Entre Ramos e Lembranças — A Velhice, a Doença e a Morte nas Colônias Italianas do Sul do Brasil
Desde o momento da chegada ao solo gaúcho, os imigrantes italianos — muitos oriundos do Vêneto, Lombardia, Trentino e outras regiões do norte da Itália — trouxeram consigo não só a esperança de uma nova vida, mas também tradições profundas, moldadas por fé, costume e comunidade.
Nas colônias rurais, onde cada colônia ou lote era isolado de seus vizinhos, a vida transcorria entre o trabalho na terra, a construção da casa, o cultivo da videira ou da lavoura — e, por consequência, o enfrentamento das agruras da existência: doenças, velhice, sofrimento. A ausência de médicos ou hospitais próximos tornava cada enfermidade uma provação marcada pela incerteza.
Nessas circunstâncias, a comunidade se tornava o sustentáculo de quem adoecia. Famílias, vizinhos e amigos organizavam rodízios de cuidado, muitas vezes clareados por lamparinas na noite do campo, garantindo auxílio, conforto e presença. A religiosidade — herança da terra natal — servia de alicerce: rezas em dialeto, terços, pequenos altares domésticos, lamparinas e a fé em santos aliados ao cotidiano.
Quando a enfermidade se tornava incurável, ou a velhice chegava, a expectativa era de uma passagem serena — marcada pela certeza de dever cumprido, de uma vida dedicada à labuta e à família. E a morte, longe de ser tratada apenas como um fim, era compreendida como um rito de passagem: cercada de devoção, temor e respeito quase reverente.
Ritos, crendices e práticas de despedida
No leito final, familiares pediam perdão de possíveis mágoas, afinavam a reconciliação — como se a alma precisasse partir em paz. A casa recebia velas acesas, água benta, orações. O corpo do falecido era lavado com cuidado, vestido com suas melhores roupas, mantendo os olhos fechados — pois deixá-los abertos era interpretado como mau presságio, prenunciando outra morte na família em breve.
O velório durava longas horas — por vezes um dia inteiro — geralmente na sala de estar ou quarto da casa, com o corpo sobre o leito original, ou depois sobre tábuas apoiadas em cadeiras, aguardando a confecção do caixão por um carpinteiro da comunidade. A carroça puxada por bois, coberta por panos negros, transportava o féretro até a igreja ou, quando não havia padre, o rosário era recitado em comunidade. Nos cortejos, mulheres cobriam a cabeça com véus, os homens tiravam o chapéu. Na chegada ao cemitério, os presentes lançavam terra sobre o caixão — simbolizando o retorno do corpo à terra que haviam cultivado.
Em muitas localidades, após o enterro eram celebradas missas e novenas em intenção da alma do falecido — um laço de fé que permitia aos vivos expressar dor, saudade e esperança de reconforto eterno para quem partira.
Memória, retratos e legado de ancestralidade
Numa época em que o retrato fotográfico era privilégio raro — e os fotógrafos geralmente “itinerantes” —, a morte chegava com um pedido mórbido e terno: famílias chamavam o retratista para fotografar o falecido dentro do caixão, cercado por parentes, como forma de eternizar sua memória. Para muitos, era a única recordação visível do ente querido que partiu. Essa tradição — estranha aos olhos modernos — revela a força do afeto, da saudade e do desejo de fixar raízes mesmo na dor.
Essa memória, hoje, encontra-se preservada em acervos, fotografias amareladas, narrativas orais, costumes transmitidos de geração a geração, e no patrimônio imaterial — o dialeto, a fé, os costumes, o respeito pelos mais velhos —, compondo a gama que identificam as comunidades ítalo-gaúchas.
Novas camadas de crenças, medos e rituais — além do funeral tradicional
Com base em relatos históricos e etnográficos sobre os imigrantes italianos (e seus descendentes) no Brasil, especialmente no Rio Grande do Sul, identificam-se as seguintes crenças, simpatias e tabus associados à doença, à velhice e à morte:
Crença na alma e no “vínculo espiritual” após a morte — Algumas tradições consideravam que a alma do falecido permanecia temporariamente “presa” ao corpo até o enterro. Se o corpo não fosse lavado corretamente, ou se não fosse vestido apropriadamente, isso poderia trazer mau-agouro, dificuldade da alma “partir” ou mesmo o retorno como espírito perturbador.
Uso de água benta e rezas para purificação e proteção — Era comum lavar o corpo com água benta, como forma de “limpar” o falecido, afastar maus espíritos, e garantir uma passagem segura da alma.
Preparação ritual cuidadosa do corpo: roupas limpas, lençóis brancos, itens religiosos — Vestir o corpo com roupas limpas e claras (às vezes branco), cobri-lo com lençol branco, incluir crucifixos, terços ou outros objetos sagrados junto ao corpo, como proteção espiritual.
Medo de “mão errada” ou “olhares errados”: preservação dos olhos fechados — A crença de que deixar os olhos abertos poderia atrair má sorte ou permitir que o falecido “chamasse” outros familiares, provocando uma nova morte. Isso aparece nas práticas funerárias descritas nas comunidades.
Ritos de purificação da casa após a saída do corpo — Depois do velório e enterro, era costume varrer a casa por alguém de fora da família e abrir portas ou janelas, simbolizando que a morte havia saído e para evitar que o “espírito” permanecesse preso.
Medo do “não enterro digno”: o temor de que funerais mal feitos causassem desgraça à família — Nas comunidades de colonos, a ausência de médicos, a pobreza, o isolamento, às vezes tornava difícil cuidar do corpo corretamente, o que gerava ansiedade sobre o destino da alma.
Valorização da comunidade e do cuidado mútuo — curandeiros, benzedeiras, rezas, fé popular — Com a falta de acesso a médicos ou hospitais, os colonos recorriam a remédios populares, “curas de fé”, benzedeiras, rezas, invocações religiosas ou até práticas espirituais herdadas da Itália — um sincretismo entre catolicismo e fé popular.
Temor dos “mortos que não descansam”: fantasmas, aparições, locais amaldiçoados — Algumas comunidades mantinham o medo de espíritos, especialmente de pessoas mortas de forma violenta ou abandonadas — a migração muitas vezes deixava pessoas pelo caminho. Os cemitérios, velórios ou até casas onde alguém havia morrido eram vistos com suspeita ou respeito reverente.
Penitências, promessas, devoções às almas dos falecidos e santos de proteção — A religiosidade manifestava-se não apenas em missas ou novenas, mas na devoção a santos e às almas do purgatório, acreditando-se que estas podiam interceder em momentos de calamidade, doença ou morte.
Esses elementos mostram que, para muitos imigrantes, a experiência da morte — e o receio da doença — iam muito além do fim da vida física; envolviam a sobrevivência espiritual, o medo do desconhecido, a proteção da comunidade e uma religiosidade intensa que se adaptava às novas realidades do Brasil, mas mantendo vivas crenças trazidas da Itália.
Conclusão — Vida, Morte e Comunidade: herança que permanece
A experiência dos imigrantes italianos, especialmente dos vênetos, nas colônias do Rio Grande do Sul, mostra como a doença, a velhice e a morte foram atravessadas não apenas como tragédias individuais, mas como fenômenos coletivos, marcados pela solidariedade, pela fé e pela memória. O cuidado mútuo, os ritos de despedida, o respeito aos mais velhos, as tradições de luto e as práticas simbólicas revelam uma cultura de proximidade — essencial para enfrentar a dureza da terra, o isolamento, o sofrimento e a mortalidade. Hoje, ao revisitar essas narrativas, resgatamos não só costumes e crenças, mas também valores de comunidade, pertencimento e humanidade — um legado que permanece vivo em famílias, histórias, fotografias e na paisagem social do Sul do Brasil.
Nota do Autor
Este texto pretende dar voz às memórias silenciosas dos pioneiros italianos no Rio Grande do Sul — suas dores, suas esperanças, seus rituais de fé e despedida. Ao resgatar esses fragmentos de vida e morte, busca-se fortalecer a compreensão da identidade ítalo-gaúcha e preservar para as novas gerações o valor da comunidade, da memória e da tradição.
Dr. Luiz Carlos B. Piazzetta
