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terça-feira, 16 de dezembro de 2025

Entre Ramos e Lembranças — A Velhice, a Doença e a Morte nas Colônias Italianas do Sul do Brasil



Entre Ramos e Lembranças — A Velhice, a Doença e a Morte nas Colônias Italianas do Sul do Brasil


Desde o momento da chegada ao solo gaúcho, os imigrantes italianos — muitos oriundos do Vêneto, Lombardia, Trentino e outras regiões do norte da Itália — trouxeram consigo não só a esperança de uma nova vida, mas também tradições profundas, moldadas por fé, costume e comunidade. 

Nas colônias rurais, onde cada colônia ou lote era isolado de seus vizinhos, a vida transcorria entre o trabalho na terra, a construção da casa, o cultivo da videira ou da lavoura — e, por consequência, o enfrentamento das agruras da existência: doenças, velhice, sofrimento. A ausência de médicos ou hospitais próximos tornava cada enfermidade uma provação marcada pela incerteza. 

Nessas circunstâncias, a comunidade se tornava o sustentáculo de quem adoecia. Famílias, vizinhos e amigos organizavam rodízios de cuidado, muitas vezes clareados por lamparinas na noite do campo, garantindo auxílio, conforto e presença. A religiosidade — herança da terra natal — servia de alicerce: rezas em dialeto, terços, pequenos altares domésticos, lamparinas e a fé em santos aliados ao cotidiano.

Quando a enfermidade se tornava incurável, ou a velhice chegava, a expectativa era de uma passagem serena — marcada pela certeza de dever cumprido, de uma vida dedicada à labuta e à família. E a morte, longe de ser tratada apenas como um fim, era compreendida como um rito de passagem: cercada de devoção, temor e respeito quase reverente.

Ritos, crendices e práticas de despedida

No leito final, familiares pediam perdão de possíveis mágoas, afinavam a reconciliação — como se a alma precisasse partir em paz. A casa recebia velas acesas, água benta, orações. O corpo do falecido era lavado com cuidado, vestido com suas melhores roupas, mantendo os olhos fechados — pois deixá-los abertos era interpretado como mau presságio, prenunciando outra morte na família em breve.

O velório durava longas horas — por vezes um dia inteiro — geralmente na sala de estar ou quarto da casa, com o corpo sobre o leito original, ou depois sobre tábuas apoiadas em cadeiras, aguardando a confecção do caixão por um carpinteiro da comunidade. A carroça puxada por bois, coberta por panos negros, transportava o féretro até a igreja ou, quando não havia padre, o rosário era recitado em comunidade. Nos cortejos, mulheres cobriam a cabeça com véus, os homens tiravam o chapéu. Na chegada ao cemitério, os presentes lançavam terra sobre o caixão — simbolizando o retorno do corpo à terra que haviam cultivado.

Em muitas localidades, após o enterro eram celebradas missas e novenas em intenção da alma do falecido — um laço de fé que permitia aos vivos expressar dor, saudade e esperança de reconforto eterno para quem partira. 

Memória, retratos e legado de ancestralidade

Numa época em que o retrato fotográfico era privilégio raro — e os fotógrafos geralmente “itinerantes” —, a morte chegava com um pedido mórbido e terno: famílias chamavam o retratista para fotografar o falecido dentro do caixão, cercado por parentes, como forma de eternizar sua memória. Para muitos, era a única recordação visível do ente querido que partiu. Essa tradição — estranha aos olhos modernos — revela a força do afeto, da saudade e do desejo de fixar raízes mesmo na dor. 

Essa memória, hoje, encontra-se preservada em acervos, fotografias amareladas, narrativas orais, costumes transmitidos de geração a geração, e no patrimônio imaterial — o dialeto, a fé, os costumes, o respeito pelos mais velhos —, compondo a gama que identificam as comunidades ítalo-gaúchas. 

Novas camadas de crenças, medos e rituais — além do funeral tradicional

Com base em relatos históricos e etnográficos sobre os imigrantes italianos (e seus descendentes) no Brasil, especialmente no Rio Grande do Sul, identificam-se as seguintes crenças, simpatias e tabus associados à doença, à velhice e à morte:

Crença na alma e no “vínculo espiritual” após a morte — Algumas tradições consideravam que a alma do falecido permanecia temporariamente “presa” ao corpo até o enterro. Se o corpo não fosse lavado corretamente, ou se não fosse vestido apropriadamente, isso poderia trazer mau-agouro, dificuldade da alma “partir” ou mesmo o retorno como espírito perturbador. 

Uso de água benta e rezas para purificação e proteção — Era comum lavar o corpo com água benta, como forma de “limpar” o falecido, afastar maus espíritos, e garantir uma passagem segura da alma. 

Preparação ritual cuidadosa do corpo: roupas limpas, lençóis brancos, itens religiosos — Vestir o corpo com roupas limpas e claras (às vezes branco), cobri-lo com lençol branco, incluir crucifixos, terços ou outros objetos sagrados junto ao corpo, como proteção espiritual.

Medo de “mão errada” ou “olhares errados”: preservação dos olhos fechados — A crença de que deixar os olhos abertos poderia atrair má sorte ou permitir que o falecido “chamasse” outros familiares, provocando uma nova morte. Isso aparece nas práticas funerárias descritas nas comunidades. 

Ritos de purificação da casa após a saída do corpo — Depois do velório e enterro, era costume varrer a casa por alguém de fora da família e abrir portas ou janelas, simbolizando que a morte havia saído e para evitar que o “espírito” permanecesse preso. 

Medo do “não enterro digno”: o temor de que funerais mal feitos causassem desgraça à família — Nas comunidades de colonos, a ausência de médicos, a pobreza, o isolamento, às vezes tornava difícil cuidar do corpo corretamente, o que gerava ansiedade sobre o destino da alma. 

Valorização da comunidade e do cuidado mútuo — curandeiros, benzedeiras, rezas, fé popular — Com a falta de acesso a médicos ou hospitais, os colonos recorriam a remédios populares, “curas de fé”, benzedeiras, rezas, invocações religiosas ou até práticas espirituais herdadas da Itália — um sincretismo entre catolicismo e fé popular. 

Temor dos “mortos que não descansam”: fantasmas, aparições, locais amaldiçoados — Algumas comunidades mantinham o medo de espíritos, especialmente de pessoas mortas de forma violenta ou abandonadas — a migração muitas vezes deixava pessoas pelo caminho. Os cemitérios, velórios ou até casas onde alguém havia morrido eram vistos com suspeita ou respeito reverente. 

Penitências, promessas, devoções às almas dos falecidos e santos de proteção — A religiosidade manifestava-se não apenas em missas ou novenas, mas na devoção a santos e às almas do purgatório, acreditando-se que estas podiam interceder em momentos de calamidade, doença ou morte. 

Esses elementos mostram que, para muitos imigrantes, a experiência da morte — e o receio da doença — iam muito além do fim da vida física; envolviam a sobrevivência espiritual, o medo do desconhecido, a proteção da comunidade e uma religiosidade intensa que se adaptava às novas realidades do Brasil, mas mantendo vivas crenças trazidas da Itália.

Conclusão — Vida, Morte e Comunidade: herança que permanece

A experiência dos imigrantes italianos, especialmente dos vênetos, nas colônias do Rio Grande do Sul, mostra como a doença, a velhice e a morte foram atravessadas não apenas como tragédias individuais, mas como fenômenos coletivos, marcados pela solidariedade, pela fé e pela memória. O cuidado mútuo, os ritos de despedida, o respeito aos mais velhos, as tradições de luto e as práticas simbólicas revelam uma cultura de proximidade — essencial para enfrentar a dureza da terra, o isolamento, o sofrimento e a mortalidade. Hoje, ao revisitar essas narrativas, resgatamos não só costumes e crenças, mas também valores de comunidade, pertencimento e humanidade — um legado que permanece vivo em famílias, histórias, fotografias e na paisagem social do Sul do Brasil.

Nota do Autor

Este texto pretende dar voz às memórias silenciosas dos pioneiros italianos no Rio Grande do Sul — suas dores, suas esperanças, seus rituais de fé e despedida. Ao resgatar esses fragmentos de vida e morte, busca-se fortalecer a compreensão da identidade ítalo-gaúcha e preservar para as novas gerações o valor da comunidade, da memória e da tradição.

Dr. Luiz Carlos B. Piazzetta



segunda-feira, 15 de dezembro de 2025

El Fogon

 


El Fogon

 

Parlo del fogon de sti ani,

parlo del fogon a legna,

parlo del fogolar d’italiani,

quel fogon su ’l qual se impara tute le robe de ’na famèia.

Sensa el fogon, no saremia gnanca vivi.

Sensa el fogon, no se podea portar avanti gnente.

Sensa el fogon, no se podea manco magnar.

El fogon a legna,

chel vecio, grande, de maton consumà dai ani,

el zera come ’n pare:

duro, testa grossa, ma sempre lì,

sempre pronto a scaldar ’l cuor de chi che ghe stà intorno.

El fogon el zera ’l cuor de casa,

come ’na barca che no se rovesa mai.

Sempre a scaldar la famèia,

sempre a ciamar drento tuti i parenti —

che i sia strachi de zugà, sudà,

o che i vegnia da la piantaion con el fredo ’nte le òsse.

El fogon el zera anca ’n maestro:

el insegnava ai primi italiani le prime parole del Brasil,

con la fiama che brusa,

con le mame che movea el brondin,

con le none che contea stòrie par no far pianser i putei.

D’inverno o d’istà,

tute le matin scomìnsia così:

el nono, la nona e ’l fogon.

El papà, la mama co el so cimarón.

I fiòi, la casa de legna,

i gati, la polenta, el pan par i tosati.

Quante patate magnà,

quante ridada, quante piandada,

e anca quante brusada, perché el fogon no perdona.

Ma ogni brusada zera ’na memòria.

Ogni bronsa zera ’na stòria.

La polenta sbulenta ’nte la cusìna,

con el fumo che sa de bon.

Intorno, la famèia:

streta, rumorosa, viva.

E là, ’nte la luse calda del fogon,

se imparava a star inseme,

a no molar,

a tegnerse drento come ’na famèia vera.

Parché el fuogon, sì, el scalda,

ma el ricorda.

El ricorda tuti quei che no ghe ze pì,

tuti quei che i ga lassà impronte ’nte la cusina,

sui muri, sui tochi de legna,

e anca ’nte i nostri cuor.

El fogon no el ze massa ’na màchina:

el ze ´n armàrio de memòrie.

E fintanto che ’na famèa la ga la bronsa viva,

gnente, gnente del mondo se pol considerar perdù.


Dr. Luiz Carlos B. Piazzetta 

domingo, 14 de dezembro de 2025

Superstições Antigas do Vêneto: Crenças, Rituais e Objetos que Guiaram a Vida no Século XIX


 

Superstições Antigas do Vêneto: Crenças, Rituais e Objetos que Guiaram a Vida no Século XIX

No Vêneto do século XIX — em seus vilarejos isolados, nas pequenas cidades muradas e até nos grandes centros comerciais como Veneza, Verona e Padova — as superstições circulavam com a mesma naturalidade que o dialeto e o cheiro do pão recém-assado. Antes da eletricidade e da medicina moderna, essas crenças davam forma ao cotidiano e ofereciam explicações para o que a ciência ainda não alcançava.antes das estradas pavimentadas e muito antes de a ciência alcançar as pequenas comunidades rurais, a vida era guiada por sinais invisíveis. Cada objeto, cada gesto e cada ruído da natureza podia carregar significados que ultrapassavam o simples cotidiano. As superstições — herança de séculos de tradição camponesa, influência cristã e resquícios de crenças pré-cristãs — moldavam a forma como as pessoas compreendiam o mundo, protegiam suas famílias e interpretavam o futuro.

Essas crenças acompanhariam também os milhares de vênetos que emigraram para a América, levando na bagagem medos, rituais, rezas e cuidados transmitidos pelas nonas. Muitos desses costumes sobreviveram por gerações e ainda hoje despertam curiosidade entre descendentes de italianos.

Objetos comuns que “falavam”: copos, facas, colheres e pentes

No imaginário popular, instrumentos de uso diário tinham alma própria. Copos e taças nunca deveriam ser usados para olhar alguém “através do vidro”, gesto visto como anúncio de desentendimento ou doença. Pior ainda quando o copo se quebrava durante um brinde: acreditava-se que aquilo era um aviso severo do destino.

As facas carregavam uma energia ambígua. Entregá-las com a ponta virada para a pessoa era sinônimo de cortar a amizade. Se caíssem da mesa, anunciavam rompimento de noivado — embora para casados nada acontecesse. Para neutralizar riscos, quem recebia uma faca de presente deveria pagar uma moeda simbólica, gesto que “comprava” o objeto e afastava qualquer mal.

As colheres também comunicavam recados. Quando uma escumadeira caía, sua posição determinava boa ou má sorte. Se uma criança a levantasse com a mão direita, reforçava o presságio positivo. As tesouras exigiam ainda mais cuidado: só deveriam ser recolhidas por outra pessoa; quando isso não fosse possível, pisava-se nelas antes de pegar, como forma de quebrar qualquer negatividade.

O pente era visto como extensão da energia pessoal. Usar o pente de um falecido era absolutamente proibido, pois poderia trazer doença ou tristeza para dentro da casa. Crianças não deveriam ser penteadas antes de perderem todos os dentes de leite, crença que misturava proteção espiritual e cuidados tradicionais.

O pão e a vassoura: símbolos sagrados do lar vêneto

O pão, alimento central na mesa camponesa, possuía significado sagrado. Associado ao Corpo de Cristo, nunca deveria ser desperdiçado ou colocado de cabeça para baixo. Virar um pão para cortá-lo era considerado ofensa grave e anúncio de doença para o chefe da família. Piores eram os pães que saíam do forno com um buraco: sinal de morte próxima. Já pequenos pedaços do pão da ceia de Natal eram guardados como remédio para emergências, usados como proteção durante tempestades, doenças repentinas ou momentos de perigo.

A vassoura — objeto simples, mas carregado de simbolismo — tinha regras próprias. Jamais se comprava uma nova no mês de maio, considerado período de má sorte. Ao mudar de casa, a vassoura velha ficava para trás, e a nova deveria permanecer três dias do lado de fora antes de entrar. Crianças que brincavam com vassouras anunciavam a chegada de visitas inoportunas. Se um homem pegasse a vassoura de uma mulher, dizia-se que perderia a virilidade. Varrer os pés de uma pessoa solteira significava condená-la a nunca se casar, ou a ter um casamento frágil e curto — superstição ainda repetida de forma bem-humorada hoje em dia.

Malocchio: o poder do olhar e as proteções contra o azar

Nenhuma superstição do Vêneto era tão forte quanto o temor do malocchio, o “mau-olhado”. Acreditava-se que a inveja, consciente ou não, podia adoecer crianças, fazer animais definhar ou atrapalhar colheitas. Os sinais de malocchio incluíam dores de cabeça, febres inexplicáveis e desânimo repentino.

Para combatê-lo, usavam-se amuletos populares como:

  • raminhos de arruda ou louro atrás da porta;

  • pequenas medalhas de santos protetores;

  • pedaços de coral vermelho;

  • objetos em forma de mão fechada;

  • ferraduras colocadas acima da entrada da casa.

Além disso, rezas, benzeduras e sinais da cruz feitos em três movimentos eram considerados suficientes para romper “a energia ruim”.

Crenças ligadas à natureza, às pedras e às bruxas do Vêneto

Muito antes do cristianismo, os povos da região acreditavam em forças naturais presentes em árvores, rochas e fontes de água. No século XIX, essas crenças persistiam disfarçadas. Árvores com galhos retorcidos nunca deveriam ser cortadas, pois eram consideradas “moradas de espíritos”. Buracos em pedras e troncos, chamados busi, eram vistos em alguns locais como portais de cura contra hérnias, raquitismo e fraquezas.

Entretanto, com a influência cristã, essa prática passou a ser vista como superstição perigosa, proibida pelos padres. A dualidade entre fé popular e doutrina oficial estava sempre presente.

A figura da strega — a bruxa — também sobrevivia na imaginação rural. Não era a bruxa maligna dos contos modernos, mas uma mulher conhecedora de ervas, parteira ou curandeira. Em muitas aldeias, acreditava-se que as vassouras deixadas viradas para cima poderiam ser usadas pelas streghe para entrar na casa à noite. Por isso, deixá-las apoiadas com as cerdas para baixo era regra obrigatória.

Dias de sorte, de azar e presságios cotidianos

No Vêneto do século XIX, o calendário era repleto de dias favoráveis e desfavoráveis. Terças-feiras e sextas-feiras eram consideradas datas arriscadas para viagens importantes ou início de obras. Já o nascer do sol em certos dias, especialmente após tempestades, era lido como sinal de abundância.

Ouvir corujas anunciava doença; o canto repentino do galo no meio da tarde previa mudança de clima; uma borboleta que entrava em casa trazia boas notícias; uma vela que tremulava sem vento avisava a presença de espíritos.

Esses detalhes guiavam decisões práticas: quando semear, quando cortar madeira, quando visitar parentes ou quando adiar qualquer mudança importante.

Conclusão 

As superstições antigas do Vêneto formam uma gama fascinante de símbolos, medos e esperanças que moldaram a vida dos camponeses no século XIX. Misturando cristianismo, rituais pré-cristãos e sabedoria popular, essas crenças acompanharam os imigrantes que partiram para o Brasil e para outras regiões do mundo. Conhecê-las é preservar a memória cultural vêneta e compreender como pequenos gestos e objetos simples influenciaram profundamente a identidade de nossos antepassados.

Nota do Autor

Este texto nasce do desejo de manter viva uma herança que, aos poucos, desaparece da memória cotidiana: as superstições, crenças e rituais que moldaram o imaginário do Vêneto rural no século XIX. Muito antes da chegada da eletricidade, da medicina moderna ou das certezas do mundo contemporâneo, eram essas práticas—transmitidas por avós e comadres, renovadas a cada geração—que ofereciam proteção, esperança e sentido à vida.

Aqui, combinam-se pesquisa histórica, tradição oral e lembranças preservadas entre descendentes. O objetivo não é apenas listar costumes antigos, mas reconstruir, com profundidade e sensibilidade, a atmosfera espiritual em que viviam os camponeses vênetos que depois cruzaram o oceano. Suas crenças acompanhavam-nos nos bolsos, na fala e no coração, moldando a cultura dos imigrantes que ergueram comunidades inteiras no Brasil.

Ao registrar esse patrimônio imaterial, busco oferecer ao leitor uma compreensão mais ampla da mentalidade da época: o medo real das doenças, a reverência às forças da natureza, o peso da religião e a força do simbolismo que guiava gestos simples do dia a dia. Cada superstição, por menor que pareça, é um fragmento de identidade que merece ser preservado.

Que este trabalho sirva não apenas como consulta histórica, mas como ponte entre o passado e o presente, valorizando a memória dos que vieram antes de nós e ajudando a manter acesa a chama da cultura vêneta entre seus descendentes no Brasil.

Dr. Luiz Carlos B. Piazzetta



Silêncio, Pureza e Promessas: O Noivado e o Casamento nas Colônias Italianas do Sul do Brasil

 


Silêncio, Pureza e Promessas: O Noivado e o Casamento nas Colônias Italianas do Sul do Brasil


Nas colônias italianas do Sul do Brasil, o amor raramente começava com palavras. Ele nascia no silêncio, crescia sob vigilância e florescia dentro das regras rígidas da tradição, da fé e da honra familiar. O noivado e o casamento não eram apenas decisões do coração — eram pactos sociais, religiosos e morais que moldavam o destino de gerações inteiras.

Nas famílias de emigrantes italianos, o tema da sexualidade era um território proibido. Não se falava sobre desejo, corpo ou prazer. As palavras que hoje parecem naturais simplesmente não existiam dentro das casas. O corpo era visto com pudor absoluto, e nomear qualquer parte íntima era considerado vergonhoso. A educação sexual não era negligenciada — ela era deliberadamente silenciada.

Meninos e meninas cresciam sem qualquer explicação sobre o próprio corpo. O processo de concepção era envolto em explicações quase mágicas: as crianças vinham dos pântanos, trazidas pela cegonha, ou entregues discretamente pela parteira. Muitas jovens enfrentavam a primeira menstruação em choque, sem compreender o que acontecia com o próprio corpo.

O pecado era a palavra que definia todo pensamento ligado à sexualidade. Beijos antes do casamento eram escândalo. Carícias, impossíveis. O namoro acontecia sempre sob os olhos atentos da família — portas abertas, janelas escancaradas e um terceiro par de olhos sempre presente.

Aos homens, o mundo oferecia caminhos diferentes. Alguns trabalhavam longe das colônias e tinham experiências fora das regras, muitas vezes chegando ao altar sem a castidade que se exigia das mulheres. Já para as moças, o corpo era dever. O ato conjugal não era pensado como prazer, mas como obrigação moral — instrumento da procriação e da continuidade do sobrenome.

Quando acontecia uma gravidez antes do casamento, a honra da família só podia ser restaurada de uma forma: o matrimônio imediato, antes mesmo do nascimento da criança. Não havia escolha, apenas o peso do nome a ser preservado.

O noivado era um ritual quase sagrado. Após o consentimento dos pais da jovem, o rapaz podia visitá-la uma vez por semana — geralmente aos domingos — sempre na sala, sempre observados. Quando o compromisso era oficializado, dizia-se que o noivo ia “comprar i ori” — as alianças, que passavam a ser usadas imediatamente.

Era tradição que o noivo oferecesse à futura sogra um colar especial, muitas vezes chamado de colar da “Madona”. Em caso raro de rompimento do noivado, tudo era devolvido — menos esse colar, que permanecia como símbolo de respeito e devoção.

Na véspera do casamento, muitas mães abençoavam os filhos com água benta. Era ali, num quarto simples iluminado por lamparinas, que se diziam as palavras mais profundas — conselhos sobre vida, honra, paciência e dever. À noiva, a mãe falava discretamente sobre suas obrigações de esposa, sempre de forma vaga, sempre envolta em silêncio.

O grande dia normalmente acontecia em um sábado à tarde. O noivo, montado a cavalo, seguia até a casa da noiva acompanhado por padrinhos, amigos e familiares. O som dos cascos ressoava pelas estradas de terra, enquanto foguetes explodiam no céu e tiros eram disparados para o alto em sinal de festa.

Após a bênção na igreja, a comitiva seguia para a casa da família da noiva. Lá, mesas fartas aguardavam: massas, carnes, pães, vinhos. E então começava o baile — não apenas uma festa, mas a celebração de um novo elo entre famílias, entre histórias, entre mundos que se uniam para sempre.

O noivado e o casamento, nas colônias italianas, não eram apenas momentos — eram rituais que selavam o futuro.

Nota do Autor

Este texto foi construído a partir de registros históricos, relatos preservados pela tradição oral e pesquisas sobre os costumes das colônias italianas do Sul do Brasil. Mais do que apresentar fatos, esta narrativa buscou resgatar o espírito de uma época marcada pelo silêncio, pela fé e por um rígido senso de honra — elementos que moldaram a vida íntima, familiar e comunitária de milhares de imigrantes.

Ao recontar as práticas do noivado e do casamento, o objetivo não é julgar o passado com os olhos do presente, mas compreender a força das tradições que sustentaram famílias inteiras em meio às dificuldades da imigração. Cada costume descrito carrega em si a memória de homens e mulheres que, longe de sua terra natal, mantiveram vivos valores que estruturaram suas identidades e deram forma às comunidades que prosperaram no Brasil.

Este texto também é um tributo aos descendentes desses imigrantes, que hoje carregam nos sobrenomes, nas histórias de família e nas pequenas tradições cotidianas o eco dessas vivências. Preservar essas memórias é uma forma de honrar a trajetória daqueles que atravessaram oceanos, venceram a solidão e construíram, com sacrifício e fé, as bases de uma herança cultural que permanece viva até hoje no Sul do Brasil.

Dr. Luiz Carlos B. Piazzetta



sábado, 13 de dezembro de 2025

Sobrenomes Italianos do Alto Uruguai e Suas Origens nas Regiões da Itália



Sobrenomes Italianos da Região do Alto Uruguai e Suas Origens nas Regiões da Itália


AITA – GEMONA UD
BAGGIO – VILLARASPA VI
BALDISSERA – GEMONA UD
BANDIERA – RIESE PIO X TV
BARBIERI – DUEVILLE VI
BARICHELLO – LOREGGIA PD
BATTISTELLA – SCHIAVON TV
BEAL – BELLUNO
BENINCÀ – CORNUDA TV
BERTOLDO – FERRARA – MONTE BALDO VR
BEVILAQUA – BUSCO TV
BINOTTO – DUEVILLE VI
BISOGNIN – LONIGO VI
BOIANI – SAN BENEDETTO PÒ MN
BONATTO – TV
BORDIGNON – VEDELAGO TV
BORTOLAZZO – QUINTO VICENTINO VI
BOTTEGA – REFRONTOLO TV / CARBONERA TV
BRAGAGNOLLO - S. MARTIN DEI LUPARI PD
BRESOLIN – CAVAZZO DEL TOMBA TV / PEDEROBBA TV
BRIZOTTO – PRATA PN
BRONDANI – GEMONA UD
BUSANELLO – CESSALTO TV
BUSANELLO – MOTTA DI LIVENZA TV
BUSATO – FONGARA VI
BUSETTO – CALDOGNO VI
BUSNELLO – PEDEROBBA TV
CAPPELLETTO – VR
CARLESSO – MAROSTICA
CARLOTTO – BUZZOLLO VI / SELVA DI TREVISO TV
CASARIN – LOREGGIA PD
CASSOL – LIBANO BL
CELLA – CAVALIER TV
CERETTA – MONTICELLO CONTE OTTO VI
CERVI – MELETOLE REGGIO EMILIA
CERVO – PÒSINA VI
COMASSETO – PEDEROBBA TV
COPETTI – GEMONA UD
DAL LAGO – VERONA
DALCIN – VITTORIO VENETO TV
DALLACOSTA – ENEGO VI
DALMASO – VEGLIA – VITTORIO VENETO
DALMOLIN – LIBANO BL
DANESI – RODIGO MN
DE MARCO – TÈRMINE DI CADORE BL
DE DAVID – SEDICO BL
FILIPPETTO – TAMAI PN
FIORAVANTE – MONTEBELLUNA TV
FIORENTIN – PEDEROBBA TV
FRESCURA – MALVENA VI
GIACCOMINI – CHIARANO TV
GIRARDELLO – BREGANZE VI / VALLÀ TV
GOLIN – NAGHERELLO TV
GUARIENTI – RALLO TN
LAZZARI – TRISSINO VALDOGNO VI / BERGAMO BG
LAZZARINI – COGOZZO MN
LAZZAROTTO – VALSTAGNA VI
LORENZI – VALDASTICO VI
LORENZONI – MAROSTICA VI
LUNARDELLI – MANSUÈ TV
MAGNABOSCO – ZEVIO VR / COLOGNA VENETA VR
MANTOVANI – CICUGNAGO MN
MARCHESAN - CASTELFRENCO TV
MARCON – DUEVILLE VI
MASSIGNAN – MONTECCHIO MAGGIORE VI
MAZZONETTO – ROVARÈ TV / CAMPOSAMPIERO PD
MENEGHEL – PRATA UD
MIOSO – SAN GREGORIO VR
MORETTO – TAMBOLO PD
MORO – PRATA PN
MUNARETTO - VI
NARDI – FERRARA MN
PAGLIARINI – BOVOLONE VR
PASELLO – VILLA BARTOLOMEA VR
PASINATO – CITTADELLA PD / RESANA TV
PASSUELLO – S. GIACOMO – LUSIANA VI
PAVAN – TREViGNANO TV
PECCIN – PRATA PN
PEGORARO – ROSSANO VENETO VI
PESSUTTI – PORDENONE PN 
PIAZZETTA – PEDEROBBA TV
PICCOLI - PEDEROBBA TV
PIGATTO – ALCIGNANO VI
PIOVESAN – S. CRISTINA TV
PIVETTA – TAMAI PN
PIVOTTO – VI
POLLASTRI – MEDOLLA MO
POZZOBON – CAVASAGRA TV
POZZOBON – SAN MARTINO TV
PUTTON – PEDEROBBA TV
RIGON – ALBAREDO D´ADIGE VR
ROSA – MANIAGO UD
ROSSATTO – MUZZOLON VI
ROSSO – MANSUÈ TV
ROSTIROLA – PEDEROBBA TV
SANDRI – VI
SARTORI – SCHIO e GRANCONA VI / PRAVISDOMINI TV / PIAZZOLLA SUL BRENTA
SCARIOT – UDINE
SCOLARI – COLOGNA VENETA VR
SEGALLA – VR
SEGATTO – NOVALÈ VI
SERAFINI – GEMONA UD
SOLIMAN – ISOLA DELLA SCALA VR
SPONCHIADO – CARBONERA TV
STANGHERLINI – CASTELFRANCO TV
TONIAL – PORDENONE PD
TONETTO – MN
TRENTIN – MONTEGALDA VI
VEDANA – SÉDICO BL
VEDOVATO – CAMPOSAMPIERO PD
VENDRUSCOLO – RIVAROTTA PN
VICENZI – CASALE RONCOFERARO MN
VIERO – MAROSTICA VI / VILLARASPA VI
VIZZOTTO – PIAVON TV
ZAGO – CHIARANO TV
ZAGO – CIARANO TV E MANSUÈ
ZARDO – LORIA TV


Dr. Luiz Carlos B. Piazzetta
Erechim RS


Sobrenomes de Crianças Enjeitadas: A História Oculta dos Abandonados na Itália



Sobrenomes de Crianças Enjeitadas: A História Oculta dos Abandonados na Itália

O contexto social do abandono infantil

Ao longo dos séculos XVII, XVIII e XIX, o abandono infantil não era um fenômeno isolado, mas parte dolorosa da estrutura social europeia. A pobreza extrema, a orfandade causada por epidemias, as uniões ilegítimas e a ausência de políticas de amparo empurravam milhares de mães a depositar seus recém-nascidos nas rodas dos expostos, esperando que ali encontrassem ao menos uma chance de sobrevivência. Muitas dessas mulheres não deixavam qualquer indício de identidade, seja por vergonha, seja por medo de punição moral ou religiosa. Assim, ao chegarem às instituições, esses bebês precisavam de algo básico, porém fundamental: um nome que lhes permitisse existir perante o mundo. Nascia então a prática de atribuir sobrenomes artificiais, criados pelos administradores, religiosos ou escrivães responsáveis.

A lógica por trás dos sobrenomes inventados

Esses sobrenomes inventados não eram aleatórios; carregavam significados que refletiam a condição da criança, a rotina da instituição ou até um simbolismo religioso. Termos como Esposito, Innocenti, Proietti ou Della Casa serviam tanto para registrar quanto para estigmatizar, marcando para sempre a origem dolorosa da criança. Em muitos casos, o sobrenome funcionava como um código interno para indicar em qual roda de expostos o bebê havia sido encontrado ou qual religioso estava de plantão no momento do registro. Outras vezes, eram sobrenomes que expressavam esperança — como Fortunato, Providenza ou Felice — numa tentativa de oferecer um sopro de destino melhor àquele recém-nascido que chegava ao mundo sem amparo familiar.

A trajetória desses sobrenomes no Brasil

Com a imigração italiana para o Brasil entre os séculos XIX e XX, milhares desses sobrenomes criados artificialmente atravessaram o oceano e se enraizaram definitivamente em terras brasileiras. Nas colônias agrícolas do Sul, em São Paulo e até no Espírito Santo, muitos descendentes carregam até hoje sobrenomes cuja origem está ligada a antigas casas de acolhimento italianas — sem que suas famílias conheçam essa história. Essa migração fez com que sobrenomes antes restritos às instituições europeias se misturassem à sociedade brasileira, perdendo a marca de abandono, mas preservando o valor histórico. Hoje, compreender essa tradição é resgatar uma parte silenciosa da formação de diversas famílias ítalo-brasileiras, dando voz aos que um dia foram registrados como “ninguém” e que, graças a um sobrenome inventado, puderam reescrever seu destino.

A criação de sobrenomes nas instituições de acolhimento

Durante séculos, milhares de crianças nascidas sem reconhecimento familiar foram registradas com nomes e sobrenomes criados especialmente para elas. Em vez de refletirem a herança de um clã, esses sobrenomes carregavam a memória de um abandono e, ao mesmo tempo, a tentativa de lhes oferecer uma identidade mínima. No mundo latino, a ideia de “encontrar” uma criança — em francês l’enfant trouvé e em italiano i trovatelli — suavizava a dura realidade do abandono, ainda que os registros oficiais costumassem indicar “pais desconhecidos”, “filho natural” ou expressões semelhantes.

A prática era comum em diversos países europeus, especialmente na Itália. Muitas crianças eram deixadas em portas de igrejas, hospitais ou instituições de caridade. Outras eram depositadas nas tradicionais Rodas dos Expostos, mecanismos instalados em orfanatos que permitiam deixar o bebê anonimamente. Quem registrava a criança — administradores, religiosos ou o próprio tabelião — ficava responsável por criar um sobrenome que a distinguisse e, ao mesmo tempo, a identificasse como pertencente àquela condição.

Significados e categorias dos sobrenomes inventados

Diversos sobrenomes surgiram a partir desse sistema. Alguns eram inspirados no local onde o bebê foi encontrado; outros evocavam sentimentos de esperança, proteção divina ou até referências moralizantes. Havia também sobrenomes carregados de significados duros, como Abbandonati, Ignoti, Incerti, Bastardi, Trovatelli, entre outros — embora progressivamente desestimulados no século XIX. Certos nomes tornaram-se tão recorrentes que ultrapassaram fronteiras e chegaram ao Brasil com os imigrantes italianos.

Entre os sobrenomes inventados mais comuns estavam:

Benedetti e variantes, ligados a “abençoado”, expressão de bom augúrio.

Benigni, associado à bondade e benevolência.

Casagrande, que podia indicar tanto um edifício imponente quanto a “Casa Grande” das instituições de acolhimento.

Colombo, ligado à pureza da pomba, muito usado na Lombardia, onde os pequenos abandonados eram chamados colombit.

Innocenti, um dos mais emblemáticos, especialmente em Florença, ligado ao histórico hospital dos Inocentes.

Omoboni, mesclando origem pessoal e desejo de virtudes futuras.

Proietti, que remete ao ato de ser “lançado” ou “posto fora”.

Trovato e Trovatelli, diretamente derivados da ideia de criança encontrada.

A mudança de sensibilidade no século XIX

Essa prática passou por profundas transformações ao longo do século XIX. À medida que novos debates sobre dignidade humana surgiam, tornou-se evidente que certos sobrenomes condenavam seus portadores a um estigma perpétuo. Em regiões como Nápoles, tornou-se proibido registrar bebês com cognomes que denunciassem explicitamente sua origem.

A partir desse novo olhar, sobrenomes passaram a ser criados de maneira mais criativa e menos discriminatória. Muitos refletiam o imaginário da época:

objetos cotidianos: Quaderni, Mestoli, Tetti

plantas e flores: Pioppi, Susini, Limoni, Rosai

ofícios: Tintori, Merciai

nomes próprios de cantores e políticos famosos da época nou lugares: Puccini, Mantovani, Tamigi

datas e festividades religiosas

sentimentos e virtudes: Fortunati, Benarrivati, Bonaventuri

elementos moralizantes: Giusti, Placidi, Pietosi

Esses sobrenomes criados artificialmente se tornaram parte da identidade de milhares de famílias e, com o tempo, foram naturalizados nas comunidades.

Da Itália ao Brasil: herança, memória e identidade

No Brasil, especialmente nas regiões de imigração italiana, muitos desses sobrenomes foram mantidos, transmitidos e incorporados à cultura local. Hoje, uma simples assinatura pode carregar séculos de história — não apenas de origem geográfica, mas de sobrevivência, anonimato e reinvenção.

Compreender a origem desses sobrenomes significa revisitar práticas históricas ligadas ao abandono infantil, às instituições de assistência e aos sistemas de acolhimento que moldaram identidades familiares inteiras. É uma história de dor, sobrevivência e estigma — mas também de esperança, reconstrução e novos começos. 

Conclusão 

Os sobrenomes atribuídos às crianças enjeitadas revelam uma parte pouco conhecida da história italiana e ajudam a compreender a formação de muitas famílias que hoje buscam suas raízes. Esses nomes, criados entre a dor do abandono e o desejo de oferecer uma nova chance, cruzaram oceanos e passaram a fazer parte da herança de milhares de brasileiros. Entender sua origem amplia o conhecimento genealógico, resgata identidades e fortalece a memória dos antepassados que, apesar das adversidades, deram início a novas linhagens.

Nota do Autor 

Escrevo sobre esse tema porque, em tempos recentes, milhares de descendentes de imigrantes italianos têm buscado reconstruir suas histórias familiares e compreender o significado de seus sobrenomes. Muitos se surpreendem ao descobrir que determinadas denominações nasceram em orfanatos, casas de caridade ou rodas dos expostos. Minha intenção é oferecer clareza e contexto sobre esse fenômeno histórico, ajudando cada leitor a encontrar, em seu próprio sobrenome, uma parte da trajetória de seus antepassados.

Dr. Luiz Carlos B. Piazzetta



sexta-feira, 12 de dezembro de 2025

Sob o Céu do Deserto: A Saga de um Imigrante Italiano no Espírito Santo (1877)

 


Sob o Céu do Deserto: A Saga de um Imigrante Italiano no Espírito Santo (1877)

Giuseppe Bellandi jamais esqueceria o dia em que o Conte Verde levantou âncora no porto de Gênova. Era início de junho de 1877, e a névoa que pairava sobre o mar parecia ter saído dos pulmões aflitos dos que partiam. Havia nos olhos dos emigrantes o peso do que deixavam: as vinhas secas da Lombardia, os campos lavrados por gerações, a voz da mãe no pátio, chamando os filhos para o almoço com a mesma cantilena há décadas. Tudo isso ficava para trás, consumido pelas caldeiras do navio e pela promessa de terras tropicais do outro lado do mundo.

A travessia foi longa, e os dias se arrastaram sob o balanço constante do Atlântico. Quando o navio cruzou o Equador, o calor tornou-se insuportável. A madeira dos porões rangia com a umidade, e os passageiros, amontoados como sardinhas, suavam febre e esperança. Alguns adoeceram. Outros rezavam. Giuseppe apenas observava. Aprendia a suportar — o calor, a saudade, o desconhecido.

Ao alcançar o porto do Rio de Janeiro, foi tomado por um espanto silencioso. A cidade não se assemelhava a nenhuma vila italiana que conhecia. Era como se a selva houvesse engolido as construções humanas e deixado que a natureza se infiltrasse por entre as casas, os becos e os morros. Montanhas verdes dominavam o horizonte, e o sol se debruçava sobre o mar com a autoridade de um imperador. Mas não havia tempo para contemplações.

Poucos dias depois, embarcou novamente — desta vez em uma embarcação menor, singrando a costa em direção ao norte. O destino era o Espírito Santo, onde se espalhavam colônias de imigrantes que haviam chegado antes. Vitória parecia um porto esquecido entre a vegetação densa e o mar esverdeado. Ali, os recém-chegados eram desembarcados como fardos e embarcados outra vez em canoas e carretas, rumo ao interior.

Foi assim que Giuseppe conheceu o Deserto. Um nome impróprio para uma quase esquecida localidade daquela província, onde tudo era excesso: o mato, o calor, os mosquitos, os sons desconhecidos da mata. Recebeu um lote de terra — vinte e cinco alqueires, diziam, parte mata virgem, parte terra nua. Não havia casas, nem estradas. Apenas clareiras abertas a golpes de machado, onde as famílias erguiam, com as próprias mãos, seus primeiros refúgios.

Nos meses que se seguiram, ele redescobriu o corpo. O lombardo de mãos finas tornou-se colono de calos duros. Carregava toras, limpava raízes, queimava capoeira, plantava mandioca e milho, mas era o café que despertava sua esperança. Diziam que aquela terra quente e avermelhada fazia os grãos vingarem como ouro. Bastava esperar. Bastava resistir.

O clima, no entanto, era um adversário constante. A umidade grudava nas roupas e na pele. O céu desabava sem aviso. As noites eram preenchidas por ruídos que nenhum homem europeu poderia nomear com segurança: uivos, coaxos, estalidos. A comida era simples e estranha. Giuseppe sentiu falta do pão e do vinho; em seu lugar, comia mandioca, bananas, feijão grosso e carne de sol. Levou semanas até que o estômago aceitasse o novo cardápio. Sentia-se exilado do próprio paladar.

Mas a natureza também oferecia fartura. As árvores carregavam frutas de nomes impossíveis. As caçadas rendiam mais do que prazer: eram sobrevivência. Em pouco tempo, aprendeu a reconhecer as aves — galinhas do mato, perdizes, marrecos. E animais que pareciam saídos de um pesadelo: serpentes gigantes que se arrastavam nas sombras, bichos-preguiça do tamanho de bezerros, onças que espreitavam à distância, sem se aproximar. A floresta não era inimiga, mas tampouco se deixava domar facilmente.

Na pequena colônia, não havia lugar para o isolamento. Italianos, alemães, franceses, suíços, portugueses e negros partilhavam os mesmos temores e a mesma teimosia. Falavam línguas diferentes, mas lavravam o mesmo chão. Giuseppe encontrou ali uma fraternidade rústica, fundada na necessidade. Construíram juntos uma capela. Nas noites de domingo, rezavam em uníssono, cada um em seu idioma, como se Deus soubesse escutar todos ao mesmo tempo.

O tempo passou, e com ele vieram os primeiros sinais de progresso. Os cafezais cresceram, e com eles a sensação de que a terra, enfim, retribuía o esforço. As mãos de Giuseppe já não eram as mesmas que haviam apertado as de sua mãe na partida. Carregavam cicatrizes, mas também firmeza. O medo transformara-se em método. O cansaço, em propósito.

Na véspera do 25 de março, preparavam uma celebração. Seis dias de festa, missas, cantos e mesas fartas. Haveria caça em abundância, prometeram os mais velhos. Era o modo que haviam encontrado de lembrar a todos que, embora estivessem longe de casa, não estavam sozinhos. Sob o céu inclemente do Deserto, construíam um novo mundo com suor, silêncio e saudade.

Giuseppe ainda sonhava com as vinhas da Lombardia. Mas quando abria os olhos e via os cafezais verdes cortando o horizonte, compreendia que aquele pedaço de Brasil, bruto e ardente, era agora também seu lar.

Décadas se passaram desde aquele desembarque silencioso em Vitória. O que antes era mato e promessa virou terra firme. Onde havia sombra e dúvida, ergueram-se colunas de pedra e de história. As árvores cresceram junto com os filhos, e os filhos deram filhos, e a casa de madeira se tornou casa de alvenaria, mas sem perder o cheiro de lenha e memória.

Giuseppe envelheceu devagar, como a terra que aprende os passos de quem a cultiva. Já não manejava a enxada, mas gostava de caminhar entre os pés de café, sentindo a aspereza das folhas, observando os galhos curvados pelo peso dos frutos maduros. A colônia prosperava. Os nomes italianos se misturavam aos nomes alemães, franceses, suíços, portugueses. E as crianças já falavam outra língua, ou muitas ao mesmo tempo — mas carregavam, no jeito de olhar, a marca do imigrante.

Ele nunca voltou à Itália. Não por falta de saudade, mas porque entendeu, muito cedo, que a travessia que fizera era definitiva. Havia cruzado não apenas o oceano, mas uma linha invisível entre passado e porvir. A vida de antes seguia em cartas, em lembranças, em sonhos. Mas o presente — e tudo o que ainda germinaria — estava ali, sob os céus estranhos do Brasil.

Nos seus últimos anos, pedia para sentar-se à varanda ao entardecer, de onde podia ver a lavoura e, ao longe, o campanário da capela. Gostava do som dos sinos, dos pássaros pousando no terreiro, do cheiro de terra molhada após a chuva. Às vezes cochilava e, ao acordar, confundia o tempo: chamava pelos irmãos que haviam ficado na Itália ou perguntava se já era tempo de colher as uvas. Aos poucos, os dois mundos que habitavam dentro dele começaram a se fundir.

Morreu numa tarde calma, cercado por filhos e netos. Foi enterrado com suas botas de couro, as mesmas do primeiro plantio, ao lado da mulher que conhecera naquela terra nova e fértil. Sobre seu túmulo, plantaram uma muda de café — como se a vida dele continuasse ali, em silêncio, florescendo.

Hoje, entre os sulcos avermelhados daquela antiga colônia, ainda vive o nome Bellandi. Alguns lavram, outros estudam nas cidades, alguns já nem pronunciam corretamente o sobrenome do bisavô. Mas todos carregam, sem saber, a herança invisível daquele homem que chegou sem nada além de fé e coragem.

E a terra, enfim, o reconheceu como seu. 

Nota do Autor

Esta história nasceu do silêncio das cartas que não chegaram, das fotografias desbotadas por mãos calejadas, dos nomes que o tempo quase apagou. Giuseppe Bellandi é um personagem inventado, mas sua jornada ecoa milhares de vidas reais. Vidas que cruzaram o oceano em porões abafados, movidas por uma esperança que não cabia nas palavras. Vidas que trocaram a certeza das colinas italianas pelo mistério de uma terra abrasadora, cheia de promessas e perigos, onde tudo — até o idioma — precisava ser aprendido de novo.

Escrevi esta narrativa com o coração voltado a todos os que partiram sem saber se haveria retorno, aos que enterraram seus mortos longe dos campos de infância, aos que aprenderam a amar uma terra que não era sua, até que se tornasse.

Quis homenagear a coragem silenciosa daqueles homens e mulheres que não tiveram escolha senão recomeçar. Gente que construiu casas com as próprias mãos, cultivou fé entre os sulcos da terra, educou filhos no improviso, cantou missas sob galpões de tábuas, e deixou heranças que não se medem em bens — mas em raízes. 

Se, ao chegar à última linha, você sentiu o cheiro da terra vermelha, ouviu o som distante de um sino no entardecer, ou enxergou um velho sentado à varanda com saudade nos olhos, então esta história cumpriu seu destino. Porque Giuseppe Bellandi pode ser fictício. Mas sua memória — e a de tantos como ele — é, e sempre será, verdadeira.

Dr. Luiz C. B. Piazzetta