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quarta-feira, 13 de março de 2024

A Jornada de Rosalia: da Sicília ao Brasil - Uma História de Luta e Superação



Rosalia já era uma senhora na casa dos sessenta anos quando seu genro, Donato, casado com sua filha caçula, Giuditta, resolveu emigrar, seguindo o destino dos milhares de outros camponeses por todo o país. Na casa da última filha, tinha encontrado abrigo logo após a morte prematura do marido em um acidente de trabalho cinco anos antes. A Itália ainda era um país muito novo, recém-unificado no agora chamado Reino da Itália, e passava por sérias dificuldades econômicas. O Sul, onde viviam, foi assolado por vários anos de guerras e convulsões sociais, não sendo mais um lugar adequado para criar uma família. A falta de trabalho, o subemprego e a fome já rondavam muitos lares da pequena vila no interior da Sicília. Donato e Giuditta, casados há cerca de doze anos, tinham seis filhos, todos com idades abaixo de onze anos. Rosalia e seu falecido marido Giacomo, por sua vez, haviam tido quatro filhas, todas agora casadas e morando nos Estados Unidos para onde tinham emigrado alguns anos antes. Estavam distantes uma das outras, em cidades diferentes. Rosalia mantinha contato regular com elas através de cartas e sabia que todas estavam bem, que tinham inúmeros filhos, todos saudáveis e alguns já frequentando as escolas americanas.
Rosalia estava enraizada na sua pequena vila, onde era conhecida e estimada por todos, mas agora estava sem outra opção senão seguir a filha mais nova para o Brasil, destino escolhido pelo casal, para ajudá-la a cuidar dos seis netos. O genro e a filha haviam sido contratados, assim como centenas de outras famílias compatriotas, para trabalhar em uma grande fazenda de café no interior de São Paulo, na região de Ribeirão Preto. Depois de muitos dias de viagem de navio, chegaram ao porto de Santos e dali até um local de Ribeirão Preto, não muito distante da fazenda, o trajeto até ali foi feito de trem. A grande plantação de café pertencia a um único proprietário, o qual tinha o título de Barão e, na época da escravidão, havia tido mais de seiscentos escravos. Foi justamente para uma casa bastante humilde desses antigos trabalhadores que a família de Rosalia foi alojada. Na verdade, era um velho casebre, cujo piso de terra batida e paredes de barro delimitavam quatro pequenos aposentos com janelas. Alguns móveis toscos completavam a mobília. Apesar de serem pobres na Itália, o que encontraram naquela fazenda deixou todos muito desanimados. Perceberam que tinham deixado de trabalhar para um dono de terras na Itália para depender de outro patrão em outro país. O marido de Giuditta havia assinado um contrato de trabalho de quatro anos, para ter direito à passagem gratuita e a todos os traslados da Itália até a fazenda. Esse contrato, que incluía todos os membros da família, explicitava que eles ficariam responsáveis pelos cuidados de limpeza de mil pés de café, deviam também ajudar na colheita e transporte dos grãos de café até os grandes terreiros de secagem. Tinham permissão para cultivar uma pequena horta e criar alguns animais pequenos em volta da casa. Eram acordados bem cedo todas as manhãs, com o som de um grande sino que ficava não longe da casa de um dos capatazes. Deviam se dirigir a pé por alguns quilômetros, subindo e descendo ladeiras no meio de longas filas de cafeeiros, até o local onde, às seis horas, iniciavam o trabalho. O almoço e as vezes a água deviam levar de casa. Tinham uma breve pausa de meia hora para fazer a refeição à sombra de algum pé de café. Como a fazenda ficava longe de qualquer cidade, o proprietário mantinha um grande armazém para suprir seus empregados. Geralmente, o preço cobrado era muito mais alto do que os praticados no comércio das cidades. Quando chegavam os dias de pagamento, os imigrantes percebiam que haviam muitos descontos com a diminuição nos valores que deviam receber. Somando a precariedade das instalações onde foram alocados, este procedimento desagradou muito a todos eles, mas, presos a um contrato que só favorecia o patrão, não podiam abandonar a propriedade. Um imigrante só podia deixar a fazenda após o período combinado de quatro anos e ainda após quitar todas as dívidas contraídas com o patrão, sob pena de ter que ressarcir o fazendeiro de todas as despesas de viagem da família, o que para eles era impossível. A essas despesas, muitas vezes, eram somados gastos com médicos, remédios ou internações hospitalares, que o fazendeiro pagava e depois descontava dos seus empregados. Donato e Giuditta compravam no armazém da fazenda somente o estritamente necessário e faziam todo esforço possível para não contraírem dívidas, a fim de um dia poderem deixar a fazenda, mas isso ainda estava longe de acontecer.
Rosalia, em sua juventude, havia aprendido com sua avó paterna, uma reconhecida curandeira, a arte de tratar doenças e ferimentos usando chás, poções e emplastros de ervas recolhidas da natureza. Também com sua avó, aprendeu a arte de "arrumar ossos" e também trazer ao mundo os bebês, não só da sua vila, mas também daquelas mais próximas. Ela tinha o dom natural de curar enfermos com suas ervas e isso pôde demonstrar centenas de vezes nos anos em que morou na fazenda. Muitos imigrantes moradores na grande propriedade recorriam à velha Rosalia para curar seus males, aliviar seus sofrimentos, costurar seus ferimentos ou mesmo reduzir suas fraturas. Ela via nessa sua atividade uma espécie de sacerdócio provido por Deus e, por isso, nunca cobrava pelos seus trabalhos, mas aceitava doações e presentes dos seus pacientes, o que constituía uma verdadeira fonte de recursos para a família. Na fazenda ainda morava morava uma antiga escrava, que sempre tinha exercido este trabalho de curandeira, porém, agora, com quase cem anos de idade, doente sem poder enxergar direito e não podendo mais caminhar, não tinha mais condições de tratar ninguém.  Rosalia, nas suas poucas horas vagas, a visitava com frequência e com ela foi aprendendo a reconhecer as centenas de ervas brasileiras, as suas propriedades e indicações terapêuticas, agregando ao conhecimento que ela tinha trazido da Itália. A jovem esposa de um dos capatazes, que também compreendia bastante de italiano, servia de intérprete entre Rosalia e a velha curandeira.
Aos poucos, a família foi economizando e guardando todo o dinheiro que conseguiam ganhar para a tão sonhada liberdade. Nos domingos após a missa na capela da fazenda, e também quando conseguiam alguma folga, iam a pé até a então pequena cidade de Ribeirão Preto, a mais próxima da fazenda. Nessas visitas, fizeram vários amigos na localidade, imigrantes como eles, que os ajudaram com muitas informações valiosas. Além de comprarem por melhor preço as coisas que faltavam, evitando o armazém da fazenda, aproveitavam para sondar os preços dos terrenos que estavam à venda, especialmente aqueles maiores e um pouco mais afastados do centro. Foi assim que, um dia, quando já haviam se passado quatro anos desde a chegada na fazenda, Rosalia, que sabia ler e escrever, muito comunicativa e astuta, ficou sabendo através de uma amiga, que também se tratava com ela, de um negócio de ocasião, uma pequena chácara com ótima casa e belo arvoredo, não muito afastada do centro da cidade. O proprietário, um imigrante italiano, estava querendo vender para voltar para a Itália, pois sua esposa não aguentava mais ficar no Brasil longe de seus familiares. O preço e as condições de pagamento eram bastante convidativos e cabiam perfeitamente dentro das economias da família. Donato e Giuditta ao saberem não perderam tempo, solicitaram a permissão de se ausentar por um dia da fazenda, o que não foi negado pelo capataz, desde que fosse descontado do pagamento. Foram até Ribeirão Preto e fecharam a compra da chácara, pagando quase todo o valor em dinheiro vivo e o restante em duas prestações. Depois de dois meses, em uma manhã ensolarada, deixaram definitivamente a fazenda após se despedirem dos amigos e do capataz geral.
Estabeleceram-se em Ribeirão Preto e a primeira providência de Donato foi arrumar um trabalho que pudesse garantir o sustento da família. Analfabeto, encontrou um emprego condizente nas turmas de reparo da rede ferroviária, com possibilidades de melhorias de posto e vencimentos com o passar dos anos. Com alegria, aceitou a oportunidade e trabalhou a vida toda na rede ferroviária, no final alcançando o posto de chefe geral das turmas de manutenção. Giuditta, desde menina hábil costureira e uma das filhas mais velhas, abriu um salão de costuras e reparos na própria casa. Com o tempo, a freguesia foi aumentando e o nome de Giuditta e sua filha Maria Augusta tornaram-se sinônimos de boa costura em Ribeirão Preto, costurando para a alta sociedade local. Rosalia continuou com seu trabalho de parteira e de curar os enfermos, se tornou uma afamada curandeira e arrumadora de ossos, muito requisitada pelos membros da grande colônia italiana da região, mas não só, inclusive jogadores de times de futebol a procuravam com frequência. Com seu trabalho sério chegou a atrair até a alta sociedade local que a procurava em massa. Quando nona Rosalia, como era conhecida, faleceu, já com quase noventa anos, teve um dos maiores funerais vistos em Ribeirão Preto. Em vida, entre vária honrarias, recebeu o título de cidadã honorária. Após a morte seu nome foi dado para uma das ruas da cidade e para uma pequena praça, próxima à casa onde viveu, na qual foi erguido um belo busto de bronze, que a retrata com perfeição, uma homenagem da municipalidade pelos importantes serviços prestados. Seu túmulo logo tornou-se local de peregrinação durante todo o ano e, por ocasião de Finados, fica até hoje repleto de flores e velas, recebendo uma verdadeira multidão de admiradores que formam longas filas para homenagea-la com uma oração.


segunda-feira, 25 de setembro de 2023

As Bênçãos de Marietta, a Trevisana

 





No coração do Rio Grande do Sul, na progressista Colônia Dona Isabel, em 1890, a vida fluía em harmonia com a natureza e as tradições ancestrais. Era um lugar onde as histórias eram tecidas nos campos ondulantes e os segredos da Medicina sem Médicos eram passados de geração em geração.
Maria Trecchiana, uma mulher de cabelos prateados e olhos sábios, era a curandeira mais respeitada da comunidade. Sua sabedoria era conhecida em toda a região, e sua reputação se estendia além das fronteiras da colônia. Maria tinha uma aura de serenidade que inspirava confiança. Ela era o farol da colônia, uma referência de cura e compaixão.
A já idosa Giuseppina, mais conhecida por todos como nona Pina, a matriarca da família Guirosani, era uma das pessoas mais queridas da colônia. Sua casa, uma modesta construção de madeira, era um local de encontros e histórias compartilhadas desde o tempo em que seu marido ainda era vivo. Ela tinha uma memória prodigiosa e podia relembrar com detalhes os relatos de seus antepassados sobre a jornada da Itália até a colônia.
Mas um dia, uma sombra de preocupação pairou sobre a colônia quando nona Pina adoeceu gravemente. As notícias de sua condição se espalharam rapidamente, criando uma aura de apreensão entre os colonos. Ela era desde que chegou a colônia, uma figura central na comunidade, uma verdadeira matriarca, e sua presença era como um pilar que sustentava a todos.
A família Guirosani, angustiada, procurou desesperadamente ajuda para a nona. Não havia hospitais e muito menos médicos na colônia,  ou mesmo próximos a ela, mas todos sabiam que Maria Peruchin, que tinha o apelido de Marietta, a trevisana, devido a sua procedência na Itália, era a única capaz de trazer alívio às dores da matriarca. Com os olhos cheios de lágrimas, eles procuraram a curandeira, implorando por sua ajuda.
Maria aceitou a missão com gratidão, pois era seu dever honrar a tradição de seus antepassados vênetos, que a guiara por toda a vida. Prescrever ervas para curar doenças e arrumar ossos quebrados sempre fôra um dom passado de mãe para filha na sua família. Ela  saiu à procura de certas espécies curativas e começou a preparar uma poção com as ervas colhidas nas encostas da linha Zamith. Seus gestos eram precisos e cheios de devoção, misturando conhecimento ancestral com a fé nas bênçãos da natureza. Durante o processo de procura das plantas corretas, proferia palavras que ninguém compreendia e rezava pedindo ajuda à Deus e aos seus Santos protetores. No final da tarde  ao administrar a poção, ela viu um vislumbre de esperança nos olhos frágeis de nona Pina.
Noites e dias se passaram, com Marietta ao lado da paciente. Ela rezou e benzeu a paciente por diversas vezes, buscando força nas tradições que haviam sido mantidas vivas na colônia. Os Guirosani se reuniam em vigília, compartilhando histórias sobre sua matriarca e mantendo a chama da esperança acesa.
A paciência de Marietta e a determinação dos familiares de Pina foram recompensadas. Gradualmente, nona Giuseppina começou a se recuperar. Seu sorriso fraco, como o primeiro raio de sol após uma tempestade, iluminou a sala escura. A comunidade inteira celebrou a recuperação da matriarca.
Maria Trecchiana não queria recompensa ou reconhecimento, pois sabia que era apenas um elo na corrente de cuidado e tradição que ligava as pessoas da colônia. A cura de nona Giuseppina não era apenas a vitória de uma paciente, mas um testemunho do poder das bênçãos da natureza e da sabedoria transmitida pelas gerações.
Com o tempo, a história de Maria Trecchiana e nona Pina se tornou uma lenda na Colônia Dona Isabel, um lembrete constante do valor da compaixão, da fé e das tradições que uniam aquelas almas gentis em um lugar tão especial. E assim, no coração do Rio Grande do Sul, a Medicina sem Médicos continuou a florescer, fortalecendo os laços entre as pessoas e honrando os ensinamentos de seus antepassados. Era uma história de resiliência, tradição e compaixão que ecoaria eternamente nas montanhas e vales daquelas terras especiais.



segunda-feira, 11 de abril de 2022

A Prática Médica nas Colônias Italianas do Rio Grande do Sul

Benzedeira

 


Durante todo o período imperial o Brasil teve uma grande escassez de médicos com formação universitária, que continuou mesmo ainda quando já no período da república, e foi especialmente mais sentida no interior da província do Rio Grande do Sul, onde estavam instaladas as diversas colônias de imigrantes italianos.

Nos primeiros anos da imigração, quando alguém adoecia era tratado por membros da própria família, geralmente os mais idosos, usando chás e outros procedimentos apreendidos ainda quando na Itália, como algumas simpatias, e transmitidos oralmente nas várias gerações. Quase sempre se tratava de pequenos ferimentos, fraturas de costelas, intoxicações alimentares, doenças virais da infância ou mesmo as causadas por picadas de animais peçonhentos. 

Quando o doente não melhorava ou a doença era mais grave como uma grande fratura de membros, eram levados para serem tratados pelo curandeiro, a benzedeira ou os chamados "giustaossi".


Curandeira



Mesmo anos depois, quando até já existiam médicos, se bem que estes estavam quase muito sempre distantes das colônias, o imigrante ainda continuava procurando o atendimento dos curandeiros, giustaosssi ou benzedeiras no lugar daquele do médico. Tinham muito mais confiança nos curandeiros do que nos verdadeiros médicos. Muitas vezes essa preferência era devido ao alto preço das consultas e dos tratamento que os médicos praticavam.

Outro fator que prolongou a escassez de médicos no estado é que o Rio Grande do Sul demorou mais que outros estados brasileiros para ter uma escola de medicina. Os poucos médicos formados que existiam, e somente se concentravam nas cidades maiores, eram quase sempre italianos, diplomados em universidades da Itália e que, por diversos motivos, resolveram seguir o caminho dos imigrantes para darem início as suas vidas profissionais.

A maioria deles depois de uma quase sempre breve experiência de trabalho no Brasil, retornavam para a Itália após alguns anos.

Os imigrantes italianos, principalmente pela ignorância, eram bastante sugestionáveis e místicos, acreditando em magias e benzimentos executados por charlatães, não só para o tratamento dos seus males como também para apaziguar o clima, obter boas colheitas, proteger os animais de doenças e as culturas de pragas. 

Para ele as relíquias religiosas e também as imagens de santos tinham o poder de curar doenças e aliviar sofrimentos, mesmo as doenças físicas. Nos altares das benzedeiras era comum a presença de inúmeras imagens de santos da igreja católica (mais tarde associavam divindades do candomblé trazidas pelos negros) que, segundo esses curandeiros, ajudavam no processo de cura.

Nas colônias italianas do Rio Grande do Sul, todas localizadas em extensas regiões remotas do estado, desprovidas de estradas, circundadas por uma floresta densa, onde um vizinho morava bem distante do outro, nos primeiros anos os imigrantes italianos tiveram que enfrentar muitas dificuldades. Entre elas a necessidade de lidar com as doenças (muitas vezes já chegavam doentes após a longa viagem desde a Itália), as epidemias, a escassez de quase tudo e também com a insegurança.

Com a falta de médicos o recurso foi apelar para as benzedeiras e curandeiros, que já eram muito procurados pelos habitantes locais, os caboclos, negros e mestiços, que desde sempre se valiam deles nos momentos de dor.

Tomando as devidas proporções ainda nos dias de hoje essas crendices são muito populares entre os seus descendentes.

Pouco se sabia sobre as doenças e mesmo sobre o próprio corpo. Assim, a busca para a cura se fazia através de orações e de rituais trazidas do velho continente. Os imigrantes se tratavam na própria casa com benzimentos, chás e infusões aprendidas ainda na Itália ou com com os nativos brasileiros.

Entre os imigrantes italianos, quase sempre eram as mulheres que se destacavam nessas práticas de cura. Eram elas as responsáveis pelas rezas, pela escolha das ervas adequadas à cada doença e ministrarem os chás e infusões aos enfermos. 

As mulheres, principalmente as mais velhas sempre exerceram um papel fundamental como verdadeiras guardiãs da memória da própria família e de outros membros do grupo. Eram elas as responsáveis por passar adiante as tradições.

Muito raramente este trabalho estava nas mãos dos homens.



Dr. Luiz Carlos B. Piazzetta
Erechim RS