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quinta-feira, 4 de maio de 2023

Epidemias a Bordo : Dramático Relato de um Passageiro do Vapor Remo

 


"Às duas horas da madrugada do dia 6 de setembro, no porão nº 2, nos braços de seus pais, morreu uma menina de 7 anos, que foi imediatamente jogada ao mar. Às 9 horas uma outra menina de 11 meses deixou de viver depois de ter sido hospitalizada. Assim que morreu foi jogada ao mar, na presença do médico e de alguns passageiros". 

Esta é uma das passagens mais dramáticas do livro de memórias escrito pelo passageiro da província de Modena, Cesare Malavasi, em fevereiro de 1894, poucos meses após o fim da viagem que custou a vida de 96 emigrantes italianos por uma grande epidemia. É um livro pouco divulgado pela historiografia e praticamente desconhecido do grande público. 
O vapor Remo partiu de Gênova em 15 de agosto de 1893, dois dias antes de outra tragédia da emigração italiana, o massacre de Aigues Mortes, quando aproximadamente 500 franceses furiosos massacraram alguns trabalhadores italianos acusados ​​de roubar seus postos de trabalho. 
Muitos dos passageiros do navio eram provenientes dos municípios da baixa planície da província de Modena, zona duramente atingida pela crise agrária do final do século XIX, como tantas outras em toda a Itália. No mesmo período a pobreza e a desesperança estavam presentes de norte a sul, golpeando com força todas as regiões italianas. 
Somente no ano de 1888, 415 pessoas deixaram o município de Cavezzo, província de Modena, que então, tinha uma população de 4.876 habitantes. Uma investigação oficial, realizada no ano seguinte no vizinho município de Mirandola, explica as razões deste enorme êxodo, “até então desconhecido numa terra que sempre deu aos seus habitantes o que precisavam para viver”.
As principais causas desta fuga de braços foram «a miséria e a falta de trabalho para os camponeses e operários. A maioria dos nossos camponeses, com famílias numerosas carecem de um trabalho diário seguro e lucrativo para si e para a sua família. Os nossos trabalhadores preferem emigrar na incerteza de uma renda segura, convencidos de que não encontrarão maior miséria do que têm em casa”. 
"No ano passado - escrevia o jornal mensal local, o Indicador Mirandolês, em 1889 - famílias inteiras provindas da zona rural, levando os seus poucos utensílios domésticos, partiram para Gênova, para de lá embarcarem para destinos distantes como o Brasil e Argentina. Assim também nós experimentamos pessoalmente e fomos testemunhas oculares deste flagelo deplorável da emigração, que já de muito tempo atinge muitas outras partes da Itália. Essa praga cresce cada dia mais e ameaça assumir formas contagiosas. 
Continuando o mesmo jornal "O êxodo descontrolado dessa população rural - concluiu amargamente o redator - entre os quais vimos velhos frágeis, mulheres grávidas, crianças chorando de frio e fome que, perdidas, fugiram de sua ingrata pátria e se dirigiram para o exterior, em busca de melhores destinos, sem garantia segura, formando o mais desolador dos espetáculos, que deve também ser pensado por todos aqueles que se preocupam seriamente com os interesses nacionais».
Se a miséria foi a causa das partidas, os agentes da emigração, prepostos das companhias de navegação, que com seus discursos, folhetos e brochuras tranquilizavam sobre as condições de viagem e exageravam as oportunidades oferecidas pelos países de desembarque, dissipavam as dúvidas dos incertos, escondendo muitas vezes algumas verdades muito claras àqueles que organizaram esse tráfico de homens. 
Em primeiro lugar, essa viagem muitas vezes se transformava em uma verdadeira odisseia, depois dos frequentes casos de enganos, ilícitos e abusos de poder contra aqueles que decidiram mudar de vida deixando seu país de origem.
"Do nosso Município - lê-se no jornal, em agosto de 1891 - mais de 300 pessoas já partiram este ano com a Companhia Geral de Navegação, com as passagens e alimentação pagas até o Brasil. Muitos outros preparam-se para a partida que terá lugar após a colheita no campo".
Um desses emigrantes foi Cesare Malavasi de César, autor do livro. Chegando com a esposa ao porto de Gênova, Malavasi teve que “dar uma boa gorjeta” para os carregadores embarcarem a bagagem, que tinha ultrapassado o peso permitido. 
A maioria dos emigrantes esperava o seu embarque num grande salão, sentados ou deitados no chão: «Alguns comiam, outros dormiam. Vi mulheres que, cansadas dos sofrimentos e da insônia das noites anteriores, dormiam numa espécie de sono letárgico; e criancinhas que, sem que soubessem, chupavam leite de seus seios. Havia choros, gritos, gemidos e xingamentos em mil formas, causados ​​por diferentes motivos. Fiquei maravilhado com aquela visão, com aquele espetáculo e, se bem me lembro, nunca tinha sentido essa emoção em toda a minha vida”.

A viagem 

No dia 15 de agosto, às 15h30, embarcaram os 900 passageiros, depois de uma comissão de saúde “examinar a inoculação da vacina da varíola às crianças, e examinar os outros emigrantes a granel”. O navio tinha 2.964 toneladas, com 100 metros de comprimento e 12 metros de largura, foi construído em 1891 no estaleiro Ansaldo em Sestri Ponente, com o nome de Michele Lazzaroni, encomendado pela empresa Mazzino de Gênova. Tinha 60 cabines de primeira classe e 900 lugares de terceira classe. Em 1892 o mesmo proprietário o renomeou Remo.
"Os que partiam conheciam apenas alguns detalhes da travessia, mas neste caso os viajantes foram deixados propositalmente no escuro sobre um detalhe decisivo: que o primeiro destino era Nápoles, onde uma epidemia de cólera estava ocorrendo. As reclamações de alguns passageiros mais bem informados foram repelidas, sem a menor vergonha, por um agente de emigração".
"O navio ancorou às 4,10 da tarde e pouco antes da meia-noite de 16 de agosto chegou à entrada do porto de Nápoles, onde entrou no dia seguinte. Aqui embarcaram mais 700 passageiros e uma grande quantidade de mercadorias, incluindo 400 barris de vinho. Os novos emigrantes eram vistos com desconfiança, pois além de reduzirem espaço e alimentação, aumentavam o risco de doenças.
Na noite de 17 de agosto, o navio partiu. Depois de cruzar o Estreito de Gibraltar em 21 de agosto, o navio a vapor enfrentou as ondas "imperiosas e furiosas" do oceano. "Quando apareceram no convés, quase todos estavam enjoados; ouviam-se gemidos, viam-se contorções e esforços provocados pelos fortes engasgos, de dar medo. 
"O café foi distribuído, mas quase ninguém - escreve Malavasi - pôde aproveitá-lo, e o mesmo aconteceu com todos os outros alimentos daquele dia". Após a escala em Nápoles, a comida começou a escassear e a ficar mais pobre, em meio aos protestos de passageiros. A partir de 24 de agosto, "estouraram discussões e brigas pela ocupação de assentos". Um deles envolveu Rosalia Biscuola, uma compatriota de Malavasi. Subindo ao convés para ocupar o lugar dos dias anteriores, encontrou-o ocupado "por uma mulher do sul; Rosalia implorou que ela se retirasse, mas ela recusou. La Biscuola largou suas roupas, mas a do sul as rejeitou insistentemente três vezes. Minha ousada conterrânea se irritou e então se jogou na adversária e lhe deu uma forte dose de socos. Se a sulista não carregasse uma criança nos braços, que servia de escudo, ela teria levado mais. Outros sulistas, ao mesmo tempo, se viram ajudando sua colega, e a essa altura o ousado cavezzese teria relatado o pior de tudo. Mas o destino quis que naquele momento eles também estivessem decididos a brigar pelo mesmo motivo, então o incidente passou despercebido". 
De uma pesquisa no Arquivo Histórico Municipal de Cavezzo, apura-se que em junho de 1893 o marido da fogosa Rosália, Teodorico Lugli, 42 anos, fazendeiro, havia pedido passaporte para o exterior para ir com o sobrinho Ildegardo Lugli para São Paulo no Brasil, com "certeza de emprego". 
Tendo conseguido um emprego lucrativo, Tedorico pediu a Rosália (casada em segundo casamento) e sua filha, Ernesta Lugli, para se juntarem a ele. No arquivo histórico municipal há muitos outros pedidos de passaporte desse período, incluindo o de Brunechilde Minelli, embarcado no vapor Remo junto com suas filhas Maria e Ida (ou Iva).
A viagem continuou em meio a sérias inconveniências, maus-tratos, assédio por parte dos oficiais do navio e brigas furiosas. Quatro toscanos que tentavam convencer outros emigrantes a não aparecerem para a coleta de ração foram amarrados às grandes correntes de âncora em uma prisão sob a proa.
A comida era ruim. No dia 2 de setembro, um café "muito parecido com água quente" foi servido pela manhã. Às 11h a distribuição de "macarrão pequeno impropriamente chamado, em caldo; e para o prato muito pouca carne cortada em pedaços muito pequenos. A outra ração consistia em um pouco de arroz, muito longo e que não prestava para nada, e carne salgada cozida, com acompanhamento de lentilhas”. Outras vezes serviam-se grão-de-bico, batata, atum e salada, estufado de bacalhau” e outros lixos, que, não só de mau gosto, eram também de grande prejuízo para a saúde de todos, produzindo diarreia, disenteria, com dores abdominais dos passageiros, que faziam você rastejar".
Com a aproximação da "terra prometida", uma grande agitação se espalhou pelo Remo. Todo mundo estava falando sobre a América, a poucos dias de distância. Alguns estavam começando a pensar que os sonhos de riqueza - ou pelo menos de progresso tangível em sua condição humilde, estavam prestes a se tornarem realidade; outros limitaram-se a planejar a viagem de Santos, porto de desembarque, a São Paulo, destino final de muitos emigrantes. Para economizar tempo, alguns até pensaram em pagar essa última viagem do próprio bolso, em vez de aproveitar o transporte gratuito oferecido pelas agências de viagens.

A tragédia e o retorno

O clima de grande euforia foi abruptamente interrompido em 6 de setembro, com a notícia (que mencionei no início) da morte de duas meninas, lançadas ao mar na presença de seus parentes desesperados. Mas para a carga humana do vapor Remo era apenas o começo.
"Chove muito, o frio é forte, é um desconforto geral, principalmente para mulheres e crianças. Ao anoitecer o médico foi chamado para visitar um Catanzaro gravemente doente no primeiro porão, no andar inferior. Quando o médico veio, após um exame minucioso, ele disse que era indigestão de água. Estou muito convencido de que aquele seguidor de Esculápio bem tinha entendido que era uma cólera quase fulminante, mas ele tinha boas razões, se não queria colocar apreensão a bordo! Mandou preparar conhaque, marsala e caldo para o paciente, e antes das 20h foi transportado para o hospital”.
Na manhã de 7 de setembro, foi avistado o farol de Cabo Frio, no Brasil. A navegação continuou, no sentido sudoeste, em direção ao Rio de Janeiro e à Ilha Grande. Quando este estava a apenas 70 milhas de distância, dois sulistas adoeceram "de cólera, então todos os outros foram expulsos do hospital, do qual ninguém estava gravemente doente, exceto o Catanzaro, que deixou de viver às 2 da tarde". 
Ao anoitecer, o navio parou na Ilha Grande, aguardando o exame médico. No dia seguinte, uma comissão de saúde chegou com um vaporetto, ordenou ao comandante do Remo que retrocedesse 20 milhas, para lançar o corpo do catanzarense ao mar antes de retornar ao porto. 
Aqui o vapor aguardava mais provisões, sob a ameaça dos canhões de um encouraçado brasileiro. Na noite entre 8 e 9 de setembro, um homem e uma mulher foram hospitalizados que apresentavam sinais claros de cólera. Então, pela manhã, veio a notícia que deixou todos no mais profundo desespero. O governo brasileiro decidiu rejeitar os italianos em bloco.
Não foi o primeiro navio a sofrer este destino e não foi o último. A muitos navios italianos foram negadas a possibilidade de atracar. Muitos dos nossos compatriotas morreram durante as travessias da esperança. Por exemplo, centenas de mortes por cólera entre os 1.333 passageiros do Matteo Bruzzo, rejeitados por tiros de canhão pelas autoridades uruguaias e forçados, como o Remo, a se livrar da epidemia vagando pelos mares e jogando os cadáveres no oceano. Os casos de acidentes nesses vapores eram tão frequentes que o termo "navios da morte" começou a ser usado para defini-los. O navio a vapor Carlo Raggio, em quarentena na baía de Ilha Grande junto com o Remo, teve 211 mortes por epidemia de cólera e sarampo. No mesmo navio, outros passageiros já haviam morrido de fome seis anos antes. No Remo, na noite de 9 para 10 de setembro, "...durante a noite houve também a morte do filho de um certo Primo Luppi de San Prospero (Modena). "... de manhã, no corredor, no rosto de cada um podia ler-se a dor e a tristeza; muitos estavam com as faces molhadas de lágrimas: mas era preciso resignar-se ao destino adverso”, comentou Malavasi.

O navio foi abastecido com água e comida, incluindo 13 bois, farinha, galinhas e massas. Em 12 de setembro morreu um piemontês que tinha a bordo esposa e dois filhos, um sulista de cerca de sessenta anos e um filho no terceiro porão. Então o filho de um certo Angelo Bosi de Disvetro, uma fração do Município de Cavezzo, estava em estado grave. Antes da noite Clementina Meschiari, também de Disvetro, também adoeceu com uma febre forte. "Visitada pelo médico, foi-lhe receitado um certo medicamento que desta vez lhe restaurou a saúde."
Antes do anoitecer, apareceu um barco a vapor rebocado por outro barco, trazendo medicamentos e a notícia de que, no dia seguinte, chegariam as provisões solicitadas». Às 8 da tarde, o encouraçado levantou âncoras e deixou apenas a tripulação do Remo.
Na manhã do dia 13 de setembro, uma certa Filomena Garuti, esposa de Angelo Bosi, foi levada ao hospital "por vômitos, diarréia ao mesmo tempo, o vapor Andrea Doria, que lá chegou ontem, passou perto de nós e foi ser sepultar os cadáveres que tinha a bordo; chegou também o conhecido barco a vapor que nos trouxe a a água... Uma veneziana às 16h pediu ao médico para ir visitar o marido hospitalizado; a princípio ele se opôs, depois a fez saber da morte da esposa de seu amante. Nessa época, uma certa Mazza Cleonice, de Cavezzo, adoeceu com disenteria e vômitos, e foi visitada pelo médico. Quando a noite chegou, soube-se que Garuti Filomena havia piorado e que Mazza havia sido internado”.
Em outro trecho Malvasi conta “Vi homens e mulheres empenhados em ler e meditar sobre coisas sagradas; Vi outros que se ocupavam com leituras profanas e até obscenas; mulheres que durante a maior parte do dia recitavam o rosário, e outras que desrespeitavam seus filhos e maridos, lançando contra elas os mais vilões; maridos que amaldiçoaram seus filhos e esposas por infortúnios ou desastres, ou que vomitaram as mais atrozes blasfêmias. Finalmente, ouvi a viúva do Piemonte fazer orações fúnebres junto com os seus dois filhos pequenos, em memória do pai falecido".


4. O retorno à Itália


Na noite de 13 de setembro, o Remo partiu para a Itália. Na manhã seguinte, “alguém recebeu permissão para abrir seus baús e tirar peças de roupa, porque as roupas usadas pela maioria não eram apenas imundas, mas também infestadas de insetos imundos. Mortes não faltaram... Estamos nas horas das formigas do dia 15 de setembro e uma menina encantadora de 7 anos morre de cólera; no terceiro porão outro morreu, e uma mulher ficou gravemente doente. À uma hora da tarde Mazza Cleonice deixou de viver: no hospital havia doentes e mortos. Agora o tifo e a difteria estão associados à cólera e todos com verdadeiro heroísmo estão esperando sua vez de morrer, pois acreditam ser moralmente impossível que pessoas maltratadas, esgotadas de finanças, sofram pela perda, alguns do pai, alguns do marido, quem da esposa, algum do irmão, ou do amigo, pode ter força suficiente para sobreviver a tantas calamidades". Nos dias seguintes a situação não melhorou:
São muitos os que adoecem no dia 16 de setembro e, consequentemente, são hospitalizados, e a bordo há rumores de que mais seis foram alimentar os peixes.
A uma hora da tarde pelo Comissário soube-se que tanto Garuti Filomena quanto seu filho haviam prestado a inefável homenagem à natureza. Agata Tozzini também deixou de viver pelo cólera, apesar dos esforços de seu marido Pietro Naldini da Calci, Pisa.
Havia muitas crianças doentes no terceiro e quarto porão na manhã do dia 17 de setembro, e às 10h a Meschiari Clementina, que vinha com o marido Pivetti Primo e um filho de apenas cinco meses. O marido enlutado foi ao médico, e somente a uma hora da tarde ele foi autorizado a encontrá-la. Meschiari sentiu disenteria, dores intestinais, perda de apetite, aperto no estômago e foi acometido de febre. O relógio de bordo marcava 17h quando houve uma piora na Meschiari, acrescentando, às outras doenças, também vômitos pelos quais ela teve que ser internada. Antes de se retirar, seu marido Pivetti, por ordem do médico, trouxe o bebê Tonino ao hospital para que sua mãe o amamentasse, mas logo depois ordenou que o retirasse e o levasse consigo para o beliche.
Em 23 de setembro Clementina Meschiari também morreu. Ao marido, "imerso na dor, ficou a tarefa de, dia e noite, levar todos os cuidados necessários ao filho pequeno Tonino, que, por falta de leite, ficou reduzido ao extremo".

A quarentena em Asinara e a investigação de abusos

Nos últimos dias de setembro, quando o navio se preparava para entrar no Mediterrâneo, a epidemia começou a diminuir de intensidade, mas os mortos já eram 76. Em 29 de setembro o vapor fez escala em Tenerife, depois partiu para o Asinara, onde os passageiros seriam colocados em quarentena. Nesses dias também morreu a pequena Iva Flandoli, que partiu com a mãe e a irmã para se reencontrar com o pai. O Remo chegou à ilha no nordeste da Sardenha na manhã de 6 de outubro. Seis grandes covas, com três metros de profundidade, foram cavadas em Asinara para recolher os mortos de quatro navios atingidos por epidemias (além do Remo, do Carlo Raggio, do Vincenzo Florio e do Andrea Doria). Em 7 de outubro, começou a desinfecção do navio. Os doentes foram transportados para o hospital, enquanto os passageiros saudáveis ​​foram encaminhados para desinfecção. Às 10h30 do dia 14 de outubro, outro dos navios a vapor rejeitados pelo Brasil chegou à ilha, o Vincenzo Florio, cujas 19 mortes estavam destinadas a aumentar.
Após as operações de desinfecção, o navio partiu para Nápoles, após o sinal verde de uma comissão de saúde. Antes de partir, porém, alguns passageiros do sul enviaram uma carta ao prefeito napolitano para denunciar os tratamentos sofridos durante a travessia. Enquanto isso Malavasi havia sido nomeado, junto com outros dois passageiros, para um comitê encarregado de apresentar as queixas coletadas entre os passageiros ao capitão do navio.
O navio chegou a Nápoles em 18 de outubro e de lá, no dia seguinte, partiu inesperadamente para Nisida. O prefeito, tendo recebido a carta, de fato ordenou uma investigação imediata, confiando-a à Autoridade Portuária de Nápoles. A comissão responsável interrogou vários passageiros e marinheiros. Inúmeras irregularidades e arbítrios emergiram da investigação. Um certo Luigi Pedrazzi de Cavezzo, por exemplo, havia pedido repetidas vezes ao vice-comissário do navio para poder abrir seus baús para levar roupas, sempre obtendo uma resposta negativa. Pedrazzi pediu então à sua concidadã Maria Zucchi que se apresentasse ao vice-comissário, declarando por sua vez que ele precisava abrir um baú, contando com o fato, escreve Malavasi, "que as mulheres, especialmente se são bonitas, muitas vezes são chaves poderosas que todos desbloqueiam.". O oficial concordou, mas quando Pedrazzi também apareceu para a nomeação, o vice-comissário, "amargo", desafiou-o "para um duelo, deixando-lhe a escolha das armas". Constatou-se também que alguns passageiros foram maltratados e que dinheiro e pensão alimentícia foram roubados de outros.
A comissão de inquérito realizou rapidamente o seu trabalho e na manhã de 22 de outubro as âncoras foram levantadas do cais de Nisida para Nápoles, onde desembarcaram os sulistas, e depois para Gênova. Na manhã de 26 de outubro, os últimos passageiros desembarcaram no cais. 
Se se pudesse dizer que a dramática história do Remo acabou, a miséria dos passageiros continuava. "A maioria - concluiu Malavasi desconsolado - parecia sentir alívio e refrigério ao narrar, sem a menor reticência, a miséria em que logo se encontrariam: sem pão, sem teto, na impossibilidade de ganhar um centavo, sem saber o que para saciar a fome deles, de sua esposa e de numerosos descendentes. Não são palavras, são fatos, e fico horrorizado a cada momento que meus pensamentos voam para aqueles momentos de tanta miséria, de tanto desânimo".







quarta-feira, 3 de maio de 2023

Torna Viagem: A Tragédia a Bordo do Navio Carlo R com Emigrantes Italianos

 



A Tragédia a Bordo do Navio Carlo R.

Em uma de suas tantas travessias do Atlântico, o navio a vapor Carlo R, da companhia de navegação Carlo Raggio, no dia 27 de Julho de 1893, no porto de Nápoles, recebeu a bordo cerca de 1.400 emigrantes italianos com destino à Santos, zarpando no mesmo dia em direção ao Brasil, onde deveria atracar com sua carga humana no porto do Rio de Janeiro, naquela época o único porto de entrada de imigrantes no país.
O Carlos R. com 101 metros de comprimento e 13 metros de largura, era um daqueles muitos antigos cargueiros que, a toda pressa, foram mal readaptados pelas diversas companhias de navegação italianas, como navio de transporte de passageiros, para aproveitar o boom da emigração, ligando os portos italianos com o Brasil e Argentina.
Nesse mesmo ano estava grassando uma epidemia de cólera em Nápoles, o que por si só já seria uma temeridade da companhia embarcar passageiros nesse porto. A conduta correta seria não receber a bordo passageiros provenientes de zonas epidêmicas de cólera.
Logo, no quarto dia de viagem, surgiu um caso da doença, a qual devido a superlotação e as precárias condições higiene a bordo se transformaria em uma grande epidemia quando alcançavam a linha do Equador. 
O comandante, ao invés de retroceder viagem para o lazareto de Nápoles, onde os doentes poderiam ter recebido tratamento, continuou a viagem, informando às autoridades que os casos não eram de cólera mas de gastrenterite. Um erro intencional ou não, que custou a vida de centenas de passageiros.
Durante a travessia, dezenas de casos tinham sido identificados e inúmeros já eram os mortos, transformando a embarcação em um sanatório flutuante quando chegaram ao porto do Rio de Janeiro. Este era  naquela época a parada obrigatória para todos os navios de passageiros com emigrantes que chegavam ao Brasil. Era o porto de entrada dos emigrantes.
O Carlo R não estava sozinho nesse infortúnio, pois, dois outros vapores italianos também ali estavam retidos, pelos mesmos problemas de epidemias a bordo. Eram os vapores Remo e o Vicenzo Florio, ambos abarrotados de emigrantes italianos e também com diversos mortos durante a travessia. 
As instalações portuárias do Rio de Janeiro, não tinham as mínimas condições de tratar e abrigar esses milhares de passageiros doentes ou contaminados pelo temível cólera.
O governo brasileiro, após algumas semanas, acertadamente, não permitiu atracasse e nem o desembarque de passageiros desses navios, sob pena de transformar o Rio de Janeiro na porta de entrada de uma epidemia de grandes proporções por todo o Brasil. Ainda não existia antibióticos, que é o tratamento adequado para o cólera, o qual somente apenas há alguns anos antes tinham identificado o agente bacteriano responsável. 
Os navios não obtendo a ordem para o desembarque, nem mesmo dos seus tripulantes, foram escoltados, por navios da marinha de guerra brasileira, para longe do porto, nas proximidades da Ilha Grande, no sul da costa fluminense, para a espera da decisão final.
Os três navios foram desinfetados e reabastecidos com carvão, medicamentos, água, víveres e receberam ordens de retornar para  a Itália, com toda a sua carga de emigrantes. 
Esse era o procedimento padrão, adotado internacionalmente na época, empregado em todos os portos do mundo para situações semelhantes.
Nesse episódio, somente no Carlo R., morreram 300 passageiros, obrigando as autoridades italianas a abrirem procedimento legal contra o comandante da embarcação e a empresa que o tinha fretado, ambos foram condenados.


Texto
Dr. Luiz Carlos B. Piazzetta
Erechim RS