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domingo, 7 de setembro de 2025

Entre a Planície do Pó e o Novo Mundo


 

Entre a Planície do Pó e o Novo Mundo


Vittorio Belinazzo nasceu em 1875, em Fratta Polesine, um pequeno município da província de Rovigo. A infância se desenrolara na monotonia das terras planas do Polesine, onde os campos, cortados pelos canais e cercados pelas cheias do Pó, sustentavam com dificuldade as famílias camponesas. A vida era feita de um trabalho constante e de recompensas escassas. O pai, Giuseppe, ganhava a vida como diarista nos vastos arrozais da região, passando os dias dobrado sobre a enxada em terras que nunca seriam suas. A mãe, Rosa, governava a casa e mantinha unidos os sete filhos, enquanto o tempo parecia arrastar-se em um ciclo de pobreza resignada.

Quando a Itália se unificara, muitos em Fratta esperaram por um futuro mais justo. Mas o que chegara às portas da aldeia não fora prosperidade, e sim impostos mais pesados e as crises do trigo que minavam qualquer esperança. Na juventude, Vittorio viu vizinhos e parentes partirem em grupos rumo à América. A ideia o perseguia: deixar a planície, os rios e os arrozais, atravessar o mar e tentar a sorte em terras onde a fome não fosse companheira diária.

No início dos anos 1890, tomou a decisão de partir junto com a família de um seu tio materno. Despediu-se dos pais e dos irmãos menores com a promessa de jamais esquecê-los e embarcou no porto de Genova para o Brasil. A travessia foi longa, marcada pelo aperto dos porões e pelo cheiro sufocante de corpos amontoados. Mas, ao desembarcar em Santos e seguir para São Paulo, sentiu que uma nova vida começava.

Instalou-se primeiro como operário em pequenas oficinas. O trabalho era duro, mas o ritmo frenético da cidade crescia junto com suas oportunidades. Com o tempo, aprendeu o ofício de relojoeiro, profissão que exigia paciência, precisão e um olhar atento aos detalhes, virtudes que lhe serviriam pela vida inteira.

Foi nessa época que conheceu Elisa, filha de imigrantes de Brescia. Casaram-se em 1898. A casa modesta que ergueram em São Paulo foi o primeiro refúgio estável que Vittorio conheceu. Pouco depois, nasceram os filhos: Maria, em 1899, e Alfredo, em 1901. O orgulho de ser pai dava-lhe forças para suportar a exaustão das longas horas de trabalho.

A lembrança da família em Fratta, contudo, jamais o abandonou. O irmão mais novo, Giulio, permanecera na Itália e buscava aprender um ofício. Para Vittorio, ele simbolizava uma esperança: que as gerações seguintes pudessem escapar do destino de servidão ao campo. A irmã Teresa, casada com um funcionário público de Rovigo, representava a estabilidade que ele mesmo buscava no Brasil. E até os sobrinhos, crianças que jamais vira, ocupavam um lugar no seu coração.

Apesar do esforço diário, a prosperidade não vinha. Os ganhos eram sempre consumidos pelas necessidades da família. O Brasil oferecia uma vida mais segura do que o Polesine, mas estava longe das promessas de abundância que haviam circulado nas aldeias italianas. Vittorio, realista, aceitava essa condição. Entendia que sua verdadeira conquista não estava em enriquecer, mas em oferecer aos filhos uma vida que não começasse já marcada pela fome.

Os anos se sucederam, e sua identidade passou a ser dividida entre dois mundos. No Brasil, era marido, pai e artesão. Na Itália, permanecia filho e irmão, ligado por laços invisíveis que nem a distância do oceano conseguia romper. Era a vida de um emigrante: suspensa entre a memória de uma terra perdida e a construção de outra, que nunca deixava de ser estrangeira.

O tempo avançou rápido sobre a vida de Vittorio Belinazzo. A oficina de relojoeiro, modesta mas respeitada, tornara-se seu refúgio durante décadas. Entre engrenagens, ponteiros e cordas de aço, ele via o tempo passar não apenas nos relógios que consertava, mas também no rosto que se transformava diante do espelho.

Os filhos cresceram. Maria, a primogênita, herdara da mãe a firmeza e do pai a delicadeza dos gestos. Tornou-se professora, ocupação que enchia Vittorio de orgulho, pois simbolizava a ruptura com o destino de servidão que ele conhecera na infância. Alfredo, inquieto e enérgico, não quis seguir o ofício paterno; preferiu o comércio, atraído pelo movimento das ruas do centro de São Paulo.

Aos poucos, a cidade mudava. Bondes elétricos substituíam os puxados por mulas, fábricas se multiplicavam, e a enxurrada de imigrantes continuava a transformar o cenário urbano. Vittorio, já homem maduro, sentia-se parte dessa transformação, mas guardava dentro de si uma nostalgia persistente das planícies do Polesine.

Durante anos alimentou a ideia de voltar a Fratta Polesine, ainda que apenas em visita. Imaginava a mãe diante da velha casa de pedra, o irmão Giulio já adulto, talvez dono de uma oficina própria, e os sobrinhos, crescidos sem jamais conhecê-lo. Mas a vida não lhe deu essa chance. A morte da mãe chegou-lhe pela notícia tardia de um vizinho que regressara à Itália. Depois, a guerra de 1915 a 1918 devastou a Europa, tornando impossível qualquer retorno. O sonho de rever a aldeia desfez-se em silêncio.

A velhice chegou discreta. Elisa, companheira de todas as lutas, adoeceu primeiro. Vittorio cuidou dela até o último instante, com a mesma paciência com que cuidava de um relógio frágil. Sua partida abriu um vazio irreparável. Viúvo, continuou vivendo na mesma casa, cercado de lembranças e da presença esporádica dos filhos e netos.

Com os anos, o ofício deixou de ser necessidade e passou a ser companhia. Continuava sentado à bancada, ajustando engrenagens com mãos já trêmulas, como se os relógios fossem testemunhas silenciosas de sua própria resistência. A memória, porém, permanecia viva. Em certos fins de tarde, fechava os olhos e via-se de novo menino em Fratta, correndo pelos campos encharcados, ouvindo a voz da mãe chamando para casa.

Assim viveu Vittorio Belinazzo, homem comum e anônimo, mas cuja coragem em atravessar o mar e recomeçar do nada ecoaria nas gerações seguintes. O sacrifício silencioso de sua existência fazia parte de uma história maior: a de milhares de italianos que, como ele, trocaram as margens do Po pelas ruas de São Paulo, levando consigo saudades, esperanças e a obstinada fé no futuro.

Morreu em 1949, com setenta e quatro anos, cercado pelos filhos e netos. Não deixou riquezas, mas legou à família algo mais duradouro: a coragem de ter cruzado o oceano e a dignidade de uma vida erguida sobre trabalho, fidelidade e amor.

Na pequena sepultura de São Paulo, longe das margens do Pó, repousou Vittorio Belinazzo. Mas, na memória dos descendentes, sua figura jamais ficou confinada ao cemitério. Para eles, ele era o elo entre dois mundos, o homem que carregara na alma a planície de Rovigo e a plantara, invisível, no solo do Brasil.

Nota do Autor

Esta história é baseada em fatos verídicos, embora os nomes tenham sido alterados a pedido de um de seus descendentes, aquele que generosamente forneceu os dados que tornaram possível reconstruir a vida de Vittorio. O objetivo desta narrativa não é apenas preservar a memória de sua trajetória, mas também transformá-la em algo mais amplo: uma homenagem a todos aqueles que, como Vittorio, enfrentaram as adversidades com coragem, honra e perseverança. Ao compartilhar esta história, espero que ela transcenda os limites de uma família, tocando a todos que reconhecem a força e a dignidade de quem se aventura a construir uma vida nova, mesmo diante das dificuldades. 

Dr. Piazzetta