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domingo, 26 de maio de 2024

Raízes de Esperança: A Odisseia dos Bottarello





Desespero e Esperança


No final do século XIX, a Itália enfrentava uma crise profunda. A unificação recente do país não havia sido capaz de resolver as desigualdades sociais e econômicas que afligiam o povo. No Vêneto, em particular, a situação era desesperadora. As terras férteis, uma vez prósperas, estavam agora exauridas e incapazes de sustentar as famílias que delas dependiam. A importação de grãos de outros países como Rússia e Estados Unidos, contribuíam para o desestímulo da ainda atrasada agricultura do país. Proprietários rurais desistiam de plantar, vendendo as terras, e desemprego era crescente, a fome constante e esses abandono do campo levavam muitos a considerar alternativas extremas para garantir a sobrevivência.
Na frazione Bosco, no comune de Vidor, vivia a família Bottarello. Carlo Bottarello, um homem de 28 anos, trabalhava arduamente como mezzadro, dividindo os escassos rendimentos de suas colheitas com o proprietário das terras. Ao seu lado estava Marietta, sua esposa de 27 anos, e seus quatro filhos: Carmela, de 8 anos; Domenico, de 6; Rinaldo, de 4; e Giuditta, de apenas 2 anos. Também faziam parte da família os pais de Carlo, o nono Matteo, um experiente agricultor e artesão de pouco mais de 50 anos, e nona Maria, uma mulher de 48 anos que trazia a sabedoria e a força dos anos.

A Decisão Dolorosa


Os Bottarello enfrentavam uma situação insustentável. As colheitas eram insuficientes e a maior parte do que conseguia colher tinha que dar para o proprietário da terra onde trabalhava e a fome começava a rondar a casa. As crianças, com rostos pálidos e olhares famintos, eram um lembrete constante das dificuldades. A família fazia somente uma refeição ao dia, que quase sempre consistia de polenta com alguma erva para dar sabor e para as crianças com um pouco de leite. Carne somente comiam se por sorte tivessem caçado alguns pássaros. Em muitas famílias vizinhas e também na de Carlo, inúmeras vezes a polenta era servida sem acompanhamento e sobre a mesa Marietta amarrava uma sardinha, ou muito raramente um pequeno pedaço de salame, com um longo  barbante, e cada um ao seu turno tocava na iguaria com o seu pedaço de polenta para dar um pouco de sabor. Situação difícil, dramática e insustentável. Carlo, desesperado por uma solução, sem dinheiro para comprar passagens de navio, ouviu rumores sobre a possibilidade de emigrar para o Brasil. O governo brasileiro sofrido de falta de mão de obra e em uma tentativa de povoar suas terras, oferecia passagens gratuitas para famílias dispostas a cruzar o Atlântico em busca de uma vida melhor.
Após semanas de deliberação e noites insones, Carlo decidiu que não havia outra opção. A família inteira reuniu-se ao redor da mesa de madeira maciça, marcada pelo tempo e pelo uso. As lágrimas escorriam pelo rosto de Marietta enquanto segurava firmemente a mão de Carlo. Nono Matteo, com olhos cansados, mas resolutos, concordou com a decisão, sabendo que era a única esperança de um futuro para seus netos.

A Despedida e a Jornada


A manhã da partida foi marcada por uma despedida comovente. Amigos e vizinhos reuniram-se para dizer adeus, compartilhando abraços e lágrimas. Até o pároco Don Luigi, amigo de infância de Matteo com o qual compartilhou os bancos escolares, apareceu para abençoar o grupo. A pequena vila de Bosco testemunhou a partida dos Bottarello com um misto de tristeza e esperança.
A viagem começou com um trajeto de trem de Cornuda até Gênova. Para a maioria deles, era a primeira vez em um trem, e a experiência foi tanto excitante quanto aterrorizante. Ao chegarem a Gênova, insones e cansados pelas inúmeras paradas, depararam-se com o grande porto, um lugar movimentado e agitado, repleto de sons e odores desconhecidos. Esperaram ansiosos no cais pelo navio que os levaria ao Brasil, o Duca di Galliera.

O Oceano Traiçoeiro


O embarque foi rápido, e as condições encontradas a bordo eram precárias. A superlotação era evidente, e os Bottarello mal encontraram um espaço para se acomodar. Nos porões úmidos e mal ventilados o cheiro de corpos suados e do mar misturava-se, criando uma atmosfera opressiva. Durante a travessia, enfrentaram tempestades violentas que balançavam o navio de maneira assustadora, fazendo com que muitos passageiros, incluindo os filhos mais novos de Carlo, ficassem doentes. O terror causado pelo medo de um naufrágio e morrerem no meio daquelas tormentas, fazia com que muitas mães perdessem o leite, o que levava ao óbito de muitos lactentes. 

Novo Mundo, Novos Desafios


Após semanas de tormento no mar, finalmente avistaram o porto do Rio de Janeiro. A chegada foi um alívio, mas os desafios estavam longe de terminar com o desembarque. Passaram quatro dias abrigados na Hospedaria dos Imigrantes, onde foram alimentados, registrados e receberam algumas orientações básicas.
Passado os quatro dias, a próxima etapa da jornada de todo o grande grupo de imigrantes foi outra viagem de navio até o Rio Grande do Sul. No porto de Rio Grande, foram acomodados provisoriamente em grandes barracões de madeira, aguardando os barcos menores que os levariam rio acima até a Colônia Caxias. Após dez dias de angustiante espera, embarcaram em pequenos barcos fluviais, cruzando a Lagoa dos Patos contra a correnteza e passando por Porto Alegre sem desembarcar.

A Caminho da Colônia


Com os pequenos barcos subiram pelo rio Caí até a pequena cidade de São Sebastião do Caí, onde finalmente desembarcaram. Após um dia de descanso, iniciaram a difícil subida da Serra a pé, em grandes carroças e no lombo de mulas. A subida era árdua, e os funcionários do governo brasileiro abriam caminho estreitos com foices e facões para o grupo avançar. A selva entorno era densa e implacável, com árvores gigantescas e dela saíam sons de animais que traziam muito medo às crianças. A jornada parecia interminável.

Nova Vida na Colônia Caxias


Ao chegarem na Colônia Caxias, foram acomodados provisoriamente até que tomassem conhecimento do lote que lhes fora destinado. A construção de um abrigo de pau a pique foi a primeira tarefa na nova terra, um trabalho exaustivo, mas necessário. Os contínuos sons desconhecidos da floresta, urros e gritos dos animais, como bandos de macacos e periquitos causavam medo e inquietação. Muitas vezes, durante a noite, se ouviam os urros de animais ferozes que rodavam os frágeis  casebres, deixando todos amedrontados.
Os primeiros meses foram de desânimo e sofrimento. O frio intenso das noites serranas e a solidão no meio da mata virgem eram opressivos. Sem conforto religioso de padres ou de médicos, se sentiam abandonados no meio do nada, estavam realmente isolados do mundo. Mas a fé no futuro e a resiliência os mantiveram firmes. Limparam uma parte do terreno para o primeiro plantio, semearam milho e trigo, enfrentando as adversidades com determinação.

Progresso e Sucesso


Os anos passaram, e a família Bottarello, com trabalho árduo e perseverança, começou a ver os frutos de seus esforços. Aos poucos construíram uma nova casa sólida de madeira, um símbolo de sua melhoria progressiva. Após alguns anos, finalmente alcançaram o sucesso.
A família agora prosperava em suas terras, um contraste marcante com os dias de fome e desespero na Itália. Carlo e Marietta, com seus filhos crescidos, olhavam para trás com orgulho e gratidão, sabendo que a difícil decisão de emigrar havia sido a chave para um futuro melhor.
A jornada dos Bottarello era uma história de sacrifício, resiliência e triunfo, um testemunho do espírito indomável daqueles que buscaram um novo começo em terras distantes.

As Raízes no Novo Mundo

A vida na Colônia Caxias, agora bem estabelecida, florescia em meio ao trabalho árduo e ao espírito comunitário dos imigrantes. Carlo e Marietta não apenas cultivavam suas próprias terras, mas também ajudavam novos colonos que chegavam. Nono Matteo tornou-se uma figura respeitada na comunidade, compartilhando suas habilidades artesanais e ensinando técnicas de cultivo aos jovens.
Carmela, Domenico, Rinaldo e Giuditta cresceram em um ambiente de desafios e aprendizagens constantes. A infância difícil deu lugar a uma juventude marcada pelo trabalho, mas também por um sentido profundo de comunidade e pertencimento. Carmela, com seu espírito resiliente, começou a ensinar as crianças mais novas da colônia, contribuindo para a educação e a formação das novas gerações. Domenico, seguindo os passos do pai, tornou-se um agricultor habilidoso, enquanto Rinaldo demonstrava um talento nato para a carpintaria, ajudando o nono Matteo na oficina. Giuditta, a mais nova, florescia como uma jovem inteligente e curiosa, sempre pronta a ajudar nos afazeres diários.

A Comunidade e a Fé

A fé sempre foi um pilar para a família Bottarello, e com o tempo, a comunidade conseguiu construir uma pequena capela de madeira. A igreja tornou-se um ponto central na vida dos colonos, um lugar para as celebrações religiosas, casamentos, batismos e encontros comunitários. Nona Maria, com sua devoção inabalável, era frequentemente vista cuidando da capela, arrumando as flores do altar e organizando os encontros religiosos.

Desafios Renovados

Embora a vida estivesse se estabilizando, novos desafios surgiam constantemente. O clima imprevisível do sul do Brasil, com suas chuvas torrenciais e secas intensas, testava a resiliência dos colonos. Carlo, sempre preocupado com o bem-estar da família, investiu na diversificação das culturas e na criação de pequenos animais, garantindo uma fonte de sustento mais segura.
As dificuldades de comunicação e transporte também eram obstáculos constantes. As estradas de terra e as longas distâncias até os centros urbanos dificultavam o acesso a mercados e recursos médicos. A comunidade, porém, mostrou-se inventiva e colaborativa, organizando-se em grupos para enfrentar esses desafios. Carlo liderava muitas dessas iniciativas, sua experiência e liderança eram amplamente reconhecidas e valorizadas.

O Legado dos Bottarello

Com o passar dos anos, a família Bottarello tornou-se um exemplo de sucesso e perseverança. Os campos cultivados com milho e trigo expandiram-se, e a terra antes selvagem agora florescia com vinhedos e árvores frutíferas. A grande casa de madeira de três pisos e um grande porão de pedras, construída com tanto esforço, era um símbolo de estabilidade e prosperidade.
Carlo e Marietta, agora já idosos, olhavam com orgulho para seus filhos, que começavam a formar suas próprias famílias. A comunidade crescia, e a integração entre os imigrantes e os habitantes locais se fortalecia, criando uma sociedade rica em diversidade cultural e cooperação.

Um Novo Ciclo

Enquanto a colônia continuava a se desenvolver, a chegada constante de novos imigrantes renovava o espírito pioneiro da região. Carlo e Marietta, agora avós, recebiam com alegria e hospitalidade aqueles que, como eles, buscavam uma nova vida. Matteo, apesar da idade avançada, continuava a ser uma presença sábia e encorajadora, enquanto nona Maria permanecia uma figura central de fé e suporte na comunidade.
A história dos Bottarello tornou-se uma inspiração para todos ao seu redor. A pequena capela de madeira, construída com tanto esforço, agora abrigava celebrações vibrantes, refletindo a alegria e a gratidão de uma comunidade que superou inúmeras adversidades.

Epílogo: A Promessa Cumprida

Quinze anos após a chegada ao Brasil, a família Bottarello olhava para o horizonte com a certeza de que seu sacrifício havia valido a pena. A terra brasileira, com suas promessas e desafios, havia se tornado um lar. Os descendentes dos Bottarello continuam a cultivar a terra com a mesma paixão e dedicação que seus antepassados trouxeram do Vêneto.
Carlo e Marietta, sentados na varanda de sua grande casa, assistiam ao pôr do sol, refletindo sobre a jornada que os trouxe até ali. A lembrança da Itália ainda vivia em seus corações, mas agora se misturava com o orgulho e a realização de terem construído um futuro melhor para sua família no novo mundo. A promessa de uma vida melhor havia sido cumprida, e a saga dos Bottarello se entrelaçava para sempre com a rica história da colônia Caxias, um testemunho eterno de coragem, fé e perseverança.