontravam a bordo. Com base nos resultados de documentos da época, cólera, tifo, sarampo e tuberculose foram as doenças mais comuns a bordo de navios que transportavam imigrantes italianos para o Brasil durante o século XIX e início do século XX. Ao chegar ao Brasil, a saúde dos imigrantes italianos provavelmente estava mais comprometida devido às doenças que contraíram durante a viagem. O sistema imunológico enfraquecido dos imigrantes os tornava mais suscetíveis a outras doenças presentes no Brasil. Ao chegarem em nosso país, os imigrantes italianos enfrentaram diversas condições de vida dependendo da região em que se instalaram. No sul do Brasil, os imigrantes italianos foram assentados em colônias isoladas, no meio da floresta, mais tarde em outros assentamentos mais desenvolvidos, em cidades maiores, como é o caso de Curitiba, enquanto no sudeste do Brasil vivenciavam condições similares a semi-escravidão nas grandes plantações de café. Muitas rebeliões contra os fazendeiros brasileiros ocorreram devido a essas duras condições, e as denúncias públicas causaram grande comoção na Itália chegando a proibição da saída de emigrantes para São Paulo.
Apesar dos desafios e riscos enfrentados pelos imigrantes durante a sua viagem para o Brasil, sua chegada contribuiu significativamente para o desenvolvimento econômico e a diversidade cultural do país. A grande maioria dos imigrantes italianos vieram principalmente como trabalhadores rurais, desempenhando um papel crucial no crescimento da economia do Brasil.


quarta-feira, 8 de março de 2023

Naufrágios e Epidemias Navios com Emigrantes Italianos

Navio Principessa Mafalda



A partir dos últimos 25 anos do século XIX milhões de empobrecidos italianos tiveram que deixar o seu país em busca de uma vida melhor, nos novos países do outro lado do oceano. 

Assim, os Estados Unidos, Brasil e Argentina se tornaram os destinos mais ambicionados por aqueles emigrantes. Após a segunda guerra mundial, na década de 1950 também a Austrália recebeu grandes contigentes de italianos.

No início da grande emigração italiana a longa travessia do Atlântico foi realizada em condições bastante precárias. Navios antigos de transporte de cargas, alguns deles já prestes a ser aposentados como sucata foram, rapidamente, transformados e navios de passageiros.

As más condições de conservação dos lentos navios e a falta de higiene a bordo eram motivos de grandes epidemias e desastres.

No navio Città di Turin, em novembro de 1905, houve 45 mortes, dos seus 600 passageiros que estavam a bordo, no navio a vapor Matteo Bruzzo, em 1884, morreram 20 pessoas por cólera dos 1.333 passageiros que estavam a bordo; no navio Carlo Raggio, em 1888, ocorreram 18 mortes por fome e em 1894 206 morreram de doença; também em 1888, no navio Cachar, 34 emigrantes morreram de fome e asfixia; no navio Friesland em 1889, 27 pessoas morreram por asfixia e mais de 300 adoeceram; no navio argentino Parà, em 1889, 34 emigrantes morreram de sarampo; no navio Remo, em 1893, 96 morreram de cólera e difteria; no Andrea Doria, em 1894, que levava 1.317 emigrantes, 159 faleceram; no Vincenzo Florio, em 1894, aconteceram 20 mortos.

Em 17 de março de 1891, no naufrágio do navio Utopia, após colidir com um navio de guerra da Inglaterra no porto de Gibraltar, morreram 576 emigrantes italianos que se dirigiam aos Estados Unidos, dos mais de 880 passageiros embarcados; em 4 de julho de 1898, ocorreram 549 mortes na tragédia do navio Borgonha nas costas da Nova Escócia; em 4 de agosto de 1906, no naufrágio do navio Sirio na Espanha, houveram 550 mortes, muitas das quais de italianos.

Em 25 de outubro de 1927 nas costas do Brasil, na altura do Arquipélago de Abrolhos, litoral da Bahia, naufragou o navio a vapor Principessa Mafalda, nome dado em homenagem a segunda filha do Rei Vitor Emanuel III, Mafalda de Savoia. Apesar de ser um navio construído em 1908 era considerado muito rápido, pois fazia o trecho Itália - Argentina em apenas 14 dias. 

Foi um dos piores desastre para os emigrantes italianos. O barco com cerca de 300 tripulantes, transportava cerca de 1.000 passageiros de várias nacionalidades, a grande maioria emigrantes italianos. 

Alguns dos sobreviventes passaram pela Hospedaria de Imigrantes do Brás: 7 húngaros e 36 italianos. As famílias Yori, Rupolo, Petina, Silvino, Massassite, De Rossi, Strufaldi, Forner, Lovato, Panarotti, Puldeghinio, Da Tonia, Beck, Strobel, Piretto e Ban. 

Eram indivíduos que vinham para o Brasil pela primeira vez e outros já acostumados com viagens marítimas, que já tinham morado em São Paulo por algum tempo. Dentre tais pessoas, algumas crianças: Maria Rupolo, de 2 anos e meio; os irmãos Aldo Silvino, de 3 anos e meio e Marcella Silvino de 6 anos; as irmãs Octavia e Maria Petina, de 2 anos e 3 meses respectivamente; os irmãos Ginita (7 anos), Puscheira (6 anos), Rino (4 anos) e Danilo (2 anos) acompanhados da mãe Maria Forner; Augusto, de 3 anos; mais uma Maria e um Eurico, ambos com apenas um ano. Quase trinta por cento dos sobreviventes que passaram pela Hospedaria eram crianças bem pequenas. 



Texto 
Dr. Luiz Carlos B. Piazzetta
Erechim RS




sexta-feira, 11 de março de 2022

Morte a Bordo O Emocionante Relato de uma Mãe em um Navio de Emigrantes Italianos






Em uma reportagem publicada pelo jornal italiano Corriere della Sera podemos avaliar o sofrimento de uma mãe emigrante ao perder a sua filha durante a travessia.

"Durante a viagem no lento vapor a minha filha começou a ter febre. Era uma febre muito forte, cada vez mais alta. Eu ficava com ela dia e noite, apavorada não sabia o que fazer. Uma noite a ouvi gemer, estava suando frio, tremendo; tentei aquecê-la e segurá-la perto de mim, mas de repente ela parou de tremer. Estava morta. Morta! Talvez porque não haviam remédios, talvez porque não havia nenhum atendimento médico à bordo; não sei. Talvez ela tivesse contraído uma febre mortal”.
"Arrancaram ela dos meus braços, a enfaixaram bem apertado da cabeça aos pés e amarraram uma grande pedra ao pescoço; durante a noite, às duas horas da madrugada, com aquelas ondas tão negras, a jogaram ao mar. Eu gritava, gritava, não queria me afastar dela, queria me afogar com minha filhinha; alguns braços me seguraram, homens eu creio. Eu não queria que minha filhinha tão pequenina acabasse naquele mar tão frio, tão escuro, certamente seria devorada pelos peixes. Eu queria ir com ela, protegê-la de alguma forma, defendê-la, para que eles não a devorassem. Eu não queria deixá-la sozinha, pobre criança, mas eles me seguraram enquanto a jogavam ao mar. Aquele baque na água, nunca mais consegui esquecer”.

Durante o grande êxodo italiano, período da grande emigração italiana compreendido entre o final do século XIX até a eclosão da I Grande Guerra Mundial, milhões de italianos tiveram de abandonar os seus lares para enfrentar o desconhecido em direção ao continente americano na esperança de uma vida melhor.

Para transportar esses milhões de desesperados emigrantes foram então necessárias milhares de travessias do oceano Atlantico em navios. Nos primeiros anos elas eram feitas em velhos barcos, alguns deles inclusive à vela, muito lentos e sem qualquer conforto à bordo, para enfrentarem muitas vezes mais de um mês de travessia.

Devido as precárias acomodações disponíveis à bordo, os emigrantes eram sujeitos a uma vida promiscua nos porões dessas embarcações. A falta de ventilação adequada, a deficiente higiene pessoal dos passageiros e dos locais onde dormiam, a falta de água e de instalações sanitárias adequadas para os dejectos dos imigrantes, o excesso de passageiros, às vezes muito além da cota permitida pelas autoridades portuárias, a péssima qualidade dos alimentos fornecidos, em muitos casos até a quantidade ficava abaixo do ideal, minavam a resistência física dos embarcados que ficavam assim mais sujeitos as doenças infecciosas.

O exame médico feito ao embarcarem, quando o faziam, era muito superficial e doenças transmissíveis podiam estar circulando entre os passageiros, sem serem detectadas. Quando então, em condições favoráveis, ocorria uma epidemia à bordo, que era um acontecimento muito sério pois, em poucos dias, podia matar dezenas e dezenas de passageiros.

Algumas doenças hoje controladas eram muito frequentes naquele período, algumas vezes podiam estar ocorrendo graves epidemias em cidades européias ou americanas. 

Entre essas doenças com potencial para eclodir fatais epidemias à bordo temos a difteria, que atingia especialmente as crianças, podendo matá-las em poucos dias. Ela causava febre muito alta e obstrução das vias aéreas superiores, matando por sufocamento o pequeno doente. A transmissão é por via aerea, através de gotículas de saliva ou de catarro, expulsos durante a tosse. O cólera também era uma doença muito grave, especialmente, em um ambiente confinado como de um navio com higiene precária. É uma infecção que além de febre muito alta, ataca as vias digestivas provocando vômitos e diarréia profusa. Sem tratamento pode levar à morte por desidratação em poucos dias. Atinge crianças e adultos, não respeitando a idade.

As intoxicações alimentares, as infecções respiratórias, o sarampo, a coqueluche e a tuberculose também ceifaram muitas vidas de emigrantes à bordo.



   

quinta-feira, 19 de agosto de 2021

Torna Viagem

 


A longa viagem transoceânica, enfrentada pelos nossos antepassados na ânsia por uma vida melhor, foi sem dúvida uma empreitada repleta de situações de risco. Entre elas as doenças transmissíveis que surgissem a bordo podiam rapidamente se transformar em sérias epidemias impossíveis de serem controladas.

Os imigrantes italianos que chegavam ao Brasil  já a partir das últimas décadas do século XIX, deviam obrigatoriamente, como também todos aqueles de outras nacionalidades, passar por uma inspeção de saúde e vistoria das embarcações para o controle de epidemias que pudessem ter ocorrido a bordo, durante a longa travessia. 

Centenas de pessoas mal nutridas, amontoadas em velhos e lentos navios, dividindo, por várias semanas, reduzidos espaços abafados devido a má ventilação, sem instalações higiênicas adequadas e com insuficiência de água para a higiene pessoal, se tornavam presas fáceis para a eclosão e disseminação de doenças infecciosas graves, as quais podiam levar a morte em poucos dias, tais como o tifo, o cólera e outras doenças infantis que causaram inúmeras perdas de vida.

Pensando na proteção da saúde da população das nossas cidades, o governo imperial brasileiro decretou que a entrada de imigrantes no país deveria ser realizada somente pelo porto do Rio de Janeiro. Para isso, construiu na Ilha das Flores uma Hospedaria para Imigrantes, um Lazareto e o Hospital de Isolamento de Jurujuba, tudo com o propósito de minimamente acolher os enfermos e os portadores de moléstias contagiosas em um regime de quarentena.

Por acordos internacionais, os navios que transportavam grande número de passageiros  deveriam sempre ter um médico responsável a bordo e quando surgisse alguma epidemia ele deveria obrigatoriamente informar as autoridades portuárias, no momento do desembarque. Também por esse acordo as companhias de navegação marítima eram obrigadas a manter um relatório minucioso e atualizado dos casos médicos e óbitos ocorridos durante todo o período da viagem. Este relatório, assinado pelo médico de bordo, deveria ser entregue às autoridades sanitárias do porto de desembarque. 

Se em algum navio surgisse alguma epidemia, o capitão deveria, ao entrar no porto, hastear uma bandeira de cor amarela no mastro da embarcação, para indicar a presença de doenças transmissíveis a bordo.   

Esses navios com doenças transmissíveis a bordo não recebiam permissão para atracar no porto e deveriam se manter ao largo, longe da costa, até a decisão das autoridades portuárias, após inspeção pelo serviço sanitário brasileiro. Nos casos que os doentes encontrados eram em grande número, excedendo as capacidades de atendimento organizado pelas autoridades sanitárias do porto, a solução encontrada foi proibir definitivamente a atracação do navio, o qual deveria retornar ao porto de origem, com toda a sua carga de imigrantes. Era a cruel ordem de torna viagem que ninguém queria ouvir. 




Nesses casos extremos os navios eram reabastecidos de água potável, medicamentos e víveres para enfrentarem a longa e frustrante viagem de retorno. Muitos foram os imigrantes italianos que tiveram assim abruptamente interrompidos os seus sonhos de uma nova vida. 

Esse foi o triste destino de quatro navios com imigrantes italianos que chegaram ao Brasil entre os meses de agosto e setembro de 1893, ocasião em que grassava uma grande epidemia de cólera na Europa. 

O navio Remo chegou no porto do Rio de Janeiro  zarpando do Porto de Gênova, fazendo uma escala em Nápoles para o embarque de mais passageiros, todos imigrantes com destino ao Brasil. Transportava um número excessivo de passageiros, muito além da capacidade nominal estabelecida para aquele tipo de navio. Transportava um total de 1494 passageiros, a maioria imigrantes.  Na travessia surgiu uma grave epidemia de cólera a bordo, ocasionando várias mortes. Ao chegar no Brasil não recebeu permissão para entrar no Porto do Rio de Janeiro recebendo ordens das autoridades portuárias para permanecer ancorado longe da costa. Após a inspeção realizada pelas autoridades sanitárias do porto foi obrigado a retornar para Itália com todos os seus passageiros e tripulação. 

O navio Andrea Doria chegou ao Porto do Rio de Janeiro em 12 de setembro de 1893 pelos mesmos motivos também não obteve a permissão para desembarcar os seus passageiros. Durante a travessia tinham ocorrido 91 casos de cólera a bordo e assim o navio recebeu a ordem de retornar ao porto de origem, frustando todos aqueles imigrantes e suas famílias. 

No dia 16 de setembro do mesmo ano foi a vez do navio Vicenzo Florio ser proibido de desembarcar os seus passageiros devido o surgimento de uma epidemia a bordo enquanto atravessava o oceano com destino ao Brasil. Este navio também foi proibido de desembarcar os passageiros ou qualquer membro da tripulação e teve que empreender a viagem de volta ao porto de origem.

No dia 24 de agosto de 1893 o navio italiano Carlo R. chegou ao Porto do Rio de Janeiro com o triste saldo de 100 mortos a bordo causados por um epidemia de cólera e um número muito maior de doentes contaminados. Relatos das autoridades sanitárias e portuárias brasileiras que vistoriaram esse navio nos dão conta que dele exalava um odor insuportável. Não podendo desembarcar seus passageiros no Rio de Janeiro, recebeu ordens de retornar para o porto de origem, levando consigo toda aquela carga de doentes e os seus sonhos de uma nova vida.




Dr. Luiz Carlos B. Piazzetta
Erechim RS





sábado, 24 de outubro de 2020

Miséria e Mortes a Bordo na Travessia do Oceano




Um relato dramático de uma emigrante veneta dos acontecimentos a bordo do navio que a trazia para o Brasil junto com a sua família: "...durante a travessia a menina ficou com febre, uma febre cada vez mais alta. E ficava com ela dia e noite, não sabia o que fazer. Uma noite a ouvi gemer, estava suando frio, tremendo; tentei aquecê-la e segurá-la perto de mim, mas de repente ela parou de tremer. Estava morta. Talvez porque não havia remédios, talvez porque não havia nenhum médico por perto; não sei. Talvez ela tivesse contraído uma febre mortal. Arrancaram ela dos meus braços, a enfaixaram bem apertado da cabeça aos pés e amarraram uma grande pedra ao pescoço; durante a noite, às duas horas da madrugada, com aquelas ondas tão negras, baixaram-na ao mar. Eu gritava, gritava, não queria me afastar dela, queria me afogar com minha filhinha; alguns braços me seguraram, homens eu creio. Eu não queria que minha filhinha tão pequenina acabasse naquele mar tão frio, tão escuro, certamente devorada pelos peixes. Eu queria ser enterrada com ela, protegê-la de alguma forma, defendê-la, para que não a devorassem. Eu não queria deixá-la sozinha, pobre criança, mas eles me seguraram enquanto a jogavam ao mar. Aquele baque na água, nunca mais consegui esquecer”.
"Às duas horas da manhã de 6 de setembro, no porão nº 2, nos braços de seus pais, uma menina de 7 anos morreu, e logo foi jogada ao mar. Às 9 horas, uma outra menina, de 11 meses deixou de viver depois de ter sido hospitalizada, e assim que ela morreu foi jogada ao mar, com o médico e os passageiros presentes." Esta é uma das passagens mais dramáticas do livro A Odisséia do Vapor Remo, um livro de memórias escrito por um passageiro em fevereiro de 1894, poucos meses após o fim da viagem que custou a vida de 96 emigrantes italianos, mortos pelo cólera, tifo e difteria. Este trabalho é pouco conhecido pela historiografia e praticamente desconhecido do grande público, no entanto, seria muito útil torná-lo conhecido, para fornecer uma outra visão do que realmente foi a grande emigração italiana, feita por não poucas tragédias, exploração, falsas promessas, violência e muita rejeição nos portos.



O navio a vapor Remo zarpou do porto de Gênova em 15 de agosto de 1893. Uma parte dos passageiros era procedente das planícies meridionais da província de Modena, que fora duramente atingida pela crise agrária do final do século XIX. Somente no ano de 1888, 415 pessoas emigraram do município de Cavezzo, que tinha uma população de 4.876 habitantes. Uma investigação realizada no ano seguinte no município de Mirandola já relatava as razões deste enorme êxodo, “até então desconhecido numa terra que sempre tinha dado sustento aos seus habitantes". Segundo a mesma investigação as principais causas desta fuga em massa foram "a miséria e a falta de trabalho para agricultores e operários. A maior parte dos camponeses dos nossos campos, carregados com famílias numerosas, carecem de um trabalho diário seguro e lucrativo para si e para os seus. Nossos trabalhadores preferem emigrar na incerteza de uma renda segura, convencidos de que não encontrarão maior pobreza daquela que estão passando em casa”. Segundo um periódico mensal do município de Mirandola, província de Modena, publicado em 1889, podemos ler “...no ano passado famílias inteiras, com seus poucos utensílios domésticos, partiram para Gênova, para embarcar para o longínquo Brasil e La Plata. Portanto, nós também vivemos em primeira mão e fomos testemunhas oculares deste deplorável flagelo da emigração, que já há muito tempo aflige muitas outras partes da Itália. Essa praga está crescendo cada vez mais e a cada dia ameaça assumir formas contagiosas. O êxodo descontrolado dessa população rural, segue o relato do preocupado redator, "entre os quais vemos velhos, mulheres grávidas e crianças chorando de frio e de fome que, perdidas, fugiram de sua pátria ingrata e rumaram para o exterior em busca de destinos melhores, sem garantia certa, ele formou o mais desolador dos espetáculos, que deve também levar em conta todos aqueles que se preocupam seriamente com os interesses nacionais”.





Se a miséria era a causa principal das partidas, os agentes da emigração por sua vez, com seus discursos, panfletos e livrinhos que minimizavam as condições da viagem e ampliavam aquelas oportunidades oferecidas pelos países de destino, dissipavam assim as dúvidas dos incertos, muitas vezes escondendo algumas verdades, muito claras para aqueles que organizaram esse tráfico de homens. Em primeiro lugar, aquela viagem muitas vezes se revelou uma verdadeira odisseia, depois os frequentes casos de engano, ilícito e abuso de poder contra quem decidiu mudar de vida deixando o seu país de origem. No início dos anos noventa do século XIX, existiam dois agentes que operavam na zona de Mirandola. No mesmo periódico mensal "Indicador Mirandolês", com data de 1891, podemos ler"... do nosso município mais de 300 pessoas já partiram este ano para o Brasil, pela Sociedade de Navegação Geral, com as passagens e alimentação pagas. Muitos outros estão se preparando para partir após a colheita dos campos. Um desses emigrantes foi Cesare Malvasi, autor do livro já citado acima. Chegando com a mulher ao porto de Gênova, Malavasi teve que "dar uma boa gorjeta" para os carregadores embarcarem na bagagem, que ultrapassava o peso permitido. A maioria dos emigrantes esperava a partida num grande salão, sentados ou deitados no chão. Continua em seu relato: "Uns comiam, outros dormiam. Vi mulheres que, cansadas dos sofrimentos e da insônia das noites anteriores, dormiam numa espécie de sono letárgico e crianças pequenas que, sem o seu conhecimento, sugavam o leite do peito. Havia choros, gritos, gemidos e palavrões em mil disfarces, causados ​​por diferentes motivos. Fiquei maravilhado com aquela visão, com aquele espetáculo e, se bem me lembro, nunca havia sentido essa emoção em toda a minha vida.”




"Em 15 de Agosto, 900 passageiros começaram a subir a bordo, depois que funcionários da saúde fizeram as vacinas de varíola nas crianças e exames em outros passageiros. O vapor deslocava 2.964 toneladas e embarcou 900 passageiros na terceira classe e 50 na primeira. Os que partiram sabiam apenas aproximadamente os detalhes da travessia, mas, neste caso, os viajantes foram deixados propositalmente no escuro sobre um detalhe decisivo, que o primeiro destino seria Nápoles, onde grassava uma epidemia de cólera. Os receios de alguns passageiros mais bem informados foram até desmentidos, sem a menor vergonha, por um agente de emigração. O navio ancorou às 4 e 10 da tarde e pouco antes da meia-noite de 16 de agosto atingiu a entrada do porto de Nápoles, onde entrou no dia seguinte. Outros 700 passageiros e uma grande quantidade de mercadorias foram embarcados aqui, incluindo 400 barris de vinho. Os novos emigrantes eram vistos com desconfiança, pois além de reduzirem espaço e alimentação, aumentavam o risco de doenças.
Na noite de 17 de agosto, o navio partiu. Tendo cruzado o estreito de Gibraltar em 21 de agosto, o navio a vapor enfrentou as ondas "imperiosas e violentas" do oceano. «Quando apareceram no convés, quase todos estavam mareados; gemidos foram ouvidos, contorções e esforços causados ​​pelo forte engasgo, para ficar horrorizado. O café foi distribuído, mas quase ninguém - escreve Malavasi - conseguiu tirar proveito dele, e o mesmo vale para todas as outras comidas da época ”. Depois da parada em Nápoles, a comida começou a escassear e a piorar, em meio a protestos de passageiros. A partir de 24 de agosto, “eclodiram discussões e lutas pela ocupação de cadeiras”. A viagem continuou em meio a graves inconvenientes, maus-tratos, perseguições por parte dos oficiais do navio e brigas furiosas. 


A comida era ruim. No dia 2 de setembro, pela manhã, foi servido um café "muito parecido com água quente". Às 11 horas, a distribuição de «pequeno macarrão indevidamente chamado, em caldo; e para um prato, muito pouca carne cortada em pedaços muito pequenos. A outra ração consistia em um pouco de arroz, muito comprido e que não serve para nada, e carne cozida, salgada, acompanhada de lentilha ”. Outras vezes serviam grão-de-bico, batata, atum e salada, bacalhau estufado "e outras imundícies, que, não só de mau gosto, também faziam muito mal à saúde de todos, produzindo diarreia, disenteria, com dor na massa de passageiros. tal como para nos fazer rastejar".


Com a aproximação da "terra prometida", uma grande agitação se espalhou pelo Remo. Todo mundo estava falando sobre a América, agora apenas alguns dias de distância. Alguns estavam começando a pensar que os sonhos de riqueza - ou pelo menos de progresso tangível na condição humilde de alguém - estavam para se tornar realidade; outros se limitaram a planejar a viagem de Santos, porto de desembarque, a São Paulo, destino final de muitos emigrantes. Para economizar tempo, alguns chegaram a pensar em pagar por esta última viagem do próprio bolso, ao invés de aproveitar o transporte gratuito oferecido pelas agências de viagens.
O clima de grande euforia foi abruptamente interrompido no dia 6 de setembro, com a notícia da morte de duas meninas, atiradas ao mar na presença de seus desesperados pais e parentes. Mas para a carga humana do navio a vapor Remo foi apenas o começo.


“Chove muito, o frio é forte, é um desconforto geral, principalmente para mulheres e crianças. Ao anoitecer, o médico foi chamado para visitar um emigrantes do sul gravemente doente no primeiro porão, andar inferior. Quando o médico veio, após um exame minucioso, disse que era indigestão de água. Estou muito convencido de que aquele seguidor de Esculápio havia entendido bem que era cólera quase fulminante, mas ele tinha um bom motivo, se não queria colocar a apreensão a bordo. Ele ordenou que fossem preparados conhaque, marsala e caldo para o paciente, e antes das 20h foi transportado para o hospital ". Na manhã do dia 7 de setembro, foi avistado o farol de Cabo Frio, no Brasil. A navegação continuou, no sentido sudoeste, em direção ao Rio de Janeiro e Ilha Grande. Quando este último estava a apenas 70 milhas de distância, dois emigrantes sulistas adoeceram "com cólera, de modo que todos os outros foram dispensados ​​do hospital, do qual ninguém estava gravemente doente, exceto o primeiro, que deixou de viver às 2 da tarde". Ao anoitecer o navio parou em Ilha Grande, aguardando o exame médico. No dia seguinte, uma comissão de saúde chegou com um pequeno barco, ordenou ao comandante do Remo que voltasse 20 milhas, para lançar o corpo do Catanzaro ao mar antes de retornar ao porto. Aqui o navio a vapor esperava por mais provisões, sob a ameaça dos canhões de um encouraçado brasileiro. Na noite entre 8 e 9 de setembro, um homem e uma mulher foram hospitalizados com sinais claros de cólera. Então, pela manhã, veio a notícia que lançou a todos no mais profundo desespero. O governo brasileiro decidiu rejeitar os italianos em bloco. 
Não foi o primeiro navio a sofrer este destino e nem o último. Muitos navios italianos tiveram negada a possibilidade de atracar. Também por isso, muitos dos emigrantes morreram durante as travessias da esperança. Por exemplo, foram centenas de mortes por cólera entre os 1.333 passageiros do Matteo Bruzzo, rejeitado por tiros de canhão pelas autoridades uruguaias e forçados, como o Remo, a se livrar da epidemia vagando pelos mares e jogando os cadáveres no oceano. Os casos de acidentes com esses vapores eram tão frequentes que o termo "navios da morte" passou a ser usado para defini-los. O navio a vapor Carlo Raggio, colocado em quarentena na baía de Isola Grande junto com o Remo, teve 211 mortes por uma epidemia de cólera e sarampo. No mesmo navio, outros passageiros já haviam morrido seis anos antes de fome.


No Remo, na noite entre 9 e 10 de setembro "um calabres, que se encontrava no convés, com congestão cerebral, caiu da sala. Ao se levantar três ou quatro vezes, ele caiu para trás tantas vezes, batendo com tanta força no chão de ferro que parecia impossível não quebrar seu crânio. Chamado com urgência o chefe do porão, apelou aos conterrâneos do infeliz, que, embora com relutância, esbanjaram-lhe os cuidados indicados em tal caso”. Durante a noite também faleceu o filho de um emigrante de San Prospero, Modena. «De manhã, no rosto de cada um se podia ler dor e tristeza; muitos tinham o rosto molhado de lágrimas: mas era preciso resignar-se ao destino adverso", comentou Malavasi. O vapor foi abastecido com água e comida, incluindo 13 bois, farinha, galinhas e macarrão. Em 12 de setembro, morreu um emigrante piemontês, que tinha mulher e dois filhos a bordo, mais um outro proveniente do sul da Itália, com cerca de sessenta anos e ainda uma criança no terceiro porão. Nesse mesmo dia o filho de um outro emigrante proveniente do município de Cavezzo, adoeceu e ficou em estado grave. Antes da noite, uma emigrante do mesmo município também adoeceu com uma forte febre. Consultada pelo médico, foi-lhe receitado um determinado medicamento que restaurou a sua saúde. Ainda antes do anoitecer apareceu um barco a vapor rebocado por uma lancha trazendo remédios e a notícia de que, no dia seguinte, chegariam as provisões solicitadas. Às 8 da tarde, o encouraçado levantou as âncoras e deixou apenas a tripulação do Remo. Na manhã do dia 13 de setembro, uma outra senhora casada, foi levada ao hospital por vômitos e diarréia. Ao mesmo tempo, o vapor Andrea Doria, chegou aqui ontem, passou perto de nós e foi descarregar os cadáveres que ele tinha a bordo.

Malavasi também nos deixou uma amostra interessante do estado de espírito dos passageiros: “Vi homens e mulheres decididos a ler e meditar sobre as coisas sagradas; Vi outros que se ocupavam com leituras profanas e até obscenas; mulheres que rezavam o rosário durante a maior parte do dia, e outras que investiram contra seus filhos e maridos, lançando contra eles os mais asquerosos palavrões; maridos que amaldiçoaram seus filhos e esposas por infortúnios ou desastres ou que vomitaram as mais atrozes blasfêmias. Finalmente, ouvi a viúva do piemontês articular as orações fúnebres junto com seus dois filhos pequenos, em memória do pai falecido."




Dr. Luiz Carlos B. Piazzetta
Erechim RS



 


sábado, 12 de setembro de 2020

As Condições Sanitárias e as Epidemias a Bordo dos Navios de Emigrantes

Emigrantes no Porto 
Eram denominados pelas companhias de navegação da época, de tonelada humana aqueles milhares de pobres emigrantes que deixavam a Itália depois da metade do século XIX. As condições de vida que esses pobres emigrantes encontravam à bordo eram ainda muito mais precárias do que eles haviam pensado. Agachados no convés, perto da escada, com o prato entre as pernas e um pedaço de pão entre os pés, comiam como mendigos à porta dos conventos. Assim descreveu  em 1908 o que pode ver um inspetor de saúde nos navios de emigrantes. Ele continua dizendo que aquilo era uma grande humilhação e um grave perigo sob o ponto de vista sanitário pois, todos nós podemos imaginar como devia ficar um convés de navio à vapor, no meio do oceano, jogado pelos fortes ventos, enfrentando grandes ondas, onde todo o lixo e dejectos humanos se misturam se espalhando perigosamente por todos os cantos. 

Navio super lotado 

A grande emigração italiana, no período compreendido entre os anos de 1876 a 1915, envolveu diretamente mais de 14 milhões de homens, mulheres e crianças, expulsos de suas casas pela fome, desemprego e falta de perspectiva no futuro, muito  especialmente, depois da crise agrária surgida após 1870. Esse verdadeiro êxodo é somente comparável aquele da fuga dos hebreus do Egito, contados pela bíblia, despovoou inteiras vilas e pequenas cidades do norte e do sul da Itália. No início as mais atingidas eram apenas as comunidades de montanha que precisaram emigrar, pois o tipo de agricultura que praticavam nesses locais era muito atrasada, dando somente para a subsistência, não suportava mais o crescente aumento populacional, agravados por seguidas frustrações de safras por fenômenos naturais, como avalanches e inundações. 

Emigrantes no porto de Gênova 

Primeiramente, nos primeiros 10 anos desse período,  observamos a quase exclusividade da emigração masculina, essa por vários séculos,  já acostumada a migrações sazonais para outros países da Europa, como a França e a Alemanha, mais ricos e desenvolvidos, mas, sempre após algum tempo de permanência, retornavam para as suas casas. Com o crescente agravamento da situação econômica da Itália, os homens passaram emigrar de forma definitiva, mas, desta vez  para países longínquos situados do outro lado do oceano e, logo após conseguirem uma colocação de trabalho, chamavam as esposas, filhos e o restante da família para os encontrar na nova pátria. 

Depois de 1901, mais de 500.000 italianos deixavam a pátria a cada ano, a maioria deles tendo como destino os Estados Unidos e em sua maioria esse torrente humana era constituída de moradores das regiões ao sul da Itália. Os muitos registros da época nos contam da triste partida de navios levando cada um centenas de pobres camponeses e artesãos. 

Epidemia de cólera a bordo

O abastecimento de água nos precários cargueiros apressadamente transformados navios para passageiros era geralmente mantido em barris que eram enchidos na partida.  Caso essa provisão de água fosse contaminada  durante a navegação ou, mesmo, se o alimento fosse contaminado durante o preparo, o risco de propagação da uma grave epidemia entre passageiros e tripulantes seria rápido. As condições higiênicas à bordo desses barcos eram muito precárias especialmente pelo fato deles não terem sido construídos para o transporte de seres humanos mas, sim de mercadorias. Animais vivos também eram embarcados, eles serviriam de alimento para os passageiros e tripulação, eles conviviam nos porões, confinados em jaulas construídas para esse fim. Durante a travessia eles seriam sacrificados à bordo, usando a pouca água disponível para a limpeza, a inexistência de meios adequados para a conservação da carne e a precária higiene  do pessoal de serviço, sendo assim muito grande a possibilidade de contaminação e o aparecimento de uma epidemia. Geralmente, em um ambiente tão restrito como os estreitos alojamentos, sem instalações sanitárias adequadas, com pouca água para a limpeza e sem suficiente ar circulante, onde as pessoas, principalmente, nos porões da terceira classe dos navios, viviam em estreita promiscuidade, as possibilidades de contágio acabavam se somando. 

Os emigrantes no Porto - quadro de Arnaldo Ferragutti 

Em diversas ocasiões surgiram epidemias devastantes que ceifavam a vida dos mais debilitados, as crianças e os mais velhos. Em 1884, no vapor Matteo Bruzzo, que se dirigia para Montevideo com 1333 passageiros à bordo surgiu uma epidemia de cólera que matou 22 passageiros, não tendo permissão para embarcar naquele porto, tendo que retornar para a Italia. O cólera já tinha se manifestado na cidade de Genova, o porto de origem, mas, foi mesmo assim dada a ordem de zarpar. Os operadores de transporte já tinham o conhecimento que a Argentina e o Uruguai já haviam declarado o fechamento dos seus portos para navios provenientes daquele destino. Pensaram que pudessem ficar à bordo em quarentena, o que acabou não acontecendo. Por este fato podemos avaliar a maneira superficial que as companhias de navegação trataram a questão saúde dos emigrantes. 

Passageiros embarcados em navios superlotados 

Nessas longas viagens que levavam os emigrantes não havia somente o perigo de epidemias de cólera, mas também, de febre tifóide, sarampo, difteria e infecções por tuberculose. O navio Carlo Raggio, no ano de 1888, quando em uma das suas viagens para a América do Sul teve 18 de seus passageiros mortos pela fome. Alguns anos depois, em 1894, o mesmo navio contabilizou 206 mortes de passageiros devido principalmente à fome, epidemias de cólera e sarampo. A epidemia desta última doença também foi a causa da morte de 34 passageiros do navio Pará no ano de 1889. 

Emigrantes no convés do navio quadro - quadro Oceano, de Arnaldo Ferragutti 

As condições da vida nos porões e conveses desses navios de emigrantes, onde eles se aglomeravam na mais precária falta de higiene, foram de tal maneira duras para ficarem marcados indelevelmente, muitos anos após na memória daqueles pobres emigrantes e de seus descendentes. No vapor Cachar, com 2000 emigrantes para o Brasil, durante a travessia aconteceram 34 mortes por fome e asfixia. As condições de ventilação nas repartições coletivas da terceira classe eram dramáticas e causavam muitas mortes entre os passageiros. No navio Frisia, com destino ao Brasil no ano de 1889 teve 27 mortos durante a travessia e mais de 300 que adoeceram. Em 1894, no navio Andrea Doria com 1317 passageiros ocorreram 159 mortes e no vapor Vicenzo Florio, com 1321 passageiros, mais 7 mortes. As precárias condições de viagem nesses navios eram conhecidas das autoridades italianas, principalmente pelas cartas com os relatos dos emigrantes. Mesmo assim as companhias de navegação marítima não tiveram problemas para completar a carga, eles enchiam os barcos com mais pessoas que a lotação oficial. 

Emigrantes amontoados a bordo 

Nessa época da grande emigração italiana não existiam ainda os antibióticos e as vacinações para difteria muito deficiente. Para se ter uma ideia do que acontecia com esses pobres infelizes, segue alguns relatos de passageiros dessa viagem. Assim em 1893, a bordo do vapor Remo tendo como destino o Porto do Rio de Janeiro, Brasil, com 1500 emigrantes embarcados, dos quais um grande número deles provenientes de Modena e outras províncias emilianas vizinhas, aconteceram 96 mortes por difteria e cólera. Nos relatos desses emigrantes nos contam que:  "a maioria dos emigrantes ficava sentada ou deitada no chão do navio, enquanto uns dormiam outros comiam". Esse relato continua:  "que o navio zarpou de Gênova em direção a Nápoles, onde por sua vez foram embarcados outros 700 passageiros, atingindo o total de 1500 emigrantes a bordo. Essa super lotação se tornou insuportável e deu origem, ainda no início da viagem, a protestos contra a companhia de navegação e brigas entre aqueles vindos do norte com os que partiram do sul da Itália. Em um cartaz afixado por eles em respirador de popa e encontrado mais tarde estava escrito protestos contra a companhia de navegação". O mesmo relato nos diz que "a comida servida a bordo era muito pobre, o café que serviam, era pura água quente. Na refeição das 11 horas era distribuída uma pequena porção de macarrão em um caldo aguado. A carne servida era pouquíssima e já cortada. Uma outra ração que também era servida em outras ocasiões consistia de um pouco de arroz, com carne salgada cozida e um pouco de lentilhas. Essa pobre alimentação causava dores abdominais e copiosas diarréias. Tudo isso era somado ao desconforto causado pelas condições do mar tropical com fortes e contínuas chuvas. 

Oceano - quadro de Arnaldo Ferragutti 

Os passageiros expostos às intempéries no convés do navio super lotado, tendo que sobreviver às disputas com outros passageiros e autoridades de bordo". Quando em 7 de Setembro de 1893 o vapor Remo estava para ancorar no Porto do Rio de Janeiro, pelo fato de ter havido uma epidemia, com vários mortos à bordo, as autoridades locais do Brasil estavam avaliando a possibilidade de proibir a atracação e ordenarem o retorno para o porto de origem, na Itália. Muitos daqueles imigrantes tinham vendido o pouco que possuíam para comprar os bilhetes da viagem, outros tinham deixado tudo para se reunirem com os cônjuges de filhos já no Brasil. Podemos imaginar a aflição que tomou posse desses passageiros, que após enfrentarem uma viagem tão desesperadora, com tantos problemas, foi anunciado que não poderiam entrar no Brasil. 

Emigrantes amontados no convés do navio durante a travessia 

Na manhã do dia 15 de Setembro, o navio Remo zarpou com destino à Itália com toda a sua carga de sofrimento humano. No dia 4 de Outubro após 50 dias de navegação, sem nunca terem desembarcado, m uma viagem tão dura como a de ida para o Brasil, aqueles pobres emigrantes foram mandados, pelas autoridades italianas, para a Ilha de Asinara, na Sardenha, onde desembarcaram. Ficaram em um período de quarentena e após 10 dias o navio retomou viagem primeiro para Nápoles, onde os passageiros meridionais foram desembarcados e depois rumou para Gênova, onde atracaram em 26 de Outubro. Viagem total de ida e volta do Brasil durou 70 dias e custou a vida de 96 passageiros e algumas centenas de doentes. 

Emigrantes a bordo durante uma travessia 

Proporcionalmente esta viagem não foi a pior delas em número de mortos. A viagem do vapor Carlo Raggio, que inicialmente foi construído para o transporte de carvão, foi apressadamente adaptado para o transporte oceânico de passageiros. Partindo do porto de Gênova e após uma escala em Nápoles, com um total de 1000 passageiros e 16 tripulantes, foi identificada uma epidemia de cólera a bordo. Durante o trajeto teve 211 mortes a bordo, uma para cada 5 passageiros. Nesses navios o cólera era diagnosticado apenas com critérios clínicos.

No outono de 1892, o navio Giulio Cesare, recém construído, estava para deixar o porto de Gênova, para a sua primeira viagem ao Brasil com 900 emigrantes a bordo, quando foi impedido de zarpar devido o aparecimento de uma grave intoxicação que acometeu cerca de 40 dos passageiros que já estavam embarcados, logo após terem consumido a primeira refeição. Na investigação médica que se seguiu pela autoridades portuárias concluiu que se tratava de uma intoxicação alimentar  causada pela recente soldagem e estanhamento das tigelas usadas naquela refeição. 

No final do século XIX o problema da má higienização dos alimentos já se fazia sentir, com o aparecimento frequente de intoxicações alimentares de passageiros e tripulantes. Um regulamento de 1890 já regulava a necessidade de maiores controles com a higienização de alimentos, bebidas e utensílios de cozinha usados nos navios. Infelizmente nesses navios que transportavam emigrantes essas medidas foram transcuradas, como quase tudo que se referia a melhoria da qualidade de vida a bordo. 

Oceano - Quadro de Arnaldo Ferragutti

Alguns anos mais tarde, a mesma empresa de navegação oceânica, se envolveu em outros incidentes semelhantes. Um dos casos foi o do vapor Agordar, com destino ao Brasil, quando, ainda no porto, teve 10 de seus passageiros acometidos por intoxicação alimentar e mais 130 que desistiram da viagem. Ficava assim evidente a incapacidade e a falta de vontade das companhias marítimas  em resolverem este grave problema de melhoria da qualidade dos serviços de bordo. Isso tudo para conservarem os seus lucros e manterem o preço dos bilhetes da passagem competitivos, uma vez que os custos dessas melhorias não conseguiriam repassar para os passageiros. 

As probabilidades de desenvolverem doenças durante a viagem, como a tuberculose, era muito alta. Dormiam empilhados um encima do outro. Muitos relatos de passageiros, principalmente, aqueles de terceira classe, amontoados nos porões dos navios,  testemunham: "Nós, pobres  desgraçados descemos ao porão do navio através de um alçapão, Havia uma grande escuridão e logas filas de beliches de madeira onde tos dormíamos juntos: alemães, italianos, poloneses, suecos, franceses. Lá embaixo não tínhamos água nem luz e já no inicio da viagem muitos ficaram mareados e vomitavam. Ficamos presos como ratos em um buraco, agarrados a suportes de cama ou estruturas de ferro para evitar sermos arrastados pelo balanço do navio, principalmente quando ele enfrentava ventos fortes e grandes ondas". Naqueles navios homens, mulheres e meninas ficavam todos na mesma cama, separados apenas por uma ripa, para evitar rolar uns sobre os outros. 

Emigrantes no Porto a espera do embarque

Durante a longa travessia, em caso de morte de um passageiro, a prática era jogar o corpo no mar o mais rápido possível, de preferência à noite ou nas primeiras luzes da madrugada, para evitar a presença de curiosos, e em seguida providenciar a desinfecção das instalações para prevenir uma possível epidemia. A urgência de se livrar do corpo, passageiro ou tripulante, era muito maior nos casos ocorridos durante a vigência de uma epidemia de doença contagiosa. Nos diários de bordo de navios daquela época e disponíveis para consultas pode-se ter uma ideia do ocorria nesses momentos. Na pressa de se desfazer do corpo, muitos daqueles jogados ao mar podiam ainda não estarem realmente mortos. 


Porto de Santos

Nas viagens para o Brasil e Argentina, também surgiram epidemias de febre amarela, encontradas em navios dos portos brasileiros e argentinos, muito difícil de diferenciar daqueles  sinais e sintomas que apresentavam os passageiros desacostumados ao balanço do navio e os longos períodos no mar. O sarampo também foi uma doença que ocasionou muitas epidemias. Em 1892 um navio norte americano retornando à Gênova, depois de atracar  nos portos de Buenos Aires, Montevideo e Rio de Janeiro, teve uma grave epidemia a bordo. Todas as crianças que viajaram na terceira classe foram infectadas, das quais 5 morreram e 32 passageiros foram desembarcados e hospitalizados em Gênova. 

Neste artigo podemos aquilatar que as condições sanitárias a bordo eram bastante precárias e não raras vezes aquela esperança de conquistar o desejado bem estar, que os tinha sustentado até ali, poderia se esvanecer diante da realidade que encontravam durante a travessia. Mas, a forte decisão de emigrar era muito maior do que o possível sofrimento que os esperava.

A letra de uma canção entoada a bordo pelo emigrantes italianos com destino ao Brasil dizia: 

"Vai ser o que for,

Pior do que está, não será

Vamos tentar nossa sorte.

E já que teremos que morrer, mais cedo ou mais tarde,

Podemos muito bem deixar nossa pele na América como na Europa...

Viva a América! Morte aos Senhores! 

Vamos para o Brasil!

Agora caberá aos proprietários trabalharem a terra". 


Esse era o espírito dos emigrantes italianos que embarcavam nos navios para cruzar o grande e desconhecido oceano. Todo esse indiscritível sofrimento físico e psicológico não reduziram a onda de migração para o novo mundo. 

No segundo decênio do século XX, ao acercasse da I Grande Guerra Mundial ocorreu uma desaceleração do fenômeno migratório. No período entre as duas guerras mundiais a emigração de italianos em busca de trabalho continuou, mas,  com um número bem mais reduzido de emigrantes, principalmente, devido às medidas restritivas adotadas pelos países anfitriões e a política anti-imigração imposta pelo fascismo. 


Dr. Luiz Carlos Piazzetta 

Erechim RS