A Polenta
O Alimento Pobre dos Nossos Avós
A polenta é, ao mesmo tempo, alimento e memória: um prato simples que atravessou séculos, transformações agrícolas e oceanos para chegar à mesa dos nossos avós e ainda hoje marcar reuniões familiares, festas e lembranças. Sua história mistura ingredientes, movimentos populacionais e adaptações regionais — e, embora o milho seja hoje o ingrediente mais associado à polenta, sua linhagem é muito mais antiga e complexa.
Origens antigas: do “puls” romano ao mingau europeu
Muito antes do milho — planta americana trazida ao Velho Mundo após 1492 — existia, na Europa e no Mediterrâneo, uma papa espessa chamada puls, feita com farro, aveia, painço ou outras farinhas. Essa papa era consumida desde o Império Romano por soldados e camponeses como alimento energético e barato. Ao longo dos séculos, diferentes farinhas foram usadas conforme a disponibilidade local; a transformação para a polenta de milho só ocorreu depois que o milho se espalhou pela Europa.
A chegada do milho e a “revolução” da polenta no Norte da Itália
O milho foi introduzido na Itália a partir das Américas e, sobretudo entre os séculos XVI e XVII, tornou-se cultivo essencial em muitas regiões do Norte — Friuli, Veneto, Lombardia, Piemonte e Valtellina — substituindo parte das culturas tradicionais. Essa transição elevou o papel do mingau de milho como alimento diário: barato, nutritivo e fácil de preparar em larga quantidade. Historiadores e chefs italianos notam que a difusão do milho provocou uma verdadeira transformação alimentar no mundo rural do norte italiano.
Variedades regionais: polenta mole, polenta dura e a taragna
Nem toda polenta é igual. Existem técnicas e farinhas que mudam textura e sabor: a polenta mole (cremosa) é servida logo após o cozimento, como um mingau; a polenta dura é deixada esfriar, cortada e grelhada ou frita; a polenta mesclada, típica de regiões montanhosas como Valtellina e Bergamo, combina fubá com farinha de trigo sarraceno (também chamada grão saraceno) e recebe manteiga e queijos locais como o Casera, resultando em textura mais rústica e sabor mais forte. A polenta mesclada reflete a agricultura de montanha e a tradição de agregar gorduras e queijos para obter maior calorias e sabor.
Técnicas tradicionais: panelão, mèstola e o gesto de mexer
A preparação tradicional, sobretudo em festas e ambientes rurais, usava o paiolo — um grande caldeirão de cobre — e uma longa colher (remo) de madeira (mèstola), já que a polenta precisa ser mexida por longos minutos para atingir a textura correta. O ritual de mexer, em família ou entre vizinhos, transformava o preparo em um momento comunitário. Hoje existem versões modernas e rápidas, mas o método clássico permanece símbolo de autenticidade.
A polenta que atravessou o Atlântico: a Itália no Sul do Brasil
No fim do século XIX, milhões de italianos emigraram para o Brasil. Muitos desses migrantes vieram do Norte da Itália, levando consigo hábitos alimentares — entre eles a polenta. No Sul do Brasil (Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná), a polenta enraizou-se com adaptações locais: uso do fubá (milho moído localmente), combinação com molhos, carnes de galinha, porco, queijos e o surgimento de preparações como a polenta frita — que hoje é popular até em bares como petisco. Pesquisas acadêmicas e reportagens gastronômicas ressaltam que a polenta transformou-se em referência da culinária ítalo-brasileira e patrimônio cultural alimentar em bairros e colônias.
Polenta na mesa e na cultura popular
Além de prato do cotidiano, a polenta teve (hoje menos) papel em festas, casamentos e almoços de domingo. Em algumas regiões italianas, pratos à base de polenta acompanham peixes de água doce, guisados de caça, ragu de carne ou simplesmente com manteiga e queijo. No Brasil, tornou-se parte da identidade ítalo-brasileira: desde a receita mais simples com manteiga até preparações mais elaboradas em restaurantes que resgatam técnicas tradicionais. Matérias jornalísticas e estudos locais mostram como a polenta funciona como elo entre memórias familiares e identidade regional.
Receitas e sugestões práticas (breve guia)
Polenta mole clássica: proporção tradicional aproximada — 1 parte de fubá para 4-5 partes de água salgada; ferver a água, adicionar fubá aos poucos mexendo sempre; cozinhar em fogo baixo por 30–45 minutos até engrossar; finalizar com manteiga e queijo ralado. (Observação: proporções variam por preferência regional e tipo de farinha.)
Polenta dura para grelhar/fritar: despeje a polenta cozida em forma, deixe esfriar e firmar; cortar em fatias e grelhar/assar/fritar; ótimo acompanhamento para carnes e embutidos.
Polenta negra ou mesclada: use mistura de fubá e farinha de trigo sarraceno; cozinhe lentamente e incorpore manteiga e queijo Casera ao final. Tradicional nas zonas alpinas.
Polenta como patrimônio imaterial e memória viva
Mais do que alimento, a polenta é símbolo de resistência e adaptação: alimento dos “pòveri” que virou prato adorado por todos, memória de jantares familiares, ponto de encontro intergeracional. Em comunidades de descendentes de italianos no Brasil, a polenta ainda é ensinada de mãe para filho, aparece em festas de paróquia e nas memórias contadas nas mesas. Estudos de antropologia alimentar e textos locais sublinham essa dimensão afetiva e identitária.