Espaço destinado aos temas referentes principalmente ao Vêneto e a sua grande emigração. Iniciada no final do século XIX até a metade do século XX, este movimento durou quase cem anos e envolveu milhões de homens, mulheres e crianças que, naquele período difícil para toda a Itália, precisaram abandonar suas casas, seus familiares, seus amigos e a sua terra natal em busca de uma vida melhor em lugares desconhecidos do outro lado oceano. Contato com o autor luizcpiazzetta@gmail.com
sábado, 8 de julho de 2023
Embarque dos Sonhos: A Epopeia dos Emigrantes Vênetos
terça-feira, 23 de maio de 2023
Da Itália ao Brasil: Um Caminho Permeado por Doenças na Saga dos Imigrantes Italianos
quarta-feira, 8 de março de 2023
Naufrágios e Epidemias Navios com Emigrantes Italianos
sexta-feira, 11 de março de 2022
Morte a Bordo O Emocionante Relato de uma Mãe em um Navio de Emigrantes Italianos
quinta-feira, 19 de agosto de 2021
Torna Viagem
A longa viagem transoceânica, enfrentada pelos nossos antepassados na ânsia por uma vida melhor, foi sem dúvida uma empreitada repleta de situações de risco. Entre elas as doenças transmissíveis que surgissem a bordo podiam rapidamente se transformar em sérias epidemias impossíveis de serem controladas.
Os imigrantes italianos que chegavam ao Brasil já a partir das últimas décadas do século XIX, deviam obrigatoriamente, como também todos aqueles de outras nacionalidades, passar por uma inspeção de saúde e vistoria das embarcações para o controle de epidemias que pudessem ter ocorrido a bordo, durante a longa travessia.
Centenas de pessoas mal nutridas, amontoadas em velhos e lentos navios, dividindo, por várias semanas, reduzidos espaços abafados devido a má ventilação, sem instalações higiênicas adequadas e com insuficiência de água para a higiene pessoal, se tornavam presas fáceis para a eclosão e disseminação de doenças infecciosas graves, as quais podiam levar a morte em poucos dias, tais como o tifo, o cólera e outras doenças infantis que causaram inúmeras perdas de vida.
Por acordos internacionais, os navios que transportavam grande número de passageiros deveriam sempre ter um médico responsável a bordo e quando surgisse alguma epidemia ele deveria obrigatoriamente informar as autoridades portuárias, no momento do desembarque. Também por esse acordo as companhias de navegação marítima eram obrigadas a manter um relatório minucioso e atualizado dos casos médicos e óbitos ocorridos durante todo o período da viagem. Este relatório, assinado pelo médico de bordo, deveria ser entregue às autoridades sanitárias do porto de desembarque.
Se em algum navio surgisse alguma epidemia, o capitão deveria, ao entrar no porto, hastear uma bandeira de cor amarela no mastro da embarcação, para indicar a presença de doenças transmissíveis a bordo.
Esses navios com doenças transmissíveis a bordo não recebiam permissão para atracar no porto e deveriam se manter ao largo, longe da costa, até a decisão das autoridades portuárias, após inspeção pelo serviço sanitário brasileiro. Nos casos que os doentes encontrados eram em grande número, excedendo as capacidades de atendimento organizado pelas autoridades sanitárias do porto, a solução encontrada foi proibir definitivamente a atracação do navio, o qual deveria retornar ao porto de origem, com toda a sua carga de imigrantes. Era a cruel ordem de torna viagem que ninguém queria ouvir.
Nesses casos extremos os navios eram reabastecidos de água potável, medicamentos e víveres para enfrentarem a longa e frustrante viagem de retorno. Muitos foram os imigrantes italianos que tiveram assim abruptamente interrompidos os seus sonhos de uma nova vida.
Esse foi o triste destino de quatro navios com imigrantes italianos que chegaram ao Brasil entre os meses de agosto e setembro de 1893, ocasião em que grassava uma grande epidemia de cólera na Europa.
O navio Remo chegou no porto do Rio de Janeiro zarpando do Porto de Gênova, fazendo uma escala em Nápoles para o embarque de mais passageiros, todos imigrantes com destino ao Brasil. Transportava um número excessivo de passageiros, muito além da capacidade nominal estabelecida para aquele tipo de navio. Transportava um total de 1494 passageiros, a maioria imigrantes. Na travessia surgiu uma grave epidemia de cólera a bordo, ocasionando várias mortes. Ao chegar no Brasil não recebeu permissão para entrar no Porto do Rio de Janeiro recebendo ordens das autoridades portuárias para permanecer ancorado longe da costa. Após a inspeção realizada pelas autoridades sanitárias do porto foi obrigado a retornar para Itália com todos os seus passageiros e tripulação.
O navio Andrea Doria chegou ao Porto do Rio de Janeiro em 12 de setembro de 1893 pelos mesmos motivos também não obteve a permissão para desembarcar os seus passageiros. Durante a travessia tinham ocorrido 91 casos de cólera a bordo e assim o navio recebeu a ordem de retornar ao porto de origem, frustando todos aqueles imigrantes e suas famílias.
No dia 16 de setembro do mesmo ano foi a vez do navio Vicenzo Florio ser proibido de desembarcar os seus passageiros devido o surgimento de uma epidemia a bordo enquanto atravessava o oceano com destino ao Brasil. Este navio também foi proibido de desembarcar os passageiros ou qualquer membro da tripulação e teve que empreender a viagem de volta ao porto de origem.
No dia 24 de agosto de 1893 o navio italiano Carlo R. chegou ao Porto do Rio de Janeiro com o triste saldo de 100 mortos a bordo causados por um epidemia de cólera e um número muito maior de doentes contaminados. Relatos das autoridades sanitárias e portuárias brasileiras que vistoriaram esse navio nos dão conta que dele exalava um odor insuportável. Não podendo desembarcar seus passageiros no Rio de Janeiro, recebeu ordens de retornar para o porto de origem, levando consigo toda aquela carga de doentes e os seus sonhos de uma nova vida.
Dr. Luiz Carlos B. Piazzetta
Erechim RS
sábado, 24 de outubro de 2020
Miséria e Mortes a Bordo na Travessia do Oceano
Se a miséria era a causa principal das partidas, os agentes da emigração por sua vez, com seus discursos, panfletos e livrinhos que minimizavam as condições da viagem e ampliavam aquelas oportunidades oferecidas pelos países de destino, dissipavam assim as dúvidas dos incertos, muitas vezes escondendo algumas verdades, muito claras para aqueles que organizaram esse tráfico de homens. Em primeiro lugar, aquela viagem muitas vezes se revelou uma verdadeira odisseia, depois os frequentes casos de engano, ilícito e abuso de poder contra quem decidiu mudar de vida deixando o seu país de origem. No início dos anos noventa do século XIX, existiam dois agentes que operavam na zona de Mirandola. No mesmo periódico mensal "Indicador Mirandolês", com data de 1891, podemos ler"... do nosso município mais de 300 pessoas já partiram este ano para o Brasil, pela Sociedade de Navegação Geral, com as passagens e alimentação pagas. Muitos outros estão se preparando para partir após a colheita dos campos. Um desses emigrantes foi Cesare Malvasi, autor do livro já citado acima. Chegando com a mulher ao porto de Gênova, Malavasi teve que "dar uma boa gorjeta" para os carregadores embarcarem na bagagem, que ultrapassava o peso permitido. A maioria dos emigrantes esperava a partida num grande salão, sentados ou deitados no chão. Continua em seu relato: "Uns comiam, outros dormiam. Vi mulheres que, cansadas dos sofrimentos e da insônia das noites anteriores, dormiam numa espécie de sono letárgico e crianças pequenas que, sem o seu conhecimento, sugavam o leite do peito. Havia choros, gritos, gemidos e palavrões em mil disfarces, causados por diferentes motivos. Fiquei maravilhado com aquela visão, com aquele espetáculo e, se bem me lembro, nunca havia sentido essa emoção em toda a minha vida.”
sábado, 12 de setembro de 2020
As Condições Sanitárias e as Epidemias a Bordo dos Navios de Emigrantes
Emigrantes no Porto |
Navio super lotado |
A grande emigração italiana, no período compreendido entre os anos de 1876 a 1915, envolveu diretamente mais de 14 milhões de homens, mulheres e crianças, expulsos de suas casas pela fome, desemprego e falta de perspectiva no futuro, muito especialmente, depois da crise agrária surgida após 1870. Esse verdadeiro êxodo é somente comparável aquele da fuga dos hebreus do Egito, contados pela bíblia, despovoou inteiras vilas e pequenas cidades do norte e do sul da Itália. No início as mais atingidas eram apenas as comunidades de montanha que precisaram emigrar, pois o tipo de agricultura que praticavam nesses locais era muito atrasada, dando somente para a subsistência, não suportava mais o crescente aumento populacional, agravados por seguidas frustrações de safras por fenômenos naturais, como avalanches e inundações.
Emigrantes no porto de Gênova |
Depois de 1901, mais de 500.000 italianos deixavam a pátria a cada ano, a maioria deles tendo como destino os Estados Unidos e em sua maioria esse torrente humana era constituída de moradores das regiões ao sul da Itália. Os muitos registros da época nos contam da triste partida de navios levando cada um centenas de pobres camponeses e artesãos.
Epidemia de cólera a bordo |
O abastecimento de água nos precários cargueiros apressadamente transformados navios para passageiros era geralmente mantido em barris que eram enchidos na partida. Caso essa provisão de água fosse contaminada durante a navegação ou, mesmo, se o alimento fosse contaminado durante o preparo, o risco de propagação da uma grave epidemia entre passageiros e tripulantes seria rápido. As condições higiênicas à bordo desses barcos eram muito precárias especialmente pelo fato deles não terem sido construídos para o transporte de seres humanos mas, sim de mercadorias. Animais vivos também eram embarcados, eles serviriam de alimento para os passageiros e tripulação, eles conviviam nos porões, confinados em jaulas construídas para esse fim. Durante a travessia eles seriam sacrificados à bordo, usando a pouca água disponível para a limpeza, a inexistência de meios adequados para a conservação da carne e a precária higiene do pessoal de serviço, sendo assim muito grande a possibilidade de contaminação e o aparecimento de uma epidemia. Geralmente, em um ambiente tão restrito como os estreitos alojamentos, sem instalações sanitárias adequadas, com pouca água para a limpeza e sem suficiente ar circulante, onde as pessoas, principalmente, nos porões da terceira classe dos navios, viviam em estreita promiscuidade, as possibilidades de contágio acabavam se somando.
Os emigrantes no Porto - quadro de Arnaldo Ferragutti |
Passageiros embarcados em navios superlotados |
Nessas longas viagens que levavam os emigrantes não havia somente o perigo de epidemias de cólera, mas também, de febre tifóide, sarampo, difteria e infecções por tuberculose. O navio Carlo Raggio, no ano de 1888, quando em uma das suas viagens para a América do Sul teve 18 de seus passageiros mortos pela fome. Alguns anos depois, em 1894, o mesmo navio contabilizou 206 mortes de passageiros devido principalmente à fome, epidemias de cólera e sarampo. A epidemia desta última doença também foi a causa da morte de 34 passageiros do navio Pará no ano de 1889.
Emigrantes no convés do navio quadro - quadro Oceano, de Arnaldo Ferragutti |
Emigrantes amontoados a bordo |
Oceano - quadro de Arnaldo Ferragutti |
Emigrantes amontados no convés do navio durante a travessia |
Emigrantes a bordo durante uma travessia |
No outono de 1892, o navio Giulio Cesare, recém construído, estava para deixar o porto de Gênova, para a sua primeira viagem ao Brasil com 900 emigrantes a bordo, quando foi impedido de zarpar devido o aparecimento de uma grave intoxicação que acometeu cerca de 40 dos passageiros que já estavam embarcados, logo após terem consumido a primeira refeição. Na investigação médica que se seguiu pela autoridades portuárias concluiu que se tratava de uma intoxicação alimentar causada pela recente soldagem e estanhamento das tigelas usadas naquela refeição.
No final do século XIX o problema da má higienização dos alimentos já se fazia sentir, com o aparecimento frequente de intoxicações alimentares de passageiros e tripulantes. Um regulamento de 1890 já regulava a necessidade de maiores controles com a higienização de alimentos, bebidas e utensílios de cozinha usados nos navios. Infelizmente nesses navios que transportavam emigrantes essas medidas foram transcuradas, como quase tudo que se referia a melhoria da qualidade de vida a bordo.
Alguns anos mais tarde, a mesma empresa de navegação oceânica, se envolveu em outros incidentes semelhantes. Um dos casos foi o do vapor Agordar, com destino ao Brasil, quando, ainda no porto, teve 10 de seus passageiros acometidos por intoxicação alimentar e mais 130 que desistiram da viagem. Ficava assim evidente a incapacidade e a falta de vontade das companhias marítimas em resolverem este grave problema de melhoria da qualidade dos serviços de bordo. Isso tudo para conservarem os seus lucros e manterem o preço dos bilhetes da passagem competitivos, uma vez que os custos dessas melhorias não conseguiriam repassar para os passageiros.
As probabilidades de desenvolverem doenças durante a viagem, como a tuberculose, era muito alta. Dormiam empilhados um encima do outro. Muitos relatos de passageiros, principalmente, aqueles de terceira classe, amontoados nos porões dos navios, testemunham: "Nós, pobres desgraçados descemos ao porão do navio através de um alçapão, Havia uma grande escuridão e logas filas de beliches de madeira onde tos dormíamos juntos: alemães, italianos, poloneses, suecos, franceses. Lá embaixo não tínhamos água nem luz e já no inicio da viagem muitos ficaram mareados e vomitavam. Ficamos presos como ratos em um buraco, agarrados a suportes de cama ou estruturas de ferro para evitar sermos arrastados pelo balanço do navio, principalmente quando ele enfrentava ventos fortes e grandes ondas". Naqueles navios homens, mulheres e meninas ficavam todos na mesma cama, separados apenas por uma ripa, para evitar rolar uns sobre os outros.
Emigrantes no Porto a espera do embarque |
Porto de Santos |
Nas viagens para o Brasil e Argentina, também surgiram epidemias de febre amarela, encontradas em navios dos portos brasileiros e argentinos, muito difícil de diferenciar daqueles sinais e sintomas que apresentavam os passageiros desacostumados ao balanço do navio e os longos períodos no mar. O sarampo também foi uma doença que ocasionou muitas epidemias. Em 1892 um navio norte americano retornando à Gênova, depois de atracar nos portos de Buenos Aires, Montevideo e Rio de Janeiro, teve uma grave epidemia a bordo. Todas as crianças que viajaram na terceira classe foram infectadas, das quais 5 morreram e 32 passageiros foram desembarcados e hospitalizados em Gênova.
Neste artigo podemos aquilatar que as condições sanitárias a bordo eram bastante precárias e não raras vezes aquela esperança de conquistar o desejado bem estar, que os tinha sustentado até ali, poderia se esvanecer diante da realidade que encontravam durante a travessia. Mas, a forte decisão de emigrar era muito maior do que o possível sofrimento que os esperava.
A letra de uma canção entoada a bordo pelo emigrantes italianos com destino ao Brasil dizia:
"Vai ser o que for,
Pior do que está, não será
Vamos tentar nossa sorte.
E já que teremos que morrer, mais cedo ou mais tarde,
Podemos muito bem deixar nossa pele na América como na Europa...
Viva a América! Morte aos Senhores!
Vamos para o Brasil!
Agora caberá aos proprietários trabalharem a terra".
Esse era o espírito dos emigrantes italianos que embarcavam nos navios para cruzar o grande e desconhecido oceano. Todo esse indiscritível sofrimento físico e psicológico não reduziram a onda de migração para o novo mundo.
No segundo decênio do século XX, ao acercasse da I Grande Guerra Mundial ocorreu uma desaceleração do fenômeno migratório. No período entre as duas guerras mundiais a emigração de italianos em busca de trabalho continuou, mas, com um número bem mais reduzido de emigrantes, principalmente, devido às medidas restritivas adotadas pelos países anfitriões e a política anti-imigração imposta pelo fascismo.
Dr. Luiz Carlos Piazzetta
Erechim RS