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sexta-feira, 1 de agosto de 2025

A Emigraçao Italiana, as Toneladas Humanas, o Cólera e o Torna Viagem

 


A Emigração Italiana, as Toneladas Humanas, as 

Epidemias de Cólera e o Torna Viagem 


O intenso verão de 1893 trouxe notícias de casos isolados de cólera que começavam a surgir em algumas cidades europeias, incluindo Gênova e Nápoles. Embora os números fossem baixos, o histórico da doença e suas consequências devastadoras mantinham as autoridades em alerta. Para a maioria da população, contudo, a ameaça parecia distante, pouco mais que rumores sem impacto imediato em suas vidas. Entre os emigrantes que lotavam os portos, o foco estava no desejo de partir e no recomeço que aguardavam além do oceano.

Gênova, um dos maiores portos da Itália, era o destino final de famílias inteiras provenientes das áreas rurais do centro norte do país, buscando escapar da pobreza e do desemprego que assolavam suas terras. Em meio ao calor intenso, milhares de pessoas se amontoavam com seus pertences em um cenário de caos e expectativa. As condições precárias e a superlotação eram uma constante, mas, para muitos, eram apenas etapas necessárias de uma jornada para um futuro promissor.

No dia 15 de agosto de 1893, o vapor Remo estava pronto para zarpar rumo ao Rio de Janeiro, com uma escala prevista no porto de Nápoles para o embarque de emigrantes do sul do país. Mais de mil passageiros subiram a bordo em Gênova, acompanhados por cerca de sessenta tripulantes. Entre eles estava a família de Piero Antonello, composta por nove membros. Vindos da pequena localidade de San Pietro Novello, em Monastier di Treviso, eles haviam abandonado a vida de agricultores arruinados para tentar a sorte em terras brasileiras. Carregavam não apenas seus poucos pertences, mas também o peso das despedidas e a esperança de um recomeço.

O convés do Remo refletia a diversidade e a agitação dos portos italianos: vozes em diferentes dialetos ecoavam enquanto famílias se acomodavam, crianças exploravam curiosas os espaços do navio e adultos trocavam relatos de suas expectativas. Olhares saudosos se voltavam para a costa italiana enquanto o navio começava a afastar-se lentamente. Para muitos, aquele era o último vislumbre da terra natal.

Apesar das condições apertadas e do calor sufocante, o clima a bordo era de otimismo cauteloso. Poucos se preocupavam com o risco de doenças; a presença de cólera em cidades como Gênova e Nápoles não era um tema amplamente discutido entre os passageiros. A promessa de um futuro melhor superava qualquer receio que pudesse surgir naquele momento.

Conforme o Remo navegava em direção ao horizonte, cada passageiro carregava sua história, suas perdas e suas esperanças. A viagem transatlântica era um salto no desconhecido, mas também a única chance de muitos para escapar da pobreza e reconstruir suas vidas. No silêncio das primeiras noites em alto-mar, a sombra das incertezas dividia espaço com a fé em dias melhores que os aguardavam do outro lado do oceano.

Já no dia seguinte que o navio zarpou apareceu um caso de colera a bordo,  o qual foi mal diagnosticado pelo capitão ou ele, seguindo as ordens dos armadores, preferiu não tomar conhecimento, considerando que fosse somente uma gastroenterite e resolveu irresponsavelmente prosseguir com a viagem. 

O navio seguiu normalmente para o porto de Nápoles, onde outro numeroso grupo de aproximadamente quinhentos passageiros aguardava ansiosamente para embarcar. Eram emigrantes provenientes das regiões rurais mais meridionais da Itália, carregando consigo o peso das dificuldades e a esperança de um futuro melhor. Entre eles destacava-se a família de Vittorio Esposito, composta por seis membros, cada qual trazendo no olhar a mistura de incerteza e determinação, características de quem deixa para trás suas raízes em busca de uma nova vida.

Terminados os procedimentos de embarque o navio zarpou em direção do porto do Rio de Janeiro, levando quase 1600 pessoas ao todo entre tripulantes e passageiros. Na ocasião segundo relatos de um desses passageiros, a dieta servida consistia em arroz de má qualidade e carne salgada com lentilhas, o que frequentemente causava diarreia e disenteria. 

No dia 17 de agosto mais casos de diarréia e vômitos surgiram seguidos das primeiras mortes. O diagnóstico de cólera a bordo foi então declarado. Mesmo assim o comandante não abortou a viagem retornando para Nápoles, o que teria salvo centenas de pessoas. Logo após a partida de Gênova, os primeiros casos começaram a se manifestar entre os passageiros: febre, diarreia intensa, vômitos, cólicas abdominais e espasmos musculares violentos. A pele dos enfermos tornava-se azulada e enrugada, os olhos encovados, e a morte podia ocorrer em poucas horas devido a uma desidratação rápida e intensa. O pânico se espalhou tão  rápido entre os passageiros, quanto o próprio cólera, que viam seus companheiros sucumbirem à doença sem qualquer assistência médica adequada.

Para a família Esposito, a viagem começara com lágrimas de despedida e promessas de um futuro melhor. Em Nápoles, eles se separaram dos amigos e parentes com abraços longos e olhares carregados de emoção, mas também de esperança. A bordo, Maria Esposito tentava acalmar seus filhos, ocupando-os com histórias sobre a vida que teriam no Brasil. Porém, apenas alguns dias após a partida, os sinais da tragédia começaram a emergir.

Vittorio Esposito, o patriarca da família, foi um dos primeiros a adoecer. Maria notou o cansaço incomum do marido e, em seguida, a febre e as cólicas que o deixaram debilitado. Buscando ajuda, ela procurou o médico do navio, um jovem inexperiente que logo se viu sobrecarregado com dezenas de casos semelhantes. Seus suprimentos médicos eram limitados e sua capacidade de resposta, insuficiente diante da magnitude do problema.

A doença também ceifou a vida de dois membros da família de Piero Antonello, a mãe viúva que os acompanhava e um dos seus filhos menores. A tragédia causada pela epidemia a bordo foi particularmente cruel para Piero Antonello e sua família. Em meio ao caos e à falta de recursos, a doença não fez distinção entre jovens ou idosos, fortes ou frágeis. Primeiro, foi sua mãe, uma mulher já idosa, cuja saúde delicada não resistiu aos sintomas devastadores do cólera. Em questão de dias, as febres intensas, a desidratação severa e a fraqueza extrema tiraram-lhe a vida, deixando Piero com o coração pesado pela perda de quem era a figura central de suas memórias e tradições familiares.

A situação tornou-se ainda mais insuportável quando um de seus filhos, um menino de apenas sete anos, também começou a apresentar os sintomas. O olhar inocente e assustado da criança, misturado ao desespero do pai que tentava protegê-lo de um inimigo invisível, tornou-se uma cena gravada na mente dos que assistiam à tragédia. Piero fez o que pôde com os escassos recursos disponíveis. Tentou hidratá-lo com a pouca água que conseguia, segurou-o nos braços por noites seguidas e implorou ao médico do navio por alguma intervenção. No entanto, o pequeno corpo, já enfraquecido pela alimentação precária e pelas condições insalubres da viagem, não suportou.

O momento do adeus foi avassalador. As despedidas a bordo não tinham direito a cerimônias ou conforto. Os corpos eram rapidamente envoltos em lonas, amarrados com uma pedra aos pés para afundarem rápido e lançados ao mar, um gesto necessário para evitar a propagação ainda maior da doença, mas que dilacerava os corações de quem ficava. Piero viu sua mãe e seu filho serem entregues às profundezas do oceano em questão de dias, sem uma sepultura onde pudesse prantear, sem um lugar onde pudesse se conectar com as lembranças daqueles que amava.

A dor da família de Piero foi compartilhada silenciosamente por outras a bordo. Cada perda era sentida não apenas como um luto individual, mas como um lembrete cruel da fragilidade da vida em meio às adversidades. As lágrimas de Piero se misturaram às de outras famílias que, como a sua, haviam embarcado no navio carregando sonhos e esperança, mas agora se agarravam ao pouco que restava: a força de continuar vivendo, mesmo diante de uma realidade tão implacável.

Com o passar dos dias, o número de doentes aumentou exponencialmente. O ambiente confinado dos porões da terceira classe, onde viajavam os emigrantes, era um terreno fértil para a propagação do cólera. As condições de higiene precárias pela escassez de água potável, instalações sanitárias insuficientes e a falta de alimentos adequados agravavam a situação. Maria, mesmo debilitada emocionalmente, tentava proteger os filhos do pior. Ela fazia o que podia para mantê-los longe das áreas mais afetadas, mas o espaço limitado do navio tornava essa tarefa quase impossível.

As mortes começaram a ocorrer com frequência alarmante. Primeiro eram os mais frágeis: idosos e crianças sucumbiam rapidamente à doença. Os corpos eram enrolados em lençóis e, com poucas palavras ditas em oração, lançados ao mar, o que gerava cenas de desespero e gritos de dor daqueles que perdiam seus entes queridos.

Quando o navio finalmente se aproximou da costa brasileira, a bordo reinava uma esperança frágil de que a chegada ao Rio de Janeiro pudesse representar a salvação. Porém, ao avistarem os oficiais sanitários que se aproximavam em pequenos barcos, a tensão cresceu. Após inspeções rápidas, veio a notícia que ninguém queria ouvir: o navio não teria permissão para atracar. As autoridades brasileiras temiam que a epidemia se espalhasse para a população local e ordenaram que o navio permanecesse em quarentena no mar com uma bandeira amarela hasteada no mastro principal para denunciar a sua situação.

A rejeição foi um golpe devastador. Os passageiros, já exaustos e famintos, não tinham forças para protestar. A bordo, o desespero atingiu seu ápice. A comida e a água se esgotaram, as mortes continuaram, e o odor da doença e da decomposição impregnava o ambiente. Os Esposito, como tantos outros, rezavam incessantemente por um milagre que não parecia vir.

Após dias intermináveis de espera, a decisão final foi anunciada: o navio teria que retornar à Itália. Para muitos, aquilo era o colapso de um sonho e o fim de qualquer esperança. A família Esposito, como os demais passageiros, viu-se forçada a enfrentar mais semanas de viagem, voltando para o ponto de partida, agora marcada pela dor, pela perda e pela desesperança.

A jornada de retorno, conhecida como "Torna Viagem", simbolizava não apenas um retrocesso físico, mas também emocional e espiritual. Para Maria, Vittorio e os filhos que sobreviveram, para a família Exposito, o que restava era tentar reconstruir suas vidas em meio aos escombros de uma tragédia que marcaria suas memórias para sempre. 

O "Torna Viagem" foi um processo trágico e emblemático da história da imigração no Brasil durante o século XIX. Implementado como uma medida de saúde pública, ele consistia em impedir o desembarque de passageiros em navios que transportavam imigrantes, caso houvesse registro de epidemias a bordo, como o temido cólera. Em vez de permitir que os passageiros desembarcassem e recebessem tratamento, as autoridades brasileiras ordenavam que esses navios retornassem aos seus portos de origem, levando consigo toda a carga de sofrimento, mortes e desespero.

Essa prática preventiva era motivada pelo temor justificado de que doenças contagiosas pudessem se espalhar pela população local, especialmente em cidades portuárias como o Rio de Janeiro, onde o acesso a infraestrutura sanitária era limitado. Assim, os navios eram submetidos a rigorosas inspeções sanitárias logo ao se aproximarem da costa. A detecção de mortes ou de sinais de doenças altamente contagiosas, como diarreia severa, febre e desidratação, geralmente levava à decisão de envio imediato do navio de volta à Europa.

Embora tivesse a intenção de proteger a saúde pública, o "Torna Viagem" gerava grande controvérsia. Para os imigrantes, que haviam investido todas as suas economias e sonhos em uma nova vida no Brasil, essa decisão era devastadora. Durante a viagem de ida, as condições a bordo já eram precárias: os porões das embarcações eram abarrotados, mal ventilados e mal iluminados. A higiene era quase inexistente, com instalações sanitárias insuficientes e água potável frequentemente contaminada. A disseminação de doenças como o cólera era praticamente inevitável.

No retorno forçado, a situação se agravava. Muitos passageiros já estavam enfraquecidos pela longa viagem e pela doença. O número de mortos aumentava, e os corpos eram frequentemente lançados ao mar sem cerimônias, um ato que aumentava o desespero daqueles que perdiam seus entes queridos. A comida e a água tornavam-se ainda mais escassas, enquanto a tripulação, também exausta, lutava para manter o controle em meio ao caos.

Para a famílias Esposito e Antonello, o "Torna Viagem" foi a culminação de um pesadelo que começou ainda nos primeiros dias de viagem. Após semanas de agonia, eles finalmente chegaram ao porto de Nápoles, mas o desembarque trouxe pouca sensação de alívio. Muitos passageiros estavam em estado crítico, debilitados pela doença e pela fome. Autoridades médicas e locais trabalharam incansavelmente para conter a epidemia e fornecer cuidados aos doentes. Os casos mais graves, como o de Vittorio Esposito, foram levados às pressas para hospitais improvisados, enquanto Maria e os filhos aguardavam com angústia a recuperação do patriarca.

O impacto psicológico do retorno foi imenso. Para os Esposito e tantas outras famílias, o "Torna Viagem" não foi apenas um revés prático, mas um golpe em suas esperanças e sonhos. Muitos nunca mais tentariam emigrar, marcados para sempre pelo trauma da experiência. Outros, obstinados pela necessidade, arriscariam novas travessias em busca de um futuro melhor, mas com cicatrizes indeléveis.

O "Torna Viagem" permaneceu em vigor até o início do século XX, quando avanços em saúde pública e infraestrutura permitiram a adoção de medidas mais humanas, como quarentenas em ilhas próximas aos portos e hospitais de isolamento. Hoje, é lembrado como um dos capítulos mais sombrios da imigração, destacando a vulnerabilidade dos imigrantes e a complexidade dos desafios enfrentados em busca de uma vida melhor.

Naquele verão além do Remo outros três navios transportando imigrantes italianos chegaram ao Brasil nas mesmas condições. O navio Andrea Doria chegou ao Porto do Rio de Janeiro em 12 de setembro de 1893 pelos mesmos motivos também não obteve a permissão para desembarcar os seus passageiros. Durante a travessia tinham ocorrido 91 casos de cólera a bordo e assim o navio recebeu a ordem de retornar ao porto de origem, frustando todos aqueles imigrantes e suas famílias. 

No dia 24 de agosto de 1893, o navio italiano Carlo R. atracou nas proximidades do Porto do Rio de Janeiro, trazendo consigo uma história de sofrimento e desespero. Durante a longa travessia atlântica, uma violenta epidemia de cólera assolou a embarcação, ceifando a vida de 100 pessoas. Entre os mortos estavam crianças, idosos e outros imigrantes debilitados pelas precárias condições de higiene e alimentação. A situação a bordo era calamitosa: além dos mortos, um número ainda maior de passageiros encontrava-se gravemente doente, lutando contra febres, diarreia intensa e desidratação severa.

Quando as autoridades sanitárias brasileiras subiram a bordo para vistoriar o Carlo R., foram imediatamente impactadas pelo cenário dantesco. Relatos da época descrevem o navio como uma verdadeira prisão flutuante de sofrimento, com um odor insuportável que impregnava o ar, resultado da falta de ventilação, da decomposição de resíduos e da aglomeração humana em condições desumanas. Os porões estavam lotados de passageiros exaustos e doentes, muitos deles amontoados em estreitas camas de madeira ou diretamente sobre o chão, sem acesso a cuidados básicos.

A inspeção confirmou o pior: o navio era um foco de contaminação. O estado deplorável da embarcação e o alto risco de propagação da epidemia levaram as autoridades brasileiras a tomarem uma decisão drástica. O Carlo R. foi sumariamente interditado e impedido de desembarcar seus passageiros em terras brasileiras. A embarcação recebeu ordens de retornar imediatamente ao porto de origem na Itália, levando consigo não apenas os doentes e os corpos dos que haviam perecido, mas também os sonhos despedaçados de centenas de famílias que acreditavam estar a caminho de uma vida nova e promissora.

O retorno forçado para a Itália foi uma sentença cruel para aqueles a bordo. A jornada de volta, em condições ainda mais deterioradas, prometia mais sofrimento e mortes. Sem acesso a tratamento médico adequado e com estoques de comida e água cada vez mais escassos, os passageiros enfrentaram uma verdadeira prova de resistência. O sonho de "fazer a América" transformou-se em um pesadelo flutuante, onde a esperança dava lugar ao desespero e à resignação diante do incontrolável.

A tragédia do Carlo R. é lembrada como um símbolo dos desafios enfrentados pelos imigrantes italianos no final do século XIX. Representa não apenas as adversidades de uma travessia transatlântica, mas também as políticas rigorosas de contenção sanitária da época, que frequentemente sacrificavam vidas e sonhos em nome da proteção coletiva.

No dia 16 de setembro do mesmo ano foi a vez do navio Vicenzo Florio ser proibido de desembarcar os seus passageiros devido o surgimento de uma epidemia a bordo enquanto atravessava o oceano com destino ao Brasil. Este navio também foi proibido de desembarcar os passageiros ou qualquer membro da tripulação e teve que empreender a viagem de volta ao porto de origem.

Quando finalmente o Vincenzo Florio chegou ao porto, as autoridades sanitárias brasileiras, alertadas pelos registros de mortes e relatos de doenças durante a travessia, realizaram uma rigorosa inspeção. As evidências de contaminação e o alto risco de propagação da epidemia levaram à temida decisão: o navio foi proibido de desembarcar passageiros ou tripulação. Seguindo os protocolos de saúde pública da época, a embarcação recebeu ordens para empreender a viagem de volta ao porto de origem na Itália.

A decisão foi um golpe devastador para os imigrantes. Após semanas enfrentando as adversidades do mar e os horrores da doença, a proibição de desembarque significava a destruição de seus sonhos de uma nova vida. Famílias inteiras, que haviam deixado tudo para trás em busca de oportunidades no Brasil, viram-se forçadas a retornar para uma terra onde a miséria e o desemprego as aguardavam.

A viagem de retorno foi ainda mais desafiadora. O número de doentes aumentava a cada dia, e os suprimentos de comida e água estavam perigosamente baixos. Muitos passageiros sucumbiram à epidemia durante o trajeto de volta, e os que sobreviveram chegaram à Itália profundamente debilitados, física e emocionalmente.

O episódio do Vincenzo Florio reflete um capítulo doloroso da história da imigração no Brasil e do fenômeno conhecido como "Torna Viagem". Ele simboliza os desafios e tragédias enfrentados por aqueles que, movidos pela esperança, se lançavam ao mar em busca de uma vida melhor. Além disso, destaca as condições desumanas a que esses imigrantes eram submetidos e as duras políticas sanitárias que, embora visassem proteger a população local, resultavam em sofrimento extremo para os viajantes. Essas histórias permanecem como testemunhos de coragem, resiliência e da busca incessante por um futuro melhor, mesmo diante das adversidades mais cruéis.

Entre os meses de agosto e setembro de 1893, quase seis mil imigrantes italianos tiveram seus destinos drasticamente alterados. Nesse período, quatro grandes vapores italianos, cada um transportando aproximadamente 1.500 imigrantes, viram suas jornadas interrompidas de forma abrupta ao serem impedidos de desembarcar no Porto do Rio de Janeiro. Após mais de um mês enfrentando os desafios e privações de uma longa travessia oceânica, esses navios foram obrigados a retornar aos portos de embarque na Itália, transformando sonhos de esperança e prosperidade em desespero e frustração.

Essas famílias deixavam a pátria com o propósito de “fazer a América”, como dizia-se à época, mas a concretização desse ideal exigia mais do que coragem e disposição. A decisão de emigrar era acompanhada de meses, ou até anos, de planejamento meticuloso e uma preparação rigorosa. Não bastava o desejo de partir; era necessário reunir recursos financeiros para custear as passagens e reunir uma vasta gama de documentos que atestavam desde a saúde até o histórico pessoal dos viajantes.

Entre os papéis exigidos estavam o passaporte, que marcava a saída de sua terra natal, e o visto, necessário para transitar pelos portos de escala e entrar no Brasil. Além disso, os imigrantes precisavam de certificados de vacinação, muitas vezes obtidos em clínicas lotadas nos dias que antecediam a viagem, bem como de certificados de inspeção médica, que atestavam estarem livres de doenças contagiosas. Como se isso não bastasse, era necessário ainda um certificado de antecedentes penais, que assegurava às autoridades brasileiras que os recém-chegados não representavam uma ameaça à ordem pública. Cada etapa burocrática representava um novo obstáculo, que os emigrantes superavam com determinação, movidos pelo sonho de um futuro melhor.

A partir de abril de 1893, começaram a chegar às autoridades brasileiras relatos alarmantes enviados pelas representações diplomáticas no exterior. Essas comunicações informavam sobre as precaríssimas condições sanitárias nos principais portos europeus afetados por uma devastadora epidemia de cólera. Em resposta, as embarcações provenientes dessas regiões, ou aquelas que tivessem registrado qualquer caso da doença a bordo, passaram a ser admitidas nos portos brasileiros somente após cumprirem rigorosos protocolos sanitários. Esses incluíam a desinfecção completa da embarcação, assim como a limpeza de bagagens, roupas e objetos pessoais dos passageiros. Todas essas etapas ocorriam no Lazareto da Ilha Grande, para onde os navios deveriam se dirigir antes de seus ocupantes terem a permissão de pisar em terra firme.

Como medida preventiva adicional, o governo brasileiro decidiu suspender temporariamente a corrente migratória. A partir de 16 de agosto de 1893, foi proibida a entrada de imigrantes transportados por vapores oriundos da Itália e da Espanha, além de todos os navios provenientes de portos franceses e africanos do Mediterrâneo, declarados oficialmente como infectados pela epidemia.

Além disso, foi imposta uma quarentena rigorosa para embarcações com passageiros infectados ou mesmo sob suspeita de contaminação por cólera. Apenas no início de 1894, quando a epidemia começou a ser controlada, a situação se normalizou, permitindo a retomada gradual do fluxo migratório a partir de regiões consideradas livres da doença.

Entre as medidas profiláticas adotadas, uma das mais drásticas foi o chamado “torna-viagem”, que consistia no retorno forçado do navio ao porto de origem. Essa prática era aplicada em casos extremos, especialmente quando havia grande número de doentes e mortos a bordo. Infelizmente, foi exatamente essa a situação enfrentada por quatro vapores italianos que chegaram ao Porto do Rio de Janeiro entre agosto e setembro de 1893. Essas embarcações, carregadas de passageiros esperançosos em busca de uma nova vida, tiveram seus sonhos interrompidos de forma trágica, sendo obrigadas a empreender a dolorosa jornada de volta à Europa.

A travessia, no entanto, era um teste de resistência. A bordo dos vapores, as condições eram muitas vezes desumanas. Os porões abarrotados tornavam o ar sufocante, enquanto os alimentos e a água potável eram racionados. Doenças como o cólera ou a febre tifoide encontravam terreno fértil para se espalhar rapidamente entre os passageiros enfraquecidos. Qualquer pequeno sintoma era motivo de pânico, pois uma epidemia a bordo podia condenar não apenas os doentes, mas também os saudáveis ao infortúnio do "Torna Viagem".

Para os imigrantes que sonhavam com uma nova vida no Brasil, o retorno à Itália não era apenas um revés prático, mas um golpe moral e emocional devastador. A dura realidade de ver o horizonte do novo mundo desaparecer em direção oposta era difícil de suportar. Muitos voltavam ainda mais pobres e fragilizados do que quando partiram, tendo perdido suas economias, sua saúde e, em alguns casos, seus entes queridos durante a viagem. Ainda assim, o desejo de reconstruir suas vidas continuava a pulsar, mesmo que o caminho para o futuro permanecesse incerto e doloroso.


Nota do Autor


Escrever A Emigração Italiana, as Toneladas Humanas, o Cólera e o Torna Viagem foi um mergulho profundo nas páginas esquecidas da história, onde vidas inteiras são comprimidas em estatísticas e relatos oficiais. Este livro nasce do desejo de dar voz aos protagonistas de um dos maiores deslocamentos humanos da história moderna: os emigrantes italianos do final do século XIX e início do XX.


Em um período de intensa crise social, política e econômica, milhares de famílias italianas enfrentaram a fome, o desemprego e a falta de perspectivas, embarcando rumo ao desconhecido em busca de sobrevivência. Contudo, a travessia marítima muitas vezes transformava a esperança em tragédia. Navios superlotados, condições insalubres e epidemias, como o cólera, transformavam os sonhos em luto.


Ao retratar os desafios, as perdas e as conquistas desses emigrantes, procuro não apenas resgatar suas histórias, mas também refletir sobre a resiliência e a humanidade que resistem mesmo diante das adversidades mais brutais.


Este livro também revisita o conceito do torna viagem — o regresso, muitas vezes forçado ou desejado, à terra natal —, como símbolo de um ciclo interminável de saudade, fracasso e recomeço. Ele revela o peso do passado que esses indivíduos carregavam consigo, mesmo ao tentar construir um novo futuro.


Dedico este trabalho a todos os descendentes desses corajosos emigrantes, para que jamais esqueçam a jornada dos que vieram antes deles, e às almas daqueles que nunca chegaram ao destino, mas cujas histórias merecem ser contadas.


Espero que as páginas que seguem sirvam como um convite à reflexão e uma homenagem à força indomável do espírito humano diante do sofrimento.

Dr. Piazzetta




quinta-feira, 4 de maio de 2023

Epidemias a Bordo : Dramático Relato de um Passageiro do Vapor Remo

 


"Às duas horas da madrugada do dia 6 de setembro, no porão nº 2, nos braços de seus pais, morreu uma menina de 7 anos, que foi imediatamente jogada ao mar. Às 9 horas uma outra menina de 11 meses deixou de viver depois de ter sido hospitalizada. Assim que morreu foi jogada ao mar, na presença do médico e de alguns passageiros". 

Esta é uma das passagens mais dramáticas do livro de memórias escrito pelo passageiro da província de Modena, Cesare Malavasi, em fevereiro de 1894, poucos meses após o fim da viagem que custou a vida de 96 emigrantes italianos por uma grande epidemia. É um livro pouco divulgado pela historiografia e praticamente desconhecido do grande público. 
O vapor Remo partiu de Gênova em 15 de agosto de 1893, dois dias antes de outra tragédia da emigração italiana, o massacre de Aigues Mortes, quando aproximadamente 500 franceses furiosos massacraram alguns trabalhadores italianos acusados ​​de roubar seus postos de trabalho. 
Muitos dos passageiros do navio eram provenientes dos municípios da baixa planície da província de Modena, zona duramente atingida pela crise agrária do final do século XIX, como tantas outras em toda a Itália. No mesmo período a pobreza e a desesperança estavam presentes de norte a sul, golpeando com força todas as regiões italianas. 
Somente no ano de 1888, 415 pessoas deixaram o município de Cavezzo, província de Modena, que então, tinha uma população de 4.876 habitantes. Uma investigação oficial, realizada no ano seguinte no vizinho município de Mirandola, explica as razões deste enorme êxodo, “até então desconhecido numa terra que sempre deu aos seus habitantes o que precisavam para viver”.
As principais causas desta fuga de braços foram «a miséria e a falta de trabalho para os camponeses e operários. A maioria dos nossos camponeses, com famílias numerosas carecem de um trabalho diário seguro e lucrativo para si e para a sua família. Os nossos trabalhadores preferem emigrar na incerteza de uma renda segura, convencidos de que não encontrarão maior miséria do que têm em casa”. 
"No ano passado - escrevia o jornal mensal local, o Indicador Mirandolês, em 1889 - famílias inteiras provindas da zona rural, levando os seus poucos utensílios domésticos, partiram para Gênova, para de lá embarcarem para destinos distantes como o Brasil e Argentina. Assim também nós experimentamos pessoalmente e fomos testemunhas oculares deste flagelo deplorável da emigração, que já de muito tempo atinge muitas outras partes da Itália. Essa praga cresce cada dia mais e ameaça assumir formas contagiosas. 
Continuando o mesmo jornal "O êxodo descontrolado dessa população rural - concluiu amargamente o redator - entre os quais vimos velhos frágeis, mulheres grávidas, crianças chorando de frio e fome que, perdidas, fugiram de sua ingrata pátria e se dirigiram para o exterior, em busca de melhores destinos, sem garantia segura, formando o mais desolador dos espetáculos, que deve também ser pensado por todos aqueles que se preocupam seriamente com os interesses nacionais».
Se a miséria foi a causa das partidas, os agentes da emigração, prepostos das companhias de navegação, que com seus discursos, folhetos e brochuras tranquilizavam sobre as condições de viagem e exageravam as oportunidades oferecidas pelos países de desembarque, dissipavam as dúvidas dos incertos, escondendo muitas vezes algumas verdades muito claras àqueles que organizaram esse tráfico de homens. 
Em primeiro lugar, essa viagem muitas vezes se transformava em uma verdadeira odisseia, depois dos frequentes casos de enganos, ilícitos e abusos de poder contra aqueles que decidiram mudar de vida deixando seu país de origem.
"Do nosso Município - lê-se no jornal, em agosto de 1891 - mais de 300 pessoas já partiram este ano com a Companhia Geral de Navegação, com as passagens e alimentação pagas até o Brasil. Muitos outros preparam-se para a partida que terá lugar após a colheita no campo".
Um desses emigrantes foi Cesare Malavasi de César, autor do livro. Chegando com a esposa ao porto de Gênova, Malavasi teve que “dar uma boa gorjeta” para os carregadores embarcarem a bagagem, que tinha ultrapassado o peso permitido. 
A maioria dos emigrantes esperava o seu embarque num grande salão, sentados ou deitados no chão: «Alguns comiam, outros dormiam. Vi mulheres que, cansadas dos sofrimentos e da insônia das noites anteriores, dormiam numa espécie de sono letárgico; e criancinhas que, sem que soubessem, chupavam leite de seus seios. Havia choros, gritos, gemidos e xingamentos em mil formas, causados ​​por diferentes motivos. Fiquei maravilhado com aquela visão, com aquele espetáculo e, se bem me lembro, nunca tinha sentido essa emoção em toda a minha vida”.

A viagem 

No dia 15 de agosto, às 15h30, embarcaram os 900 passageiros, depois de uma comissão de saúde “examinar a inoculação da vacina da varíola às crianças, e examinar os outros emigrantes a granel”. O navio tinha 2.964 toneladas, com 100 metros de comprimento e 12 metros de largura, foi construído em 1891 no estaleiro Ansaldo em Sestri Ponente, com o nome de Michele Lazzaroni, encomendado pela empresa Mazzino de Gênova. Tinha 60 cabines de primeira classe e 900 lugares de terceira classe. Em 1892 o mesmo proprietário o renomeou Remo.
"Os que partiam conheciam apenas alguns detalhes da travessia, mas neste caso os viajantes foram deixados propositalmente no escuro sobre um detalhe decisivo: que o primeiro destino era Nápoles, onde uma epidemia de cólera estava ocorrendo. As reclamações de alguns passageiros mais bem informados foram repelidas, sem a menor vergonha, por um agente de emigração".
"O navio ancorou às 4,10 da tarde e pouco antes da meia-noite de 16 de agosto chegou à entrada do porto de Nápoles, onde entrou no dia seguinte. Aqui embarcaram mais 700 passageiros e uma grande quantidade de mercadorias, incluindo 400 barris de vinho. Os novos emigrantes eram vistos com desconfiança, pois além de reduzirem espaço e alimentação, aumentavam o risco de doenças.
Na noite de 17 de agosto, o navio partiu. Depois de cruzar o Estreito de Gibraltar em 21 de agosto, o navio a vapor enfrentou as ondas "imperiosas e furiosas" do oceano. "Quando apareceram no convés, quase todos estavam enjoados; ouviam-se gemidos, viam-se contorções e esforços provocados pelos fortes engasgos, de dar medo. 
"O café foi distribuído, mas quase ninguém - escreve Malavasi - pôde aproveitá-lo, e o mesmo aconteceu com todos os outros alimentos daquele dia". Após a escala em Nápoles, a comida começou a escassear e a ficar mais pobre, em meio aos protestos de passageiros. A partir de 24 de agosto, "estouraram discussões e brigas pela ocupação de assentos". Um deles envolveu Rosalia Biscuola, uma compatriota de Malavasi. Subindo ao convés para ocupar o lugar dos dias anteriores, encontrou-o ocupado "por uma mulher do sul; Rosalia implorou que ela se retirasse, mas ela recusou. La Biscuola largou suas roupas, mas a do sul as rejeitou insistentemente três vezes. Minha ousada conterrânea se irritou e então se jogou na adversária e lhe deu uma forte dose de socos. Se a sulista não carregasse uma criança nos braços, que servia de escudo, ela teria levado mais. Outros sulistas, ao mesmo tempo, se viram ajudando sua colega, e a essa altura o ousado cavezzese teria relatado o pior de tudo. Mas o destino quis que naquele momento eles também estivessem decididos a brigar pelo mesmo motivo, então o incidente passou despercebido". 
De uma pesquisa no Arquivo Histórico Municipal de Cavezzo, apura-se que em junho de 1893 o marido da fogosa Rosália, Teodorico Lugli, 42 anos, fazendeiro, havia pedido passaporte para o exterior para ir com o sobrinho Ildegardo Lugli para São Paulo no Brasil, com "certeza de emprego". 
Tendo conseguido um emprego lucrativo, Tedorico pediu a Rosália (casada em segundo casamento) e sua filha, Ernesta Lugli, para se juntarem a ele. No arquivo histórico municipal há muitos outros pedidos de passaporte desse período, incluindo o de Brunechilde Minelli, embarcado no vapor Remo junto com suas filhas Maria e Ida (ou Iva).
A viagem continuou em meio a sérias inconveniências, maus-tratos, assédio por parte dos oficiais do navio e brigas furiosas. Quatro toscanos que tentavam convencer outros emigrantes a não aparecerem para a coleta de ração foram amarrados às grandes correntes de âncora em uma prisão sob a proa.
A comida era ruim. No dia 2 de setembro, um café "muito parecido com água quente" foi servido pela manhã. Às 11h a distribuição de "macarrão pequeno impropriamente chamado, em caldo; e para o prato muito pouca carne cortada em pedaços muito pequenos. A outra ração consistia em um pouco de arroz, muito longo e que não prestava para nada, e carne salgada cozida, com acompanhamento de lentilhas”. Outras vezes serviam-se grão-de-bico, batata, atum e salada, estufado de bacalhau” e outros lixos, que, não só de mau gosto, eram também de grande prejuízo para a saúde de todos, produzindo diarreia, disenteria, com dores abdominais dos passageiros, que faziam você rastejar".
Com a aproximação da "terra prometida", uma grande agitação se espalhou pelo Remo. Todo mundo estava falando sobre a América, a poucos dias de distância. Alguns estavam começando a pensar que os sonhos de riqueza - ou pelo menos de progresso tangível em sua condição humilde, estavam prestes a se tornarem realidade; outros limitaram-se a planejar a viagem de Santos, porto de desembarque, a São Paulo, destino final de muitos emigrantes. Para economizar tempo, alguns até pensaram em pagar essa última viagem do próprio bolso, em vez de aproveitar o transporte gratuito oferecido pelas agências de viagens.

A tragédia e o retorno

O clima de grande euforia foi abruptamente interrompido em 6 de setembro, com a notícia (que mencionei no início) da morte de duas meninas, lançadas ao mar na presença de seus parentes desesperados. Mas para a carga humana do vapor Remo era apenas o começo.
"Chove muito, o frio é forte, é um desconforto geral, principalmente para mulheres e crianças. Ao anoitecer o médico foi chamado para visitar um Catanzaro gravemente doente no primeiro porão, no andar inferior. Quando o médico veio, após um exame minucioso, ele disse que era indigestão de água. Estou muito convencido de que aquele seguidor de Esculápio bem tinha entendido que era uma cólera quase fulminante, mas ele tinha boas razões, se não queria colocar apreensão a bordo! Mandou preparar conhaque, marsala e caldo para o paciente, e antes das 20h foi transportado para o hospital”.
Na manhã de 7 de setembro, foi avistado o farol de Cabo Frio, no Brasil. A navegação continuou, no sentido sudoeste, em direção ao Rio de Janeiro e à Ilha Grande. Quando este estava a apenas 70 milhas de distância, dois sulistas adoeceram "de cólera, então todos os outros foram expulsos do hospital, do qual ninguém estava gravemente doente, exceto o Catanzaro, que deixou de viver às 2 da tarde". 
Ao anoitecer, o navio parou na Ilha Grande, aguardando o exame médico. No dia seguinte, uma comissão de saúde chegou com um vaporetto, ordenou ao comandante do Remo que retrocedesse 20 milhas, para lançar o corpo do catanzarense ao mar antes de retornar ao porto. 
Aqui o vapor aguardava mais provisões, sob a ameaça dos canhões de um encouraçado brasileiro. Na noite entre 8 e 9 de setembro, um homem e uma mulher foram hospitalizados que apresentavam sinais claros de cólera. Então, pela manhã, veio a notícia que deixou todos no mais profundo desespero. O governo brasileiro decidiu rejeitar os italianos em bloco.
Não foi o primeiro navio a sofrer este destino e não foi o último. A muitos navios italianos foram negadas a possibilidade de atracar. Muitos dos nossos compatriotas morreram durante as travessias da esperança. Por exemplo, centenas de mortes por cólera entre os 1.333 passageiros do Matteo Bruzzo, rejeitados por tiros de canhão pelas autoridades uruguaias e forçados, como o Remo, a se livrar da epidemia vagando pelos mares e jogando os cadáveres no oceano. Os casos de acidentes nesses vapores eram tão frequentes que o termo "navios da morte" começou a ser usado para defini-los. O navio a vapor Carlo Raggio, em quarentena na baía de Ilha Grande junto com o Remo, teve 211 mortes por epidemia de cólera e sarampo. No mesmo navio, outros passageiros já haviam morrido de fome seis anos antes. No Remo, na noite de 9 para 10 de setembro, "...durante a noite houve também a morte do filho de um certo Primo Luppi de San Prospero (Modena). "... de manhã, no corredor, no rosto de cada um podia ler-se a dor e a tristeza; muitos estavam com as faces molhadas de lágrimas: mas era preciso resignar-se ao destino adverso”, comentou Malavasi.

O navio foi abastecido com água e comida, incluindo 13 bois, farinha, galinhas e massas. Em 12 de setembro morreu um piemontês que tinha a bordo esposa e dois filhos, um sulista de cerca de sessenta anos e um filho no terceiro porão. Então o filho de um certo Angelo Bosi de Disvetro, uma fração do Município de Cavezzo, estava em estado grave. Antes da noite Clementina Meschiari, também de Disvetro, também adoeceu com uma febre forte. "Visitada pelo médico, foi-lhe receitado um certo medicamento que desta vez lhe restaurou a saúde."
Antes do anoitecer, apareceu um barco a vapor rebocado por outro barco, trazendo medicamentos e a notícia de que, no dia seguinte, chegariam as provisões solicitadas». Às 8 da tarde, o encouraçado levantou âncoras e deixou apenas a tripulação do Remo.
Na manhã do dia 13 de setembro, uma certa Filomena Garuti, esposa de Angelo Bosi, foi levada ao hospital "por vômitos, diarréia ao mesmo tempo, o vapor Andrea Doria, que lá chegou ontem, passou perto de nós e foi ser sepultar os cadáveres que tinha a bordo; chegou também o conhecido barco a vapor que nos trouxe a a água... Uma veneziana às 16h pediu ao médico para ir visitar o marido hospitalizado; a princípio ele se opôs, depois a fez saber da morte da esposa de seu amante. Nessa época, uma certa Mazza Cleonice, de Cavezzo, adoeceu com disenteria e vômitos, e foi visitada pelo médico. Quando a noite chegou, soube-se que Garuti Filomena havia piorado e que Mazza havia sido internado”.
Em outro trecho Malvasi conta “Vi homens e mulheres empenhados em ler e meditar sobre coisas sagradas; Vi outros que se ocupavam com leituras profanas e até obscenas; mulheres que durante a maior parte do dia recitavam o rosário, e outras que desrespeitavam seus filhos e maridos, lançando contra elas os mais vilões; maridos que amaldiçoaram seus filhos e esposas por infortúnios ou desastres, ou que vomitaram as mais atrozes blasfêmias. Finalmente, ouvi a viúva do Piemonte fazer orações fúnebres junto com os seus dois filhos pequenos, em memória do pai falecido".


4. O retorno à Itália


Na noite de 13 de setembro, o Remo partiu para a Itália. Na manhã seguinte, “alguém recebeu permissão para abrir seus baús e tirar peças de roupa, porque as roupas usadas pela maioria não eram apenas imundas, mas também infestadas de insetos imundos. Mortes não faltaram... Estamos nas horas das formigas do dia 15 de setembro e uma menina encantadora de 7 anos morre de cólera; no terceiro porão outro morreu, e uma mulher ficou gravemente doente. À uma hora da tarde Mazza Cleonice deixou de viver: no hospital havia doentes e mortos. Agora o tifo e a difteria estão associados à cólera e todos com verdadeiro heroísmo estão esperando sua vez de morrer, pois acreditam ser moralmente impossível que pessoas maltratadas, esgotadas de finanças, sofram pela perda, alguns do pai, alguns do marido, quem da esposa, algum do irmão, ou do amigo, pode ter força suficiente para sobreviver a tantas calamidades". Nos dias seguintes a situação não melhorou:
São muitos os que adoecem no dia 16 de setembro e, consequentemente, são hospitalizados, e a bordo há rumores de que mais seis foram alimentar os peixes.
A uma hora da tarde pelo Comissário soube-se que tanto Garuti Filomena quanto seu filho haviam prestado a inefável homenagem à natureza. Agata Tozzini também deixou de viver pelo cólera, apesar dos esforços de seu marido Pietro Naldini da Calci, Pisa.
Havia muitas crianças doentes no terceiro e quarto porão na manhã do dia 17 de setembro, e às 10h a Meschiari Clementina, que vinha com o marido Pivetti Primo e um filho de apenas cinco meses. O marido enlutado foi ao médico, e somente a uma hora da tarde ele foi autorizado a encontrá-la. Meschiari sentiu disenteria, dores intestinais, perda de apetite, aperto no estômago e foi acometido de febre. O relógio de bordo marcava 17h quando houve uma piora na Meschiari, acrescentando, às outras doenças, também vômitos pelos quais ela teve que ser internada. Antes de se retirar, seu marido Pivetti, por ordem do médico, trouxe o bebê Tonino ao hospital para que sua mãe o amamentasse, mas logo depois ordenou que o retirasse e o levasse consigo para o beliche.
Em 23 de setembro Clementina Meschiari também morreu. Ao marido, "imerso na dor, ficou a tarefa de, dia e noite, levar todos os cuidados necessários ao filho pequeno Tonino, que, por falta de leite, ficou reduzido ao extremo".

A quarentena em Asinara e a investigação de abusos

Nos últimos dias de setembro, quando o navio se preparava para entrar no Mediterrâneo, a epidemia começou a diminuir de intensidade, mas os mortos já eram 76. Em 29 de setembro o vapor fez escala em Tenerife, depois partiu para o Asinara, onde os passageiros seriam colocados em quarentena. Nesses dias também morreu a pequena Iva Flandoli, que partiu com a mãe e a irmã para se reencontrar com o pai. O Remo chegou à ilha no nordeste da Sardenha na manhã de 6 de outubro. Seis grandes covas, com três metros de profundidade, foram cavadas em Asinara para recolher os mortos de quatro navios atingidos por epidemias (além do Remo, do Carlo Raggio, do Vincenzo Florio e do Andrea Doria). Em 7 de outubro, começou a desinfecção do navio. Os doentes foram transportados para o hospital, enquanto os passageiros saudáveis ​​foram encaminhados para desinfecção. Às 10h30 do dia 14 de outubro, outro dos navios a vapor rejeitados pelo Brasil chegou à ilha, o Vincenzo Florio, cujas 19 mortes estavam destinadas a aumentar.
Após as operações de desinfecção, o navio partiu para Nápoles, após o sinal verde de uma comissão de saúde. Antes de partir, porém, alguns passageiros do sul enviaram uma carta ao prefeito napolitano para denunciar os tratamentos sofridos durante a travessia. Enquanto isso Malavasi havia sido nomeado, junto com outros dois passageiros, para um comitê encarregado de apresentar as queixas coletadas entre os passageiros ao capitão do navio.
O navio chegou a Nápoles em 18 de outubro e de lá, no dia seguinte, partiu inesperadamente para Nisida. O prefeito, tendo recebido a carta, de fato ordenou uma investigação imediata, confiando-a à Autoridade Portuária de Nápoles. A comissão responsável interrogou vários passageiros e marinheiros. Inúmeras irregularidades e arbítrios emergiram da investigação. Um certo Luigi Pedrazzi de Cavezzo, por exemplo, havia pedido repetidas vezes ao vice-comissário do navio para poder abrir seus baús para levar roupas, sempre obtendo uma resposta negativa. Pedrazzi pediu então à sua concidadã Maria Zucchi que se apresentasse ao vice-comissário, declarando por sua vez que ele precisava abrir um baú, contando com o fato, escreve Malavasi, "que as mulheres, especialmente se são bonitas, muitas vezes são chaves poderosas que todos desbloqueiam.". O oficial concordou, mas quando Pedrazzi também apareceu para a nomeação, o vice-comissário, "amargo", desafiou-o "para um duelo, deixando-lhe a escolha das armas". Constatou-se também que alguns passageiros foram maltratados e que dinheiro e pensão alimentícia foram roubados de outros.
A comissão de inquérito realizou rapidamente o seu trabalho e na manhã de 22 de outubro as âncoras foram levantadas do cais de Nisida para Nápoles, onde desembarcaram os sulistas, e depois para Gênova. Na manhã de 26 de outubro, os últimos passageiros desembarcaram no cais. 
Se se pudesse dizer que a dramática história do Remo acabou, a miséria dos passageiros continuava. "A maioria - concluiu Malavasi desconsolado - parecia sentir alívio e refrigério ao narrar, sem a menor reticência, a miséria em que logo se encontrariam: sem pão, sem teto, na impossibilidade de ganhar um centavo, sem saber o que para saciar a fome deles, de sua esposa e de numerosos descendentes. Não são palavras, são fatos, e fico horrorizado a cada momento que meus pensamentos voam para aqueles momentos de tanta miséria, de tanto desânimo".







domingo, 12 de março de 2023

Epidemia de Cólera a Bordo do Navio de Imigrantes



A família Esposito, composta por seis pessoas, partiu de Nápoles, na Itália, em direção ao Brasil em 1889, junto com centenas de outros imigrantes daquela região meridional. Eles esperavam encontrar uma vida melhor do outro lado do oceano, mas em vez disso encontraram uma viagem cheia de dificuldades. A bordo do navio em que viajavam, uma epidemia de cólera se espalhou rapidamente entre os passageiros e tripulantes, deixando muitos deles doentes e fracos. Muitos imigrantes e alguns tripulantes morreram durante a travessia e foram sepultados no mar. 

A jornada de navio dos Esposito começou com muito entusiasmo e esperança. A família se despedia de seus parentes e amigos em Nápoles com lágrimas nos olhos e corações pesados, mas com a promessa de um futuro melhor. No entanto, a viagem não foi tão tranquila quanto eles imaginavam. 

Logo na primeira semana a bordo, o chefe da família, Vittorio, começou a sentir-se mal. Ele tinha febre alta, dores abdominais e muita diarreia. A mãe, Maria, ficou preocupada e pediu ajuda ao médico do navio. Mas o médico, um jovem profissional recém saído dos bancos da Universidade de Nápoles, não tinha muita experiência com epidemias e logo muitos outros passageiros começaram a apresentar os mesmos sintomas. 

Os dias se passavam e a situação a bordo piorava. O cólera se espalhou rapidamente pelo navio, deixando muitos passageiros doentes e fracos. A comida e a água que eram escassas, e a higiene bastante precária. Maria tentava manter a calma e cuidar de sua família, mas estava cada vez mais difícil.

Já tinham ocorrido diversas mortes entre os passageiros mais debilitados, quase todos idosos ou crianças. A situação chegou a um ponto crítico quando o navio se aproximou do porto do Rio de Janeiro, onde esperavam ser recebidos e tratados para controlar a epidemia. Mas, para surpresa de todos, as autoridades sanitárias brasileiras se recusaram a permitir a entrada do navio no porto. O medo de que a epidemia se espalhasse pelo país foi a justificativa dada e esta era a conduta que todos os países do mundo adotavam para casos semelhantes.

A família Esposito e os demais passageiros ficaram desesperados. Eles não sabiam o que fazer ou para onde ir. Muitos passageiros morreram durante essa espera no navio, e a situação se tornou ainda mais desesperadora quando a comida e a água acabaram. 

Os Esposito e os sobreviventes da epidemia foram obrigados a permanecerem a bordo do navio por dias, com ele ancorado em alto mar, a alguns quilômetros fora do porto, à espera da autorização de desembarque das autoridades brasileiras. Foram dias muito tensos, de grande angústia e incerteza para todos. A única coisa que podiam fazer era orar e esperar por um milagre. 

Finalmente, depois de muito tempo, veio a temida notícia que ninguém queria ouvir: as autoridades sanitárias brasileiras não permitiram que os passageiros e a tripulação desembarcassem e nem mesmo que o navio ancorasse no porto. Era o tão temido "Torna Viagem" quando os imigrantes estavam quase concretizando o sonho de uma vida nova, viam seus planos irem por água abaixo, e necessitavam retornar à Nápoles.

O "Torna Viagem" foi um processo que ocorreu no Brasil durante o século XIX, quando navios que transportavam imigrantes para o porto do Rio de Janeiro eram impedidos de desembarcar devido à ocorrência de epidemias a bordo, especialmente o temível cólera. Em vez de desembarcar os passageiros, esses navios eram obrigados a retornar para seus portos de origem com todos os imigrantes a bordo.

Esse processo foi adotado como medida preventiva para evitar a propagação de doenças contagiosas no país. Os navios que chegavam ao porto do Rio de Janeiro eram submetidos a inspeções sanitárias rigorosas e, caso fossem detectados casos de doenças contagiosas com a ocorrência de mortes durante a viagem, especialmente o temível cólera, os passageiros eram impedidos de desembarcar. Esses navios eram então obrigados a retornar para seus portos de origem com toda a sua carga de sofrimento a bordo, em um processo conhecido como "Torna Viagem".

O processo de "Torna Viagem" foi bastante controverso na época, pois muitos outros imigrantes morriam durante a viagem de retorno devido às condições precárias a bordo e à falta de assistência médica adequada. Além disso, muitos imigrantes que chegavam ao Brasil em busca de uma vida melhor acabavam sendo obrigados a retornar para seus países de origem sem conseguir realizar seus sonhos.

Apesar das críticas, o processo de "Torna Viagem" foi mantido no Brasil até o início do século XX, quando medidas mais eficazes de controle de doenças contagiosas foram implementadas. Hoje, o "Torna Viagem" é lembrado como um triste capítulo da história da imigração no Brasil.

Os Esposito e os demais passageiros, depois de mais de vinte dias de sofrimento em um navio que enfrentava uma grave epidemia de cólera, finalmente chegaram no porto de Nápoles, foram retirados do navio, mas muitos deles estavam em estado grave. Os médicos e as autoridades locais trabalharam arduamente para controlar a epidemia e ajudar os doentes foram encaminhados para um hospital de Napoli, onde receberam tratamento e cuidados médicos.

A epidemia de cólera que os Esposito e os demais passageiros enfrentaram durante a viagem foi uma experiência traumática que os marcou para sempre. Eles aprenderam a valorizar a vida e a saúde, e a nunca subestimar os perigos que as doenças podem trazer. 

O desejo de fugir da Itália era tão forte que logo após se recuperarem da doença, Vittorio e a família decidiram que era hora de recomeçar e empreenderam novamente a viagem para o Brasil. Desta vez a viagem foi tranquila e chegaram com saúde ao Rio de Janeiro. Eles tinham perdido tudo o que possuíam durante aquela fatídica viagem, mas estavam determinados a reconstruir suas vidas no Brasil. Eles conseguiram um contrato de trabalho no interior do estado de São Paulo, em uma grande fazenda de café. 

A vida na fazenda não era fácil, mas já era uma melhoria em relação à situação em que se encontravam na Itália e durante a viagem de navio. Eles trabalhavam duro limpando os milhares de pés de café a eles confiados, fazendo economia de todo o dinheiro que conseguiam ganhar, na esperança de melhorar suas condições de vida no futuro. 

De fato, com o tempo, a família Rossi conseguiu comprar e se estabelecer em um lote na periferia de uma cidade paulista e principalmente prosperar. Mais tarde chegaram a abrir um pequeno negócio para comercializar os produtos que produziam em seu pequeno sítio. Aos poucos, este comércio se tornou um ponto de referência na cidade, e eles passaram a ser respeitados e admirados pela comunidade. 

Apesar de tudo o que passaram, os Esposito nunca esqueceram das dificuldades que enfrentaram durante aquela viagem de navio. Eles sempre lembravam da epidemia de cólera que quase lhes custou a vida, e do medo e incerteza que sentiram a bordo do navio e a desilusão de ter que retornar para a Itália. 

A família Esposito se tornou um exemplo de resiliência e superação, e sua história inspirou muitas outras pessoas a lutar por um futuro melhor.

Conto de
Dr. Luiz Carlos B. Piazzetta
Erechim RS