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sexta-feira, 12 de dezembro de 2025

Sob o Céu do Deserto: A Saga de um Imigrante Italiano no Espírito Santo (1877)

 


Sob o Céu do Deserto: A Saga de um Imigrante Italiano no Espírito Santo (1877)

Giuseppe Bellandi jamais esqueceria o dia em que o Conte Verde levantou âncora no porto de Gênova. Era início de junho de 1877, e a névoa que pairava sobre o mar parecia ter saído dos pulmões aflitos dos que partiam. Havia nos olhos dos emigrantes o peso do que deixavam: as vinhas secas da Lombardia, os campos lavrados por gerações, a voz da mãe no pátio, chamando os filhos para o almoço com a mesma cantilena há décadas. Tudo isso ficava para trás, consumido pelas caldeiras do navio e pela promessa de terras tropicais do outro lado do mundo.

A travessia foi longa, e os dias se arrastaram sob o balanço constante do Atlântico. Quando o navio cruzou o Equador, o calor tornou-se insuportável. A madeira dos porões rangia com a umidade, e os passageiros, amontoados como sardinhas, suavam febre e esperança. Alguns adoeceram. Outros rezavam. Giuseppe apenas observava. Aprendia a suportar — o calor, a saudade, o desconhecido.

Ao alcançar o porto do Rio de Janeiro, foi tomado por um espanto silencioso. A cidade não se assemelhava a nenhuma vila italiana que conhecia. Era como se a selva houvesse engolido as construções humanas e deixado que a natureza se infiltrasse por entre as casas, os becos e os morros. Montanhas verdes dominavam o horizonte, e o sol se debruçava sobre o mar com a autoridade de um imperador. Mas não havia tempo para contemplações.

Poucos dias depois, embarcou novamente — desta vez em uma embarcação menor, singrando a costa em direção ao norte. O destino era o Espírito Santo, onde se espalhavam colônias de imigrantes que haviam chegado antes. Vitória parecia um porto esquecido entre a vegetação densa e o mar esverdeado. Ali, os recém-chegados eram desembarcados como fardos e embarcados outra vez em canoas e carretas, rumo ao interior.

Foi assim que Giuseppe conheceu o Deserto. Um nome impróprio para uma quase esquecida localidade daquela província, onde tudo era excesso: o mato, o calor, os mosquitos, os sons desconhecidos da mata. Recebeu um lote de terra — vinte e cinco alqueires, diziam, parte mata virgem, parte terra nua. Não havia casas, nem estradas. Apenas clareiras abertas a golpes de machado, onde as famílias erguiam, com as próprias mãos, seus primeiros refúgios.

Nos meses que se seguiram, ele redescobriu o corpo. O lombardo de mãos finas tornou-se colono de calos duros. Carregava toras, limpava raízes, queimava capoeira, plantava mandioca e milho, mas era o café que despertava sua esperança. Diziam que aquela terra quente e avermelhada fazia os grãos vingarem como ouro. Bastava esperar. Bastava resistir.

O clima, no entanto, era um adversário constante. A umidade grudava nas roupas e na pele. O céu desabava sem aviso. As noites eram preenchidas por ruídos que nenhum homem europeu poderia nomear com segurança: uivos, coaxos, estalidos. A comida era simples e estranha. Giuseppe sentiu falta do pão e do vinho; em seu lugar, comia mandioca, bananas, feijão grosso e carne de sol. Levou semanas até que o estômago aceitasse o novo cardápio. Sentia-se exilado do próprio paladar.

Mas a natureza também oferecia fartura. As árvores carregavam frutas de nomes impossíveis. As caçadas rendiam mais do que prazer: eram sobrevivência. Em pouco tempo, aprendeu a reconhecer as aves — galinhas do mato, perdizes, marrecos. E animais que pareciam saídos de um pesadelo: serpentes gigantes que se arrastavam nas sombras, bichos-preguiça do tamanho de bezerros, onças que espreitavam à distância, sem se aproximar. A floresta não era inimiga, mas tampouco se deixava domar facilmente.

Na pequena colônia, não havia lugar para o isolamento. Italianos, alemães, franceses, suíços, portugueses e negros partilhavam os mesmos temores e a mesma teimosia. Falavam línguas diferentes, mas lavravam o mesmo chão. Giuseppe encontrou ali uma fraternidade rústica, fundada na necessidade. Construíram juntos uma capela. Nas noites de domingo, rezavam em uníssono, cada um em seu idioma, como se Deus soubesse escutar todos ao mesmo tempo.

O tempo passou, e com ele vieram os primeiros sinais de progresso. Os cafezais cresceram, e com eles a sensação de que a terra, enfim, retribuía o esforço. As mãos de Giuseppe já não eram as mesmas que haviam apertado as de sua mãe na partida. Carregavam cicatrizes, mas também firmeza. O medo transformara-se em método. O cansaço, em propósito.

Na véspera do 25 de março, preparavam uma celebração. Seis dias de festa, missas, cantos e mesas fartas. Haveria caça em abundância, prometeram os mais velhos. Era o modo que haviam encontrado de lembrar a todos que, embora estivessem longe de casa, não estavam sozinhos. Sob o céu inclemente do Deserto, construíam um novo mundo com suor, silêncio e saudade.

Giuseppe ainda sonhava com as vinhas da Lombardia. Mas quando abria os olhos e via os cafezais verdes cortando o horizonte, compreendia que aquele pedaço de Brasil, bruto e ardente, era agora também seu lar.

Décadas se passaram desde aquele desembarque silencioso em Vitória. O que antes era mato e promessa virou terra firme. Onde havia sombra e dúvida, ergueram-se colunas de pedra e de história. As árvores cresceram junto com os filhos, e os filhos deram filhos, e a casa de madeira se tornou casa de alvenaria, mas sem perder o cheiro de lenha e memória.

Giuseppe envelheceu devagar, como a terra que aprende os passos de quem a cultiva. Já não manejava a enxada, mas gostava de caminhar entre os pés de café, sentindo a aspereza das folhas, observando os galhos curvados pelo peso dos frutos maduros. A colônia prosperava. Os nomes italianos se misturavam aos nomes alemães, franceses, suíços, portugueses. E as crianças já falavam outra língua, ou muitas ao mesmo tempo — mas carregavam, no jeito de olhar, a marca do imigrante.

Ele nunca voltou à Itália. Não por falta de saudade, mas porque entendeu, muito cedo, que a travessia que fizera era definitiva. Havia cruzado não apenas o oceano, mas uma linha invisível entre passado e porvir. A vida de antes seguia em cartas, em lembranças, em sonhos. Mas o presente — e tudo o que ainda germinaria — estava ali, sob os céus estranhos do Brasil.

Nos seus últimos anos, pedia para sentar-se à varanda ao entardecer, de onde podia ver a lavoura e, ao longe, o campanário da capela. Gostava do som dos sinos, dos pássaros pousando no terreiro, do cheiro de terra molhada após a chuva. Às vezes cochilava e, ao acordar, confundia o tempo: chamava pelos irmãos que haviam ficado na Itália ou perguntava se já era tempo de colher as uvas. Aos poucos, os dois mundos que habitavam dentro dele começaram a se fundir.

Morreu numa tarde calma, cercado por filhos e netos. Foi enterrado com suas botas de couro, as mesmas do primeiro plantio, ao lado da mulher que conhecera naquela terra nova e fértil. Sobre seu túmulo, plantaram uma muda de café — como se a vida dele continuasse ali, em silêncio, florescendo.

Hoje, entre os sulcos avermelhados daquela antiga colônia, ainda vive o nome Bellandi. Alguns lavram, outros estudam nas cidades, alguns já nem pronunciam corretamente o sobrenome do bisavô. Mas todos carregam, sem saber, a herança invisível daquele homem que chegou sem nada além de fé e coragem.

E a terra, enfim, o reconheceu como seu. 

Nota do Autor

Esta história nasceu do silêncio das cartas que não chegaram, das fotografias desbotadas por mãos calejadas, dos nomes que o tempo quase apagou. Giuseppe Bellandi é um personagem inventado, mas sua jornada ecoa milhares de vidas reais. Vidas que cruzaram o oceano em porões abafados, movidas por uma esperança que não cabia nas palavras. Vidas que trocaram a certeza das colinas italianas pelo mistério de uma terra abrasadora, cheia de promessas e perigos, onde tudo — até o idioma — precisava ser aprendido de novo.

Escrevi esta narrativa com o coração voltado a todos os que partiram sem saber se haveria retorno, aos que enterraram seus mortos longe dos campos de infância, aos que aprenderam a amar uma terra que não era sua, até que se tornasse.

Quis homenagear a coragem silenciosa daqueles homens e mulheres que não tiveram escolha senão recomeçar. Gente que construiu casas com as próprias mãos, cultivou fé entre os sulcos da terra, educou filhos no improviso, cantou missas sob galpões de tábuas, e deixou heranças que não se medem em bens — mas em raízes. 

Se, ao chegar à última linha, você sentiu o cheiro da terra vermelha, ouviu o som distante de um sino no entardecer, ou enxergou um velho sentado à varanda com saudade nos olhos, então esta história cumpriu seu destino. Porque Giuseppe Bellandi pode ser fictício. Mas sua memória — e a de tantos como ele — é, e sempre será, verdadeira.

Dr. Luiz C. B. Piazzetta