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terça-feira, 26 de setembro de 2023

Epidemia a Bordo: A Trágica Jornada dos Imigrantes Italianos Rumo ao Brasil


 

Antonio era um imigrante italiano que decidiu arriscar tudo e embarcar em um navio em busca de uma vida melhor. Como muitos outros italianos na época, ele partiu do porto de Nápoles em direção à América do Sul, especificamente para o Brasil para trabalhar em uma fazenda de café do interior do estado de São Paulo onde já moravam alguns parentes. O ano era 1919, logo após o fim da Grande Guerra  e a viagem prometia ser longa e cansativa.

A viagem de navio através do Atlântico era um sonho de muitos imigrantes italianos que buscavam uma nova vida em um país estrangeiro. Para muitos, o medo e a expectativa eram grandes, mas para outros, a viagem era vista somente como um grande desafio para as suas sofridas vidas. Era uma época em que viver na Itália era difícil  e as perspectivas de trabalho e educação eram muito limitadas causadas pelo longo conflito. Muitos italianos partiram em busca de uma vida melhor, enfrentando o desconhecido a procura  de novas oportunidades.

Ele partiu de Nápoles com a intenção de encontrar seus irmãos mais velhos que já estavam vivendo no país há uns 4 anos. A bordo do navio, ele se juntou a outros imigrantes italianos do norte e do sul do país que compartilhavam da mesma esperança e expectativa. No entanto, a felicidade da viagem seria abalada por uma grave epidemia que se alastrou a bordo.

Logo nos primeiros dias, Antonio notou que muitos passageiros estavam tossindo, vomitando e com febre alta. Alguns dias depois, o médico de bordo identificou a doença como gripe espanhola, uma epidemia que ainda assolava o mundo na época. A bordo, havia poucos medicamentos e suprimentos médicos, e a tripulação estava sobrecarregada devido ao grande número de doentes inclusive funcionários de bordo.

A doença se espalhou rapidamente pelo navio, e muitos passageiros foram colocados em quarentena. O medo e o pânico tomaram conta do navio, e os passageiros se isolaram em seus camarotes. As condições de higiene a bordo eram precárias, o que contribuiu para a rápida propagação da epidemia.

Antonio ficou preocupado com sua própria saúde, mas também com a de seus irmãos e amigos que viajavam com ele. Ele se recusou a se isolar em seu camarote e tentou ajudar o pessoal de bordo, colaborando nos cuidados aos  doentes. Ele e outros voluntários tentavam manter o ambiente o mais limpo possível, limpando as áreas comuns e ajudando alimentar os doentes.

Os dias se passaram lentamente e a epidemia parecia não dar trégua. Antonio continuou trabalhando ajudando o pessoal da tripulação a a distribuir os remédios existentes. Ele se sentiu um pouco cansado, mas recusou-se a se entregar à doença. Seus irmãos, que também estavam doentes, estavam em quarentena e ele não podia visitá-los.

Os dias e as noites no navio foram marcados por uma sensação de medo e incerteza. Muitos passageiros morreram e foram jogados ao mar, sem cerimônias adequadas. A tripulação estava sobrecarregada e os passageiros se sentiam abandonados e desamparados.

Antonio, no entanto, continuou a ajudar como podia, apesar de sua própria saúde estar se deteriorando. Ele se recusou a se isolar e continuou trabalhando incansavelmente para ajudar os outros. Ele começou a ter febre alta e sua tosse piorou, mas ele se recusou a desistir. Ele sabia que seus irmãos dependiam dele e que muitos passageiros estavam em situação ainda pior.

À medida que a viagem se aproximava do fim, a epidemia começou a diminuir, graças aos esforços do pessoal de bordos e voluntários como Antonio. Muitos passageiros se recuperaram, mas outros não tiveram tanta sorte. Antonio perdeu alguns amigos e conhecidos durante a epidemia, o que o deixou profundamente triste.

Finalmente, o navio chegou ao seu destino, mas a chegada não foi como eles imaginaram. As autoridades portuárias temiam a propagação da epidemia e o navio foi colocado em quarentena. Antonio e os outros passageiros tiveram que permanecer a bordo por mais alguns dias antes de poderem desembarcar.

Quando finalmente desembarcaram, muitos dos imigrantes italianos estavam fracos e doentes. Eles foram levados a hospitais para tratamento e mais alguns morreram. Antonio e seus irmãos foram colocados em quarentena por mais algumas semanas, antes de serem liberados para se estabelecerem no novo país.

A experiência no navio deixou uma marca profunda em Antonio e em muitos outros passageiros. A epidemia mostrou a fragilidade da vida humana e como uma doença pode se espalhar rapidamente em condições de higiene precárias. Mas também mostrou a coragem e a solidariedade dos passageiros, especialmente aqueles que trabalharam incansavelmente para ajudar os outros.

A viagem de navio através do Atlântico foi uma jornada difícil para Antonio e outros imigrantes italianos, mas eles superaram os obstáculos e conseguiram chegar ao seu destino. A epidemia foi um desafio terrível, mas também trouxe à tona o melhor da humanidade, com muitos passageiros trabalhando juntos em solidariedade para enfrentar a doença. A viagem acabou deixando uma lição valiosa sobre a importância da cooperação e da empatia em momentos difíceis.


Texto
Dr. Luiz Carlos B. Piazzetta
Erechim RS



sexta-feira, 11 de março de 2022

Morte a Bordo O Emocionante Relato de uma Mãe em um Navio de Emigrantes Italianos






Em uma reportagem publicada pelo jornal italiano Corriere della Sera podemos avaliar o sofrimento de uma mãe emigrante ao perder a sua filha durante a travessia.

"Durante a viagem no lento vapor a minha filha começou a ter febre. Era uma febre muito forte, cada vez mais alta. Eu ficava com ela dia e noite, apavorada não sabia o que fazer. Uma noite a ouvi gemer, estava suando frio, tremendo; tentei aquecê-la e segurá-la perto de mim, mas de repente ela parou de tremer. Estava morta. Morta! Talvez porque não haviam remédios, talvez porque não havia nenhum atendimento médico à bordo; não sei. Talvez ela tivesse contraído uma febre mortal”.
"Arrancaram ela dos meus braços, a enfaixaram bem apertado da cabeça aos pés e amarraram uma grande pedra ao pescoço; durante a noite, às duas horas da madrugada, com aquelas ondas tão negras, a jogaram ao mar. Eu gritava, gritava, não queria me afastar dela, queria me afogar com minha filhinha; alguns braços me seguraram, homens eu creio. Eu não queria que minha filhinha tão pequenina acabasse naquele mar tão frio, tão escuro, certamente seria devorada pelos peixes. Eu queria ir com ela, protegê-la de alguma forma, defendê-la, para que eles não a devorassem. Eu não queria deixá-la sozinha, pobre criança, mas eles me seguraram enquanto a jogavam ao mar. Aquele baque na água, nunca mais consegui esquecer”.

Durante o grande êxodo italiano, período da grande emigração italiana compreendido entre o final do século XIX até a eclosão da I Grande Guerra Mundial, milhões de italianos tiveram de abandonar os seus lares para enfrentar o desconhecido em direção ao continente americano na esperança de uma vida melhor.

Para transportar esses milhões de desesperados emigrantes foram então necessárias milhares de travessias do oceano Atlantico em navios. Nos primeiros anos elas eram feitas em velhos barcos, alguns deles inclusive à vela, muito lentos e sem qualquer conforto à bordo, para enfrentarem muitas vezes mais de um mês de travessia.

Devido as precárias acomodações disponíveis à bordo, os emigrantes eram sujeitos a uma vida promiscua nos porões dessas embarcações. A falta de ventilação adequada, a deficiente higiene pessoal dos passageiros e dos locais onde dormiam, a falta de água e de instalações sanitárias adequadas para os dejectos dos imigrantes, o excesso de passageiros, às vezes muito além da cota permitida pelas autoridades portuárias, a péssima qualidade dos alimentos fornecidos, em muitos casos até a quantidade ficava abaixo do ideal, minavam a resistência física dos embarcados que ficavam assim mais sujeitos as doenças infecciosas.

O exame médico feito ao embarcarem, quando o faziam, era muito superficial e doenças transmissíveis podiam estar circulando entre os passageiros, sem serem detectadas. Quando então, em condições favoráveis, ocorria uma epidemia à bordo, que era um acontecimento muito sério pois, em poucos dias, podia matar dezenas e dezenas de passageiros.

Algumas doenças hoje controladas eram muito frequentes naquele período, algumas vezes podiam estar ocorrendo graves epidemias em cidades européias ou americanas. 

Entre essas doenças com potencial para eclodir fatais epidemias à bordo temos a difteria, que atingia especialmente as crianças, podendo matá-las em poucos dias. Ela causava febre muito alta e obstrução das vias aéreas superiores, matando por sufocamento o pequeno doente. A transmissão é por via aerea, através de gotículas de saliva ou de catarro, expulsos durante a tosse. O cólera também era uma doença muito grave, especialmente, em um ambiente confinado como de um navio com higiene precária. É uma infecção que além de febre muito alta, ataca as vias digestivas provocando vômitos e diarréia profusa. Sem tratamento pode levar à morte por desidratação em poucos dias. Atinge crianças e adultos, não respeitando a idade.

As intoxicações alimentares, as infecções respiratórias, o sarampo, a coqueluche e a tuberculose também ceifaram muitas vidas de emigrantes à bordo.



   

sábado, 30 de outubro de 2021

Os Navios de Lázaro

Emigrantes amontoados para o embarque

 

“Le Navi di Lazzaro”, assim eram definidos pelos jornais e opinião pública italiana, na época da grande emigração, os navios que atravessavam o oceano com sua carga de miséria e doenças, ou seja, com os milhares de emigrantes.

Após todo sofrimento, ainda em terra, desde  o momento da decisão de emigrar e o embarque no navio, a viagem transoceânica transformava-se em uma nova batalha, talvez a mais difícil, a ser vencida pelos emigrantes. 

Com a finalidade de conhecer melhor e apresentar uma descrição mais completa e precisa, e não apenas se baseando em números estatísticos de doenças e de mortalidade que ocorriam a bordo, nos valemos também da literatura disponível sobre o tema, em especial o livro Sull’Oceano, publicada em 1889 obra do escritor Edmondo De Amicis, nascido em 1846 e falecido em 1908, e amplamente utilizada por aqueles que se dedicam a historiografia da emigração.



Esse célebre livro é considerado um dos primeiros romances italianos a afrontar o tema da grande emigração. Foi escrito depois da viagem do seu autor, de Gênova à Montevidéu, no vapor Galileo, no ano de 1884. Este livro relata essa experiência vivida em primeira pessoa pelo escritor. Ele é basicamente uma espécie de diário de bordo, dedicado à viagem dos emigrantes, provenientes de muitas regiões italianas, que falavam somente os seus dialetos locais e, portanto, comunicavam-se apenas com os próprios "paesani".

No livro estão relatos de fatos ocorridos com famílias que viajavam para a América do Sul, em terceira classe, na busca de uma vida melhor, retratados pelo escritor, que lhes deu voz e mostrou suas agruras. Aqui temos um trecho: 


A situação precária dos emigrantes italianos a bordo de um navio


"Quando cheguei, ao entardecer, o embarque dos emigrantes já havia começado há uma hora, e o Galileu, junto com a descida de uma pequena ponte móvel, continuava a embarcar  miséria: uma procissão interminável de pessoas saindo em grupos do edifício do outro lado, onde um delegado de Polícia examinava os passaportes. A maioria, tendo passado uma ou duas noites ao ar livre, agachados como cães nas ruas de Gênova, estava cansada e com sono. Trabalhadores, camponeses, mulheres com bebês no peito, meninos que ainda tinham a chapa de metal do jardim de infância presa ao peito, passavam, quase todos carregando uma cadeira dobrável debaixo do braço, sacolas e malas de todos os formatos na mão ou na cabeça, braçadas de colchões e cobertores, e a passagem com o número do leito pressionado entre os lábios. Mas o espetáculo foi na terceira classe, onde a maioria dos emigrantes, apanhados pelo enjôo, deitavam-se ao acaso, atirados sobre os bancos, em posturas de doentes ou mortos, com o rosto sujo e os cabelos despenteados, no meio de um grande monte de cobertores e trapos. Vimos famílias unidas em grupos de compaixão, com aquele ar de abandono e perplexidade típica da família de sem-teto: o marido sentado e dormindo, a esposa com a cabeça apoiada em seus ombros e os filhos na mesa, que dormiam com a cabeça apoiada nos joelhos dos dois: montes de trapos, onde não se via nenhum rosto, e saía apenas o braço de uma criança ou a trança de uma mulher. (...) 

E o pior estava embaixo, no grande dormitório, cuja escotilha se abria perto do tombadilho de popa: olhando para fora, via-se na meia escuridão corpos sobre corpos, como nos navios que trazem os corpos de emigrantes chineses de volta à pátria; e dali saía um concerto de lamentos, chocalhos e tosses, como de um hospital subterrâneo, para nos tentar a desembarcar em Marselha. 

De Amicis pouco enfatizou questões delicadas como a alimentação a bordo, as condições de higiene e a mortalidade durante a viagem. Na verdade, muitos morriam devido a doenças ou a desconfortos sofridos nos navios – na maioria das vezes os mais vulneráveis: as crianças e os mais velhos. 




Exemplos dessa triste realidade não faltaram, sobretudo nos vapores que rumavam para o Brasil levando emigrantes com o bilhete subvencionado pelo governo do grande império sul-americano: em 1888, morreram de fome 36 pessoas no navio Matteo Bruzzo e 18 no Carlo Raggio; em 1889, no Frisia, 300 emigrantes adoeceram e 27 faleceram por asfixia em decorrência da proximidade entre o dormitório e a sala das máquinas.

As observações do deputado Pantano em uma sessão do Parlamento no ano de 1899 apontam claramente o motivo de tantas mortes. De acordo com o parlamentar:

"Os navios eram carcaças já muitas vezes dedicadas ao transporte de carvão, cargas de carne humana, amontoada e desprotegida, cuja passagem pelo oceano era assinalada por uma esteira de cadáveres ceifados pela morte nas fileiras dos emigrantes mais fracos e doentes, das mulheres e das crianças, extenuadas, mal de saúde devido aos alimentos insuficientes ou de má qualidade, pela inexistência de cuidados sanitários e pela falta de ar respirável na plenitude de um horizonte livre"


Emigrantes a bordo amontoados no tombadilho do navio


Em relação a esses episódios, a fase mais crítica ocorreu antes da lei de 1901. Nesse período, a tutela sanitária das massas de emigrantes, na falta de uma lei orgânica sobre emigração, era legada ao Regolamento della Marina Mercantile de 1879 e depois ao Regolamento di Sanità Marittima de 1895. 

O primeiro limitava-se ao conjunto de normas higiênicas para as embarcações adaptadas ao transporte de emigrantes; o segundo foi pioneiro na matéria sanitária, contemplando diretrizes para a tutela do emigrante – então definido como objeto jurídico específico – e delimitando, em termos gerais, uma série de funções competentes aos oficiais de porto e aos médicos de bordo.

Pesquisadores utilizaram um desses documentos, o boletim de bordo do vapor Giava, escrito pelo médico Teodoro Ansermini, para apresentar descrição minuciosa da situação higiênico-sanitária dentro do vapor da Navigazione Generale Italiana em uma das inúmeras viagens de transporte de emigrantes para a América do Sul. O navio deixou Gênova em 8 de outubro, aportou em Buenos Aires em 8 de novembro e retornou à Gênova em 4 de dezembro de 1899, passando por Santos e Rio de Janeiro.

Os problemas começaram logo na partida, quando Ansermini, o médico de bordo, solicitou o documento comprobatório da desinfecção do navio e foi prontamente lembrado de que era pago pela companhia e, portanto, não deveria criar obstáculos. Discorrendo sobre a estrutura interna do vapor, o médico acusava a falta de ventilação e de luz natural, as péssimas condições de alimentação e de alojamento, que dificultavam até mesmo o emigrante de lavar-se, além da escassez de remédios. Diante desse quadro de precária higiene, o alastramento de doenças era sua principal preocupação: 

"Se quisermos dar ao médico do navio uma certa responsabilidade em casos de epidemias, é absolutamente essencial que ele também tenha autoridade para fazer a higiene necessária a bordo: ainda não consegui obter, exceto por uma noite, que a permanência dos passageiros no convés seja prolongada, o que será preciso para tentar conter as duas invasivas epidemias de tifo e varíola, porque os porões não são suficientemente ventilados, e o pouco ar que existe, já doentio, esquenta muito e se decompõe, até se tornar irrespirável". 

Antes do início da viagem de retorno, Ansermini revelou outra preocupação com a higiene quando veio a ordem para o capitão do navio desfazer-se de grande quantidade de camas para abrir espaço ao carregamento de mercadoria. Tal fato expunha, mais uma vez, o emprego promíscuo dos vapores no transporte de emigrantes e merdorias. 

"O problema é que, depois de tantas doenças epidêmico-contagiosas a bordo (varíola, tifo, difteria, mortes), as desinfecções não podem mais ser feitas, e as mercadorias ficarão acondicionadas em instalações já habitadas por passageiros há um mês (... )". 

Finalizando os registros no boletim de bordo, o médico recuperou seu pequeno histórico de vida profissional para expressar sua indignação e perplexidade mediante a viagem que durara quase dois meses. 

"Não me lembro, no meu exercício prático de sete anos, de ter sido médico dos pobres e de seis sociedades operárias, nunca ter visto tanta sujeira e tantas vidas amontoadas em salas tão estreitas e menos adequadas ao uso pretendido ".

O testemunho do médico Teodoro Ansermini,  constituiu-se em corajosa denúncia do sistema que explorava o emigrante e uma prova do tratamento dispensado pelas autoridades competentes, mais atentas aos interesses das companhias de navegação do que aos daqueles que emigravam. 

Por conta disso, criou-se uma comissão formada por um oficial e um médico do porto de Gênova para analisar as denúncias. As medidas tomadas mostram com clareza de que lado os órgãos oficiais estavam: interpelada verbalmente, a Navigazione Generale Italiana garantiu que tais fatos jamais se repetiriam, enquanto o médico, cujos escritos foram considerados exagerados, recebeu severa censura do Ministério da Marinha, ao qual era subordinado.




Vários outros documentos oferecem testemunhos dramáticos, sobretudo no período da emigração subvencionada para a América do Sul, quando a lei de 1888 ainda não havia regulamentado as condições de viagem e permitia a utilização de navios a vela ou mistos.

Os interesses dos armadores e o conivente silêncio das autoridades marítimas somados às estratégias engendradas para enfrentar a concorrência asseguravam contratos lucrativos de introdução da imigração subvencionada, apoiados no baixo preço da rota sul- americana. 

De outra parte, o emigrante italiano era mercadoria barata, solicitada a mover-se com baixos preços do bilhete de viagem. A estatística sanitária oficial da emigração italiana começou a ser publicada apenas em 1903. Alguns estudos contemporâneos, no entanto, fornecem dados sobre as condições sanitárias das viagens transoceânicas. 

Apesar algumas incoerências, são considerados como as únicas fontes relativamente confiáveis para o período após a aprovação da lei de 1888. Pesquisadores atuais apresentaram alguns números sobre a mortalidade e morbidade nos navios de emigrantes. 

Dos 480 casos examinados por Druetti, 133 apresentaram mortes e destes, 90 diziam respeito a crianças com idade inferior a 5 anos. As altas taxas de mortalidade eram causadas por doenças infecciosas, intestinais ou do aparelho respiratório. Quanto aos adultos, a principal causa de morte era a tuberculose pulmonar.

No século XX, quando a lei de 1901 instituiu as diretrizes básicas da tutela sobre a saúde do emigrante antes do embarque e durante a viagem, estabelecendo responsabilidades e controles, começaram a ser produzidos documentos importantes. Com base nesse documentos desnuda os problemas higiênico-sanitários da travessia do Atlântico e seus desdobramentos em mortes ou doenças. 

As taxas anuais de mortalidade para o período 1903-1915 foram quantificadas de acordo com o destino no Novo Mundo e se a viagem era de ida ou volta. Essas taxas nunca ultrapassaram o índice de uma morte a cada mil embarcados, sendo que os números concernentes à América do Sul sempre foram superiores aos da América do Norte, com exceção dos anos de 1914-1915.

No movimento de retorno, as taxas aproximavam-se – ultrapassando, em alguns anos (1903, 1904 e 1907) – do índice citado acima, e os valores para a América do Norte superaram os do Sul em 1909, 1910 e 1915. A taxa de mortalidade superior na emigração para a América do Sul pode ser explicada pela prevalência de grupos familiares, ou seja, pela maior presença de crianças nos navios. Vítimas potenciais de doenças infecto-contagiosas, não por acaso elas lideravam as estatísticas dos óbitos.




As doenças mais freqüentes nos vapores que se dirigiam às Américas eram malária, sarampo e doenças bronco-pulmonares. Em relação à viagem de retorno, havia certa diferença entre o Norte e o Sul do continente americano. Entre os italianos que voltavam da América do Norte, a principal doença que os acometia era a tuberculose pulmonar, seguida pela alienação mental e o sarampo. Para aqueles que vinham da América do Sul, prevaleciam o tracoma, a tuberculose pulmonar e o sarampo.

As péssimas condições e a lotação dos vapores que transportavam emigrantes, muitas vezes navios de carga adaptados para essa função, ofereciam a combinação ideal para a disseminação de doenças. 

Outro fator importante era o mal estado de saúde daqueles que deixavam a Itália. Mas o que chama atenção é a superioridade das taxas de mortalidade e morbidade da viagem de retorno, revelando também a situação precária desses emigrantes em terras americanas e, até talvez, uma política intencional por parte desses governos para se livrarem dos considerados não aptos. 




quinta-feira, 26 de agosto de 2021

O Lazareto da Ilha Grande

Lazareto de Ilha Grande


Lazareto é o nome genérico dato para um estabelecimento de controle sanitário, onde pessoas suspeitas, ou aquelas acometidas por alguma doença infecto contagiosa, são postas em quarentena, logo que chegavam a um porto.

O Lazareto da Ilha Grande – foi uma instituição da Inspetoria Geral de Saúde dos Portos e este,  por sua vez, um órgão subordinado ao Ministério da Justiça e Negócios Interiores. 

Ele veio para substituir os obsoletos acampamentos sanitários até então em uso no país, localizados em pontos isolados da costa, onde os navios realizavam o desembarque dos seus passageiros. 

Antes dessa época os portos brasileiros eram simplesmente fechados, quando havia suspeita de epidemia a bordo, para evitar a disseminação e os navios que porventura não respeitassem as ordens de se afastarem poderiam ser afundados com tiros de canhão. O fechamento dos portos causava sérios transtornos ao comércio internacional e grandes prejuízos à economia brasileira. 


Navio Carlo R. sendo abordado para inspeção pela barca Orleannais das autoridades sanitárias do Porto do Rio de Janeiro


A construção do Lazareto de Ilha Grande teve início –ainda em 1884, quando na Europa então grassava uma grande epidemia de cólera e cujos primeiros casos já tinham sido detectados no Brasil e Argentina. No lazareto, o tratamento das doenças transmissíveis era feito com o isolamento dos enfermos e estabelecimento da quarentena dos passageiros saudáveis que, por terem tido contato com os doentes, podiam estar contaminados mas ainda assintomáticos e a doença aparecer a qualquer momento.

Foi nessa época de aumento do fluxo de passageiros que as autoridades de saúde dos diversos países do mundo firmaram acordos internacionais para evitar a entrada e a propagação de doenças trasmissíveis graves como o cólera, a peste bubônica e a febre amarela, comuns em navios de imigrantes durante a longa travessia do oceano. A febre amarela era endêmica em muitos países, especialmente aqueles da América Central e do Sul, cujos  portos por vezes serviam de escala para os grandes navios. 

Dr. Luiz Carlos Piazzetta
Erechim RS



 



sexta-feira, 22 de janeiro de 2021

A Odisséia da Emigração Italiana



“Às duas horas da manhã do dia 6 de setembro, no porão 2, nos braços de seus pais, uma menina de 7 anos morreu, e logo foi jogada ao mar. Às 9 horas, uma menina de 11 meses deixou de viver; esta tinha sido internada no hospital e, assim que morreu, foi jogada ao mar, o médico e os passageiros presentes. Esta é uma das passagens mais dramáticas do livro A Odisséia do Steamer Remo, um livro de memórias escrito por um passageiro em fevereiro de 1894, poucos meses após o fim da viagem que custou a vida de 96 emigrantes italianos, de cólera, tifo e difteria. O volume é pouco conhecido pela historiografia e praticamente desconhecido do grande público, com exceção de um parágrafo do livro Odissee do jornalista Gian Antonio Stella; no entanto, seria muito útil republicá-lo e torná-lo conhecido, para fornecer novos instrumentos de reflexão a um debate público que, sobre essas questões, atingiu picos de rara ignorância sobre quais são os fundamentos da identidade italiana, forjada não pouco nas tragédias da emigração. , com sua carga de exploração, falsas promessas, violência e retrocessos aos portos. 

O navio a vapor Remo zarpou de Gênova em 15 de agosto de 1893, dois dias antes de outra tragédia da emigração italiana, o massacre de Aigues Mortes, quando 500 franceses irados massacraram trabalhadores italianos acusados ​​de roubarem seu pão. Muitos dos passageiros do navio vieram da planície inferior de Modena, que foi duramente atingida pela crise agrária do final do século XIX. Só no ano de 1888, 415 pessoas emigraram do Município de Cavezzo (de uma população de 4.876 habitantes). Uma investigação realizada no ano seguinte no município de Mirandola explicava as razões deste enorme êxodo, “até então desconhecido numa terra que sempre deu aos seus habitantes um sustento”. As principais causas desta fuga de braços foram «a miséria e a falta de trabalho para os diaristas e operários. A maior parte dos camponeses do nosso campo, repleto de numerosas famílias - lê-se no relatório -, são dormitórios e carecem de um trabalho diário seguro e lucrativo para si e para a sua família. "Nossos trabalhadores preferem emigrar na incerteza de uma renda segura, convencidos de que não encontrarão miséria maior do que a que têm em casa ”. “No ano passado - o jornal mensal local, escreveu o Indicador Mirandolês em 1889 - famílias inteiras de nossos camareiras colonos com seus parcos utensílios domésticos partiram para Gênova para embarcar lá para as longínquas praias do Brasil e do Prata. Portanto, nós também fomos testemunhas oculares deste deplorável flagelo da emigração, que já há muito tempo aflige muitas outras partes da Itália. Essa praga está crescendo cada vez mais a cada dia e ameaça assumir formas contagiosas. O êxodo desconsolado dessa população rural - concluiu amargamente o escritor - entre os quais vimos velhos decadentes, mulheres grávidas, crianças chorando de frio e de fome que, perdidas, fugiam de sua pátria ingrata e rumaram para o exterior em busca de destinos melhores, sem garantia certa, formando o mais desolador dos espetáculos, que deve também dar a pensar a todos aqueles que se preocupam seriamente com os interesses nacionais ”. 

Hospedaria da Ilha das Flores

Se a miséria era a causa das partidas, os agentes da emigração, que com seus discursos, folhetos e livrinhos tranquilizavam sobre as condições da viagem e exageravam as oportunidades oferecidas pelos países de chegada  tirando  as dúvidas e muitas vezes escondendo a verdades bem claras para aqueles que organizavam esse tráfico de homens; em primeiro lugar, que a viagem muitas vezes se revelava a própria e verdadeira odisseia, depois os frequentes casos de engano, ilícito e abusos de poder contra quem havia decidido mudar de vida deixando o seu torrão natal. No início dos anos noventa do século XIX, existiam dois agentes que operavam na zona entorno a Mirandola. O primeiro foi o Capitão Celso Ceretti, conhecido garibaldiano e anarquista, representante da Companhia Geral de Navegação, que segundo o Indicador Mirandolês estava fazendo "excelentes negócios". O segundo foi o tipógrafo e editor Candido Grilli, agente da Companhia de Navegação La Veloce de Gênova, que ao contrário tinha "pouco sucesso". 

“Do nosso município - lê-se na edição de agosto de 1891 - mais de 300 pessoas já partiram este ano com a Sociedade de Navegação Geral com as viagens e alimentação pagas até o Brasil. Muitos outros estão se preparando para a partir, a qual  acontecerá assim que concluída a colheita no campo". 

Um desses emigrantes foi Cesare Malavasi, natural de Cavezzano, autor do livro impresso pelo agente e editor Grilli. Chegando com a mulher ao porto de Gênova, Malavasi teve que "dar uma boa gorjeta" para os carregadores embarcarem a bagagem, que ultrapassava o peso permitido. A maioria dos emigrantes esperava a partida num grande salão, sentados ou deitados no chão: «Uns comiam, outros dormiam. Vi mulheres que, cansadas dos sofrimentos e da insônia das noites anteriores, dormiam numa espécie de sono letárgico; e crianças pequenas que, sem o seu conhecimento, sugavam o leite do peito. Havia choros, gritos, gemidos e palavrões em mil disfarces, causados ​​por diferentes motivos. Fiquei maravilhado com aquela visão, com aquele espetáculo e, se bem me lembro, nunca havia sentido essa emoção em toda a minha vida ”. 

No dia 15 de agosto, às 3h30 da tarde, os 900 passageiros embarcaram, depois que uma comissão de saúde "examinou, fez a vacina de varíola nas crianças e examinou os outros emigrantes em geral". O navio tinha uma tonelagem de 2.964 toneladas, tinha 100 metros de comprimento e 12 de largura e foi construído em 1891 no estaleiro Ansaldo, em Sestri Ponente, com o nome de Michele Lazzaroni, por encomenda da empresa Mazzino de Gênova. Ele tinha 60 lugares na primeira classe e 900 na terceira classe. Em 1892, o mesmo proprietário o rebatizou como Remo.  

Os que estavam partindo conheciam superficialmente os detalhes da travessia, mas, neste caso, os viajantes foram deixados propositalmente no escuro sobre um detalhe decisivo, isto é, que o primeiro destino era Nápoles, onde grassava uma epidemia de cólera. Os temores de alguns passageiros mais bem informados foram até desmentidos, sem o mínimo pudor, por um agente de emigração.

O navio ancorou às 4,10 da tarde e pouco antes da meia-noite de 16 de agosto embocou no porto de Nápoles, onde entrou no dia seguinte. Outros 700 passageiros e uma grande quantidade de mercadorias foram embarcados, incluindo 400 barris de vinho. Os novos emigrantes eram vistos com desconfiança, pois além de reduzirem espaço e alimentação, aumentavam o risco de doenças. 

Na noite de 17 de agosto, o navio partiu. Depois de cruzar o estreito de Gibraltar, em 21 de agosto, o navio enfrentou as ondas "furiosas e violentas" do oceano. «Quando apareceram no convés, quase todos ficaram mareados; gemidos foram ouvidos, contorções e esforços causados ​​pela forte ânsia de vômito, de ficar horrorizado. O café foi distribuído, mas quase ninguém - escreve Malavasi - conseguiu tirar proveito dele, e o mesmo vale para todas as outras comidas servidas naquele dia”. Após a parada em Nápoles, a comida servida começou a diminuir e a piorar, em meio a protestos dos passageiros. A partir de 24 de agosto, “eclodiram discussões e lutas pela ocupação dos postos”. Uma delas envolvia Rosalia Biscuola, uma concidadã de Malavasi. Subindo ao convés para ocupar o lugar dos dias anteriores, encontrou-o ocupado «por uma mulher do sul; ela implorou que se retirasse, mas a mesma se recusou. La Biscuola colocou as suas roupas, mas a sulista por três vezes refutou-as com insistência. A minha ousada compatriota zangou-se, atirou-se sobre a adversária e deu-lhe uma forte série de socos. Se a sulista não tivesse carregando uma criança nos braços, que servia de escudo, ela teria levado mais. Outros sulistas ao mesmo tempo ajudaram a colega, e a essa altura a ousada cavezzese já teria levado a pior. Mas a sorte quis que, naquele momento, eles também não tivessem a intenção de brigar por aquele motivo, de modo que o incidente passou despercebido ". 

A partir de uma pesquisa no Arquivo Histórico Municipal de Cavezzo, verifica-se que em junho de 1893 o marido da fogosa Rosália, Teodorico Lugli, 42, agricultor, havia pedido passaporte para viajar ao exterior com seu sobrinho Ildegardo Lugli para São Paulo, com "certeza de emprego". Tendo conseguido um emprego lucrativo, Tedorico pediu a Rosália (casada em segundo casamento) e sua filha, Ernesta Lugli, que se juntassem a ele. No arquivo histórico municipal encontram-se muitos outros pedidos de passaporte da época, entre os quais o de Brunechilde Minelli, embarcado no vapor Remo com as filhas Maria e Ida (ou Iva).

A viagem continuou em meio a graves inconvenientes, maus-tratos, perseguições por parte dos oficiais do navio e brigas furiosas. Quatro toscanos que estavam tentando persuadir outros emigrantes a não comparecerem para a receber a ração foram amarrados a grandes correntes da âncora em uma prisão sob a proa.

A comida era ruim. No dia 2 de setembro, pela manhã, foi servido um café "muito parecido com água quente". Às 11 horas, a distribuição de «pequenos macarrões indevidamente chamado, de "in brodo"; e para prato principal, um pouco de carne cortada em pedaços muito pequenos. A outra ração consistia em um pouco de arroz, muito comprido e que não serve para nada, e carne salgada cozida, acompanhada de lentilha”. Outras vezes serviam grão-de-bico, batata, atum e salada, "baccalà in umido"e outras imundícies, que eram não só de mau gosto, como também faziam muito mal à saúde de todos, produzindo diarréia, disenteria, com dores na maioria de passageiros com dores tais de fazer você rastejar".

Com a aproximação da "terra prometida", uma grande agitação se espalhou pelo Remo. Todo mundo estava falando sobre a América, agora apenas alguns dias de distância. Alguns estavam começando a pensar que os sonhos de riqueza - ou pelo menos de progresso tangível na própria condição humilde - estavam para se tornar realidade; outros se limitaram a planejar a viagem de Santos, porto de desembarque, à São Paulo, destino final de muitos emigrantes. Para economizar tempo, alguns chegaram a pensar em pagar do seu próprio bolso por esta última etapa da viagem, ao invés de aproveitar o transporte gratuito oferecido pelas agências de viagens. O clima de grande euforia foi abruptamente interrompido no dia 6 de setembro, com a notícia (que mencionei no início) da morte de duas meninas, atiradas ao mar na presença de seus parentes desesperados. Mas para a carga humana do navio a vapor Remo foi apenas o começo.

“Chove muito, o frio é forte, é um desconforto geral, principalmente para mulheres e crianças. Ao anoitecer, o médico foi chamado para visitar um passageiro de Catanzaro gravemente doente no primeiro porão, andar inferior. Quando o médico veio, após um exame minucioso, disse que era indigestão de água. Estou muito convencido de que aquele seguidor de Esculápio havia entendido bem que era cólera quase fulminante, mas ele tinha um bom motivo, se não queria colocar a apreensão a bordo! Ele ordenou que fossem preparados conhaque, marsala e caldo para o paciente, e antes das 20h foi transportado para o hospital"..

Na manhã do dia 7 de setembro, foi avistado o farol de Cabo Frio, no Brasil. A navegação continuou, no sentido sudoeste, em direção ao Rio de Janeiro e Ilha Grande. Quando o navio estava a apenas 70 milhas de distância, dois sulistas adoeceram "de cólera, de modo que todos os outros foram dispensados ​​do hospital, do qual ninguém estava gravemente enfermo, com exceção do passageiro de Catanzaro, que deixou de viver às 2 da tarde". Ao anoitecer o navio parou na Ilha Grande, aguardando o exame médico. No dia seguinte, uma comissão de saúde chegou com um pequeno navio a vapor, ordenou ao comandante do Remo que voltasse 20 milhas, para lançar o corpo do  passageiro de Catanzaro ao mar antes de retornar ao porto. Aqui o pequeno navio a vapor esperava por outros procedimentos  sob a ameaça dos canhões de um encouraçado brasileiro. Na noite entre 8 e 9 de setembro, um homem e uma mulher foram hospitalizados com sinais claros de cólera. Então, pela manhã, veio a notícia que lançou a todos no mais profundo desespero. O governo brasileiro decidiu rejeitar os emigrantes italianos em bloco. 

Não foi o primeiro navio a sofrer este destino e também não foi o último. Muitos navios italianos tiveram negada a possibilidade de atracar. Também por isso, muitos outros italianos morreram durante as travessias da esperança. Por exemplo, foram centenas de mortes por cólera entre os 1.333 passageiros do Matteo Bruzzo, rejeitado com tiros de canhão pelas autoridades uruguaias e forçado, como o Remo, a acabar com a epidemia vagando pelos mares e jogando os cadáveres no oceano. Os casos de acidentes com esses vapores eram tão frequentes que o termo "navios da morte" passou a ser usado para defini-los. O navio a vapor Carlo Raggio, colocado em quarentena na baía da Ilha Grande junto com o Remo, teve 211 mortes por uma epidemia de cólera e sarampo. Neste mesmo navio, outros passageiros já haviam morrido de fome seis anos antes.

No Remo, na noite entre 9 e 10 de setembro, "um calabres  que se encontrava no convés, teve uma congestão cerebral, caiu da sala que ficava na primeira espera. Ao se levantar três ou quatro vezes, ele caiu outras vezes, batendo com tanta força no chão de ferro que parecia impossível não quebrar seu crânio. Chamado com urgência o chefe do porão, apelou aos conterrâneos do desafortunado, que, embora com relutância, esbanjaram-lhe os cuidados indicados para tal acontecimento”. 

Durante a noite também faleceu o filho de um certo Primo Luppi de San Prospero (Modena). "De manhã, no rosto de cada um podia ler-se dor e tristeza; muitos tinham o rosto molhado de lágrimas: mas era preciso resignar-se ao destino adverso ", comentou Malavasi.

O navio foi abastecido com água e comida, incluindo 13 bois, farinha, galinhas e macarrão. Em 12 de setembro, morreu um piemontês que tinha mulher e dois filhos a bordo, e um sulista, de cerca de 60 anos e um filho, no terceiro porão. Então o filho de um certo Angelo Bosi de Disvetro, uma fração do município de Cavezzo, estava em estado grave. Antes da noite, Clementina Meschiari, também da fração Disvetro, também adoeceu com uma forte febre. "Consultada pelo médico, foi-lhe receitado um determinado medicamento que desta vez restaurou a sua saúde." 

"Antes do anoitecer apareceu um pequeno barco a vapor rebocando uma lancha, trazendo medicamentos e a notícia de que as provisões solicitadas chegariam no dia seguinte". Às 8 da noite, o encouraçado de guerra levantou as âncoras e deixou apenas a tripulação do Remo.

Na manhã de 13 de setembro, uma certa Filomena Garuti, esposa de Angelo Bosi, foi levada ao hospital "por vômitos, diarréia e câimbras.  Na mesma hora, o vapor Andrea Doria, que chegou aqui ontem, passou perto de nós e foi dar sepultamento para os cadáveres que ele tinha a bordo; o conhecido barco a vapor que nos trouxe a completação da água também chegou... Uma vêneta às 16 horas  pediu ao médico para ele consultar o marido hospitalizado; ele a princípio se opôs, depois a alertou sobre a morte da esposa de seu amante. Nessa época, uma certa Mazza Cleonice de Cavezzo adoeceu, com disenteria e vômitos, e foi consultada pelo médico. Ao cair da noite, soube-se que Garuti Filomena tinha piorado e que Mazza tinha sido estado hospitalizado ”.

Malavasi também nos deixou uma amostra interessante do estado de espírito dos passageiros: “Vi homens e mulheres decididos a ler e meditar sobre as coisas sagradas; Vi outros que se ocupavam com leituras profanas e até obscenas; mulheres que rezaram o rosário durante a maior parte do dia, e outras que investiram contra seus filhos e maridos, lançando contra eles as mais torpes vilanias; maridos que amaldiçoavam seus filhos e esposas vomitando as mais atrozes blasfêmias. Finalmente, ouvi a viúva do piemontês [...] articular as orações fúnebres aos seus dois ternos filhos e ao pai falecido. Uma variedade semelhante de coisas e fatos me comoveu profundamente"

Na noite de 13 de setembro, o Remo zarpou para a Itália. Na manhã seguinte “para alguns foi dada a permissão de abrir o baú e tirar peças de roupa, porque as roupas usadas pela maioria não só estavam imundas, mas também infestadas de insetos asquerosos. Não faltaram mortes [...]. Estamos nas hora antes do meio dia  de 15 de setembro e uma charmosa menina de 7 anos morre de cólera; no terceiro porão, outro morreu e uma mulher estava gravemente doente. Em uma tarde Mazza Cleonice deixou de viver: no hospital estavam doentes e mortos. Agora o tifo e a difteria se associaram ao cólera e todos com verdadeiro heroísmo aguardam a vez de morrer, pois acreditavam que é moralmente impossível que pessoas maltratadas, esgotadas das finanças, sofram pela perda, algumas do pai, outras do marido, que da esposa, alguma do irmão, ou do amigo, pode ter força suficiente para sobreviver a tantas calamidades”. Nos dias seguintes a situação não melhorou: 

Muitos são os que adoecem no dia 16 de setembro e, consequentemente, são hospitalizados, e a bordo corre-se o boato de que seis tinha ido servir alimento para os peixes. A uma hora da tarde se soube pelo Comissário que tanto Garuti Filomena como o seu filho tinham pagado a inefável homenagem à natureza. Agata Tozzini também deixou de viver pelo cólera, apesar do fato de seu marido Pietro Naldini, de Calci (Pisa), com excepcional favor, ter descido ao hospital, era talentoso, a esbanjar todas as curas, durante o transcurso da doença. Havia muitas crianças doentes na terceira e quarta estiva na manhã de 17 de setembro, e às 10 horas se adoentava novamente Meschiari Clementina, que tinha a bordo seu marido Pivetti Primo e um filho de apenas cinco meses. O marido com muita dor foi ao médico, e somente à 1 hora da tarde ele conseguiu permissão para encontrá-lo. A Meschiari tinha disenteria, dores intestinais, perda de apetite, aperto no estômago e teve uma crise de febre. [...] O relógio de bordo marcava 17 horas quando se agravou o quadro clínico de Meschiari, somando-se também vômitos e câimbras, pelos quais ela teve que ser hospitalizada. Antes de se retirar, seu marido Pivetti, por ordem do médico, trouxe o bebê Tonino ao hospital para que sua mãe pudesse amamentá-lo, mas logo em seguida ordenou que o retirasse e o levasse para seu beliche". 

Em 23 de setembro também faleceu Clementina Meschiari. Ao marido, "imerso em dores, restou a tarefa de prosseguir, tanto de dia como de noite, com todos os cuidados necessários ao filho pequeno Tonino, que, por falta de leite, estava extremamente enfraquecido"

Nos últimos dias de setembro, quando o navio se preparava para entrar no Mediterrâneo, a epidemia começou a diminuir de intensidade, mas os mortos já se somavam 76. No dia 29 de setembro o navio fez escala em Tenerife, depois partiu para Asinara, onde os passageiros seriam colocados em quarentena. Naqueles dias também morreu a pequena Iva Flandoli, que partiu com a mãe e a irmã para se reencontrar com o pai. O Remo chegou à ilha no nordeste da Sardenha na manhã de 6 de outubro. Seis grandes fossos, com três metros de profundidade, foram cavados em Asinara para recolher os mortos de quatro navios atingidos por epidemias (além do Remo, o Carlo Raggio, o Vincenzo Florio e o Andrea Doria). No dia 7 de outubro, foi iniciada a desinfecção do navio. Os doentes foram transportados para o hospital, enquanto os passageiros saudáveis ​​foram encaminhados para desinfecção. Às 10h30 do dia 14 de outubro, outro navio a vapor também rejeitado pelo Brasil chegou à ilha, o Vincenzo Florio, com 19 mortes e com possibilidades de aumentarem.

Após as operações de desinfecção, o navio partiu para Nápoles, após o sinal verde de uma comissão de saúde. Antes de partir, porém, alguns passageiros do sul enviaram uma carta ao prefeito napolitano denunciando os tratamentos sofridos durante a travessia. Enquanto isso, Malavasi fora nomeado, junto com outros dois passageiros, para uma comissão encarregada de apresentar ao capitão do navio as reclamações coletadas entre os passageiros. 

O navio chegou a Nápoles no dia 18 de outubro e de lá, no dia seguinte, partiu inesperadamente para Nisida. O prefeito, ao receber a carta, ordenou de fato uma investigação imediata, confiando-a à Autoridade Portuária de Nápoles. A comissão responsável interrogou vários passageiros e marinheiros. Numerosas irregularidades e árbitrios emergiram da investigação. Um certo Luigi Pedrazzi de Cavezzo, por exemplo, tinha pedido repetidas vezes ao subcomissário do navio que lhe pudesse abrir a mala para tirar roupa, obtendo sempre uma resposta negativa. Pedrazzi pediu então a sua concidadã Maria Zucchi que se apresentasse ao vice-comissário declarando por sua vez que precisava abrir um baú, contando com o fato, escreve Malavasi, “que as mulheres, especialmente se forem bonitas, muitas vezes são chaves poderosas que todos destravam". O oficial concordou, mas quando Pedrazzi também apareceu para a nomeação, o vice-comissário, "amargurado", desafiou-o "para um duelo, deixando-lhe a escolha das armas". Também descobriu-se que alguns passageiros foram maltratados e que dinheiro e alimentos foram roubados de outros. 

A comissão de inquérito realizou rapidamente os seus trabalhos e na manhã de 22 de Outubro foram levantadas as âncoras da enseada de Nisida para Nápoles, onde desembarcaram os sulistas, e depois para Gênova. Na manhã de 26 de outubro, os últimos passageiros desembarcaram no cais. Se a dramática história do Remo tivesse acabado, a miséria dos passageiros continuaria. “A maioria - concluiu Malavasi desconsolado - parecia sentir alívio e revigoramento ao narrar, sem a menor reticência, a miséria em que logo se encontrariam: sem pão, sem teto, na impossibilidade de ganhar um centavo, sem saber o que fazer para saciar a fome deles, de suas esposas e de numerosos descendentes. Não são palavras, são fatos, e fico horrorizado a cada momento que os meus pensamentos voam para esses momentos de tanta miséria, de tanto desânimo"



sábado, 21 de novembro de 2020

A Saúde dos Emigrantes Italianos e a Longa Travessia do Oceano

Emigrantes aguardando o embarque no porto de Genova


“A higiene e a limpeza estão constantemente em conflito com a especulação. Falta espaço, falta ar." 

Assim resumiu as condições sanitárias nos navios que transportaram a emigração italiana. 

Quando nas últimas décadas do século XIX as partidas para as Américas se intensificaram, a viagem de navio durava ainda mais de um mês e ocorria em condições lamentáveis. Até à aprovação da lei de 31 de Janeiro de 1901, não existia qualquer disciplina sobre os aspectos sanitários da emigração e, ainda em 1900, a situação do transporte naval de emigrantes era muito precário.

Os beliches dos emigrantes eram colocados em dois ou três corredores e recebiam ar principalmente pelas escotilhas. A altura mínima dos corredores variava de um metro e sessenta centímetros para o primeiro, partindo do topo, a um metro e noventa centímetros para o segundo. Nos dormitórios dessa maneira montados, as doenças eram frequentes, principalmente as respiratórias. 

A promiscuidade facilitava os contágios das doenças transmissíveis. Quanto a falta de regras de higiene mais elementares, podemos lembrar o problema da conservação da água potável que se guardava em caixotes de ferro forrados com cimento. Devido ao constante balanço do navio, o cimento tendia a se esfarelar, turvando a água que, a qual ao entrar em contacto com o ferro oxidado, adquiria uma coloração vermelha e mesmo assim precisava ser consumida pelos emigrantes, por não existirem filtros ou destiladores a bordo.

A alimentação, independentemente da impossibilidade de emigrantes, analfabetos ou de qualquer forma não poderem ter conhecimento completo da legislação alimentar, era preparada a partir de uma série de alternâncias constantes entre dias "gordos" e "magros", dias e dias "café" e algum arroz". Além disso, dependendo da prevalência a bordo de nortistas ou sulistas, eram preparadas refeições à base de arroz ou macarrão. Do ponto de vista dietético, a ração alimentar diária as vezes era suficientemente rica em elementos proteicos e, em muitos casos, superior em quantidade e qualidade ao tipo de dieta habitual do emigrante. Mas, na maioria dos navios predominava a escassez alimentar. 


Emigrantes a bordo de pequenos navios


A viagem transoceânica


A partir das estatísticas de saúde do Comissariado Geral de Emigração e dos relatórios anuais elaborados pelos oficiais da marinha italiana, encarregados do serviço de emigração, ambos relativos à morbidade e mortalidade de emigrantes em viagens de ida e volta da América do Norte e do Sul, é possível traçar um quadro da situação sanitária da emigração transoceânica italiana de 1903 a 1925 que, embora tendo em conta os limites da parcialidade e discricionariedade do sistema de detecção, permite estabelecer alguns elementos básicos da dinâmica sanitária do fluxo a que se refere o vasto estudo de caso descrito pelos relatórios e livros de registro. O estado de desorganização dos serviços de saúde para a emigração, tanto terrestre como a bordo, fez com que os quadros estatísticos assumam o caráter de indicadores gerais das dimensões assumidas pelo problema de saúde no contexto da experiência da migração em massa, mas sim, os torna problemáticos a utilização em função do estudo de patologias específicas. De fato, os dados recolhidos pelas estatísticas referem-se às doenças apuradas durante a viagem pelo médico governamental ou pelo comissário itinerante, excluindo assim do inquérito um certo número de emigrantes que por razões diversas, atribuíveis a uma desconfiança generalizada do poder médico ou ao medo de ser rejeitado por doença no país de destino ou hospitalizado depois de repatriado, não exigia cuidados de saúde. Uma parte substancial do fluxo migratório escapou então completamente a qualquer forma de controle sanitário, seja porque embarcou e desembarcou em portos estrangeiros, ou porque viajou em navios sem serviços de saúde, ou porque embarcou em formas semiclandestinas toleradas por muitas empresas de navegação. Parece, pois, evidente que qualquer tentativa de estimar sistematicamente o "problema sanitário" da emigração transoceânica com base nas fontes produzidas a nível oficial pelo serviço de saúde para a emigração apresenta dados amplamente subestimados em relação às reais dimensões assumidas pelo problema da saúde e doença na viagem transoceânica. 


O embarque para uma longa viagem


Apesar das limitações e da parcialidade da amostragem, as estatísticas de saúde das viagens transoceânicas continuam sendo uma das poucas ferramentas disponíveis para iniciar uma série de reflexões que vinculam o fenômeno da emigração transoceânica com as condições sócio sanitárias das classes populares nos séculos XIX e XX. A análise dos números fornecidos pelas estatísticas para o período 1903 a 1925 mostra claramente a persistência, durante todo o período considerado, de algumas doenças tanto nas viagens de ida como nas viagens de volta das Américas. Mesmo que uma avaliação da definição do fluxo transoceânico em relação à propagação na Itália de patologias de massa (pelagra, malária, tuberculose) não seja incluída na pesquisa, devido à complexidade dos elementos que contribuem para determinar a escolha migratória em áreas do país profundamente diversificadas quanto à estrutura econômicas e sociais, no entanto, não se pode deixar de notar que nas estatísticas de morbidade nas viagens transoceânicas algumas dessas patologias estão maciçamente presentes. 


Emigrantes amontoados no tombadilho do navio


Típico é o caso da malária, que apresenta as maiores taxas nas viagens de ida tanto para a América do Norte quanto para a América do Sul, superada apenas pelo sarampo. Nas viagens para o Sul, o número de pacientes com tracoma e escabiose também é significativo, enquanto na volta o tracoma e a tuberculose prevalecem claramente sobre outras doenças e, mesmo que com taxas mais baixas, parasitoses intestinais completamente ausentes em estatísticas futuras. Nas repatriações do Norte, os números mais elevados são atribuídos à tuberculose pulmonar, doenças mentais e tracoma. Esta última patologia, embora não apresente números particularmente elevados, é mais comum do que nas viagens de ida. As taxas de mortalidade e morbidade nas viagens transoceânicas, embora não alcancem picos muito elevados, são ainda mais elevadas nas viagens de e para a América do Sul, para onde se dirigiram as correntes migratórias com forte prevalência de grupos familiares. Os dados de morbidade constante e alta nas viagens de retorno parecem particularmente significativos para os que retornavam da América do Norte. O fluxo migratório para os Estados Unidos foi, de fato, composto principalmente por pessoas em boas condições físicas e na faixa etária de maior eficiência física, tanto por um processo de autosseleção da força de trabalho que optou por emigrar, quanto pelos rigorosos exames de saúde realizados pelos Estados Unidos para a emigração européia.




Dr. Luiz Carlos B. Piazzetta
Erechim RS





sábado, 12 de setembro de 2020

As Condições Sanitárias e as Epidemias a Bordo dos Navios de Emigrantes

Emigrantes no Porto 
Eram denominados pelas companhias de navegação da época, de tonelada humana aqueles milhares de pobres emigrantes que deixavam a Itália depois da metade do século XIX. As condições de vida que esses pobres emigrantes encontravam à bordo eram ainda muito mais precárias do que eles haviam pensado. Agachados no convés, perto da escada, com o prato entre as pernas e um pedaço de pão entre os pés, comiam como mendigos à porta dos conventos. Assim descreveu  em 1908 o que pode ver um inspetor de saúde nos navios de emigrantes. Ele continua dizendo que aquilo era uma grande humilhação e um grave perigo sob o ponto de vista sanitário pois, todos nós podemos imaginar como devia ficar um convés de navio à vapor, no meio do oceano, jogado pelos fortes ventos, enfrentando grandes ondas, onde todo o lixo e dejectos humanos se misturam se espalhando perigosamente por todos os cantos. 

Navio super lotado 

A grande emigração italiana, no período compreendido entre os anos de 1876 a 1915, envolveu diretamente mais de 14 milhões de homens, mulheres e crianças, expulsos de suas casas pela fome, desemprego e falta de perspectiva no futuro, muito  especialmente, depois da crise agrária surgida após 1870. Esse verdadeiro êxodo é somente comparável aquele da fuga dos hebreus do Egito, contados pela bíblia, despovoou inteiras vilas e pequenas cidades do norte e do sul da Itália. No início as mais atingidas eram apenas as comunidades de montanha que precisaram emigrar, pois o tipo de agricultura que praticavam nesses locais era muito atrasada, dando somente para a subsistência, não suportava mais o crescente aumento populacional, agravados por seguidas frustrações de safras por fenômenos naturais, como avalanches e inundações. 

Emigrantes no porto de Gênova 

Primeiramente, nos primeiros 10 anos desse período,  observamos a quase exclusividade da emigração masculina, essa por vários séculos,  já acostumada a migrações sazonais para outros países da Europa, como a França e a Alemanha, mais ricos e desenvolvidos, mas, sempre após algum tempo de permanência, retornavam para as suas casas. Com o crescente agravamento da situação econômica da Itália, os homens passaram emigrar de forma definitiva, mas, desta vez  para países longínquos situados do outro lado do oceano e, logo após conseguirem uma colocação de trabalho, chamavam as esposas, filhos e o restante da família para os encontrar na nova pátria. 

Depois de 1901, mais de 500.000 italianos deixavam a pátria a cada ano, a maioria deles tendo como destino os Estados Unidos e em sua maioria esse torrente humana era constituída de moradores das regiões ao sul da Itália. Os muitos registros da época nos contam da triste partida de navios levando cada um centenas de pobres camponeses e artesãos. 

Epidemia de cólera a bordo

O abastecimento de água nos precários cargueiros apressadamente transformados navios para passageiros era geralmente mantido em barris que eram enchidos na partida.  Caso essa provisão de água fosse contaminada  durante a navegação ou, mesmo, se o alimento fosse contaminado durante o preparo, o risco de propagação da uma grave epidemia entre passageiros e tripulantes seria rápido. As condições higiênicas à bordo desses barcos eram muito precárias especialmente pelo fato deles não terem sido construídos para o transporte de seres humanos mas, sim de mercadorias. Animais vivos também eram embarcados, eles serviriam de alimento para os passageiros e tripulação, eles conviviam nos porões, confinados em jaulas construídas para esse fim. Durante a travessia eles seriam sacrificados à bordo, usando a pouca água disponível para a limpeza, a inexistência de meios adequados para a conservação da carne e a precária higiene  do pessoal de serviço, sendo assim muito grande a possibilidade de contaminação e o aparecimento de uma epidemia. Geralmente, em um ambiente tão restrito como os estreitos alojamentos, sem instalações sanitárias adequadas, com pouca água para a limpeza e sem suficiente ar circulante, onde as pessoas, principalmente, nos porões da terceira classe dos navios, viviam em estreita promiscuidade, as possibilidades de contágio acabavam se somando. 

Os emigrantes no Porto - quadro de Arnaldo Ferragutti 

Em diversas ocasiões surgiram epidemias devastantes que ceifavam a vida dos mais debilitados, as crianças e os mais velhos. Em 1884, no vapor Matteo Bruzzo, que se dirigia para Montevideo com 1333 passageiros à bordo surgiu uma epidemia de cólera que matou 22 passageiros, não tendo permissão para embarcar naquele porto, tendo que retornar para a Italia. O cólera já tinha se manifestado na cidade de Genova, o porto de origem, mas, foi mesmo assim dada a ordem de zarpar. Os operadores de transporte já tinham o conhecimento que a Argentina e o Uruguai já haviam declarado o fechamento dos seus portos para navios provenientes daquele destino. Pensaram que pudessem ficar à bordo em quarentena, o que acabou não acontecendo. Por este fato podemos avaliar a maneira superficial que as companhias de navegação trataram a questão saúde dos emigrantes. 

Passageiros embarcados em navios superlotados 

Nessas longas viagens que levavam os emigrantes não havia somente o perigo de epidemias de cólera, mas também, de febre tifóide, sarampo, difteria e infecções por tuberculose. O navio Carlo Raggio, no ano de 1888, quando em uma das suas viagens para a América do Sul teve 18 de seus passageiros mortos pela fome. Alguns anos depois, em 1894, o mesmo navio contabilizou 206 mortes de passageiros devido principalmente à fome, epidemias de cólera e sarampo. A epidemia desta última doença também foi a causa da morte de 34 passageiros do navio Pará no ano de 1889. 

Emigrantes no convés do navio quadro - quadro Oceano, de Arnaldo Ferragutti 

As condições da vida nos porões e conveses desses navios de emigrantes, onde eles se aglomeravam na mais precária falta de higiene, foram de tal maneira duras para ficarem marcados indelevelmente, muitos anos após na memória daqueles pobres emigrantes e de seus descendentes. No vapor Cachar, com 2000 emigrantes para o Brasil, durante a travessia aconteceram 34 mortes por fome e asfixia. As condições de ventilação nas repartições coletivas da terceira classe eram dramáticas e causavam muitas mortes entre os passageiros. No navio Frisia, com destino ao Brasil no ano de 1889 teve 27 mortos durante a travessia e mais de 300 que adoeceram. Em 1894, no navio Andrea Doria com 1317 passageiros ocorreram 159 mortes e no vapor Vicenzo Florio, com 1321 passageiros, mais 7 mortes. As precárias condições de viagem nesses navios eram conhecidas das autoridades italianas, principalmente pelas cartas com os relatos dos emigrantes. Mesmo assim as companhias de navegação marítima não tiveram problemas para completar a carga, eles enchiam os barcos com mais pessoas que a lotação oficial. 

Emigrantes amontoados a bordo 

Nessa época da grande emigração italiana não existiam ainda os antibióticos e as vacinações para difteria muito deficiente. Para se ter uma ideia do que acontecia com esses pobres infelizes, segue alguns relatos de passageiros dessa viagem. Assim em 1893, a bordo do vapor Remo tendo como destino o Porto do Rio de Janeiro, Brasil, com 1500 emigrantes embarcados, dos quais um grande número deles provenientes de Modena e outras províncias emilianas vizinhas, aconteceram 96 mortes por difteria e cólera. Nos relatos desses emigrantes nos contam que:  "a maioria dos emigrantes ficava sentada ou deitada no chão do navio, enquanto uns dormiam outros comiam". Esse relato continua:  "que o navio zarpou de Gênova em direção a Nápoles, onde por sua vez foram embarcados outros 700 passageiros, atingindo o total de 1500 emigrantes a bordo. Essa super lotação se tornou insuportável e deu origem, ainda no início da viagem, a protestos contra a companhia de navegação e brigas entre aqueles vindos do norte com os que partiram do sul da Itália. Em um cartaz afixado por eles em respirador de popa e encontrado mais tarde estava escrito protestos contra a companhia de navegação". O mesmo relato nos diz que "a comida servida a bordo era muito pobre, o café que serviam, era pura água quente. Na refeição das 11 horas era distribuída uma pequena porção de macarrão em um caldo aguado. A carne servida era pouquíssima e já cortada. Uma outra ração que também era servida em outras ocasiões consistia de um pouco de arroz, com carne salgada cozida e um pouco de lentilhas. Essa pobre alimentação causava dores abdominais e copiosas diarréias. Tudo isso era somado ao desconforto causado pelas condições do mar tropical com fortes e contínuas chuvas. 

Oceano - quadro de Arnaldo Ferragutti 

Os passageiros expostos às intempéries no convés do navio super lotado, tendo que sobreviver às disputas com outros passageiros e autoridades de bordo". Quando em 7 de Setembro de 1893 o vapor Remo estava para ancorar no Porto do Rio de Janeiro, pelo fato de ter havido uma epidemia, com vários mortos à bordo, as autoridades locais do Brasil estavam avaliando a possibilidade de proibir a atracação e ordenarem o retorno para o porto de origem, na Itália. Muitos daqueles imigrantes tinham vendido o pouco que possuíam para comprar os bilhetes da viagem, outros tinham deixado tudo para se reunirem com os cônjuges de filhos já no Brasil. Podemos imaginar a aflição que tomou posse desses passageiros, que após enfrentarem uma viagem tão desesperadora, com tantos problemas, foi anunciado que não poderiam entrar no Brasil. 

Emigrantes amontados no convés do navio durante a travessia 

Na manhã do dia 15 de Setembro, o navio Remo zarpou com destino à Itália com toda a sua carga de sofrimento humano. No dia 4 de Outubro após 50 dias de navegação, sem nunca terem desembarcado, m uma viagem tão dura como a de ida para o Brasil, aqueles pobres emigrantes foram mandados, pelas autoridades italianas, para a Ilha de Asinara, na Sardenha, onde desembarcaram. Ficaram em um período de quarentena e após 10 dias o navio retomou viagem primeiro para Nápoles, onde os passageiros meridionais foram desembarcados e depois rumou para Gênova, onde atracaram em 26 de Outubro. Viagem total de ida e volta do Brasil durou 70 dias e custou a vida de 96 passageiros e algumas centenas de doentes. 

Emigrantes a bordo durante uma travessia 

Proporcionalmente esta viagem não foi a pior delas em número de mortos. A viagem do vapor Carlo Raggio, que inicialmente foi construído para o transporte de carvão, foi apressadamente adaptado para o transporte oceânico de passageiros. Partindo do porto de Gênova e após uma escala em Nápoles, com um total de 1000 passageiros e 16 tripulantes, foi identificada uma epidemia de cólera a bordo. Durante o trajeto teve 211 mortes a bordo, uma para cada 5 passageiros. Nesses navios o cólera era diagnosticado apenas com critérios clínicos.

No outono de 1892, o navio Giulio Cesare, recém construído, estava para deixar o porto de Gênova, para a sua primeira viagem ao Brasil com 900 emigrantes a bordo, quando foi impedido de zarpar devido o aparecimento de uma grave intoxicação que acometeu cerca de 40 dos passageiros que já estavam embarcados, logo após terem consumido a primeira refeição. Na investigação médica que se seguiu pela autoridades portuárias concluiu que se tratava de uma intoxicação alimentar  causada pela recente soldagem e estanhamento das tigelas usadas naquela refeição. 

No final do século XIX o problema da má higienização dos alimentos já se fazia sentir, com o aparecimento frequente de intoxicações alimentares de passageiros e tripulantes. Um regulamento de 1890 já regulava a necessidade de maiores controles com a higienização de alimentos, bebidas e utensílios de cozinha usados nos navios. Infelizmente nesses navios que transportavam emigrantes essas medidas foram transcuradas, como quase tudo que se referia a melhoria da qualidade de vida a bordo. 

Oceano - Quadro de Arnaldo Ferragutti

Alguns anos mais tarde, a mesma empresa de navegação oceânica, se envolveu em outros incidentes semelhantes. Um dos casos foi o do vapor Agordar, com destino ao Brasil, quando, ainda no porto, teve 10 de seus passageiros acometidos por intoxicação alimentar e mais 130 que desistiram da viagem. Ficava assim evidente a incapacidade e a falta de vontade das companhias marítimas  em resolverem este grave problema de melhoria da qualidade dos serviços de bordo. Isso tudo para conservarem os seus lucros e manterem o preço dos bilhetes da passagem competitivos, uma vez que os custos dessas melhorias não conseguiriam repassar para os passageiros. 

As probabilidades de desenvolverem doenças durante a viagem, como a tuberculose, era muito alta. Dormiam empilhados um encima do outro. Muitos relatos de passageiros, principalmente, aqueles de terceira classe, amontoados nos porões dos navios,  testemunham: "Nós, pobres  desgraçados descemos ao porão do navio através de um alçapão, Havia uma grande escuridão e logas filas de beliches de madeira onde tos dormíamos juntos: alemães, italianos, poloneses, suecos, franceses. Lá embaixo não tínhamos água nem luz e já no inicio da viagem muitos ficaram mareados e vomitavam. Ficamos presos como ratos em um buraco, agarrados a suportes de cama ou estruturas de ferro para evitar sermos arrastados pelo balanço do navio, principalmente quando ele enfrentava ventos fortes e grandes ondas". Naqueles navios homens, mulheres e meninas ficavam todos na mesma cama, separados apenas por uma ripa, para evitar rolar uns sobre os outros. 

Emigrantes no Porto a espera do embarque

Durante a longa travessia, em caso de morte de um passageiro, a prática era jogar o corpo no mar o mais rápido possível, de preferência à noite ou nas primeiras luzes da madrugada, para evitar a presença de curiosos, e em seguida providenciar a desinfecção das instalações para prevenir uma possível epidemia. A urgência de se livrar do corpo, passageiro ou tripulante, era muito maior nos casos ocorridos durante a vigência de uma epidemia de doença contagiosa. Nos diários de bordo de navios daquela época e disponíveis para consultas pode-se ter uma ideia do ocorria nesses momentos. Na pressa de se desfazer do corpo, muitos daqueles jogados ao mar podiam ainda não estarem realmente mortos. 


Porto de Santos

Nas viagens para o Brasil e Argentina, também surgiram epidemias de febre amarela, encontradas em navios dos portos brasileiros e argentinos, muito difícil de diferenciar daqueles  sinais e sintomas que apresentavam os passageiros desacostumados ao balanço do navio e os longos períodos no mar. O sarampo também foi uma doença que ocasionou muitas epidemias. Em 1892 um navio norte americano retornando à Gênova, depois de atracar  nos portos de Buenos Aires, Montevideo e Rio de Janeiro, teve uma grave epidemia a bordo. Todas as crianças que viajaram na terceira classe foram infectadas, das quais 5 morreram e 32 passageiros foram desembarcados e hospitalizados em Gênova. 

Neste artigo podemos aquilatar que as condições sanitárias a bordo eram bastante precárias e não raras vezes aquela esperança de conquistar o desejado bem estar, que os tinha sustentado até ali, poderia se esvanecer diante da realidade que encontravam durante a travessia. Mas, a forte decisão de emigrar era muito maior do que o possível sofrimento que os esperava.

A letra de uma canção entoada a bordo pelo emigrantes italianos com destino ao Brasil dizia: 

"Vai ser o que for,

Pior do que está, não será

Vamos tentar nossa sorte.

E já que teremos que morrer, mais cedo ou mais tarde,

Podemos muito bem deixar nossa pele na América como na Europa...

Viva a América! Morte aos Senhores! 

Vamos para o Brasil!

Agora caberá aos proprietários trabalharem a terra". 


Esse era o espírito dos emigrantes italianos que embarcavam nos navios para cruzar o grande e desconhecido oceano. Todo esse indiscritível sofrimento físico e psicológico não reduziram a onda de migração para o novo mundo. 

No segundo decênio do século XX, ao acercasse da I Grande Guerra Mundial ocorreu uma desaceleração do fenômeno migratório. No período entre as duas guerras mundiais a emigração de italianos em busca de trabalho continuou, mas,  com um número bem mais reduzido de emigrantes, principalmente, devido às medidas restritivas adotadas pelos países anfitriões e a política anti-imigração imposta pelo fascismo. 


Dr. Luiz Carlos Piazzetta 

Erechim RS