Mostrando postagens com marcador história dos colonos. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador história dos colonos. Mostrar todas as postagens

quinta-feira, 4 de dezembro de 2025

Sob o Vento das Colônias: A Travessia de Domenico Cavallin para a Colônia Dona Isabel (1878)

 


Sob o Vento das Colônias 

A Travessia de Domenico Cavallin para a Colônia Dona Isabel (1878)

História da imigração italiana no Rio Grande do Sul – Colônia Dona Isabel


Domenico Cavallin nasceu na localidade San Giovanni, pertencente ao município vêneto de Valdobbiadene, uma terra de colinas que ondulavam como um imenso tapete verde, belo à distância, mas implacável para quem dependia dele para sobreviver. Ali, sob o peso silencioso da rotina, gerações inteiras haviam aprendido a extrair sustento de parcelas mínimas de terra, trabalhando de sol a sol para colher apenas o necessário. Em San Giovanni, a esperança sempre fora um recurso tão escasso quanto o próprio dinheiro. Naquele inverno de 1878, quando os vinhedos adormeciam sob uma neblina espessa que descia dos montes, a paisagem parecia refletir a alma do lugar: silenciosa, resignada, contida. As noites eram longas e frias, e o eco distante dos sinos do campanário não trazia consolo; pelo contrário, repetia um aviso sombrio que todos já conheciam — ali, naquele canto da província de Treviso, o futuro diminuía a cada ano, como um fio de vida que se desgastava lentamente. Para muitos jovens, especialmente aqueles que, como Domenico, não herdariam terras nem ofício seguro, a pequena localidade já não oferecia caminhos, apenas a lenta certeza de que permanecer era aceitar uma vida inteira limitada pelas mesmas colinas que os cercavam desde o nascimento.

A Itália recém-unificada não oferecia saída para quem vivia nas franjas do campo. A promessa de um país moderno parecia distante demais para alcançar localidades como San Giovanni: as terras eram poucas, fragmentadas entre herdeiros, e as bocas eram muitas, sempre mais numerosas do que as colheitas exíguas que a terra permitia. A cada estação, aumentava a sensação de que o novo país existia apenas nos discursos políticos de Turim e Florença, enquanto nas aldeias rurais persistia o mesmo cenário de dívidas, impostos e escassez. Assim, as únicas promessas reais chegavam em envelopes gastos, vindos do outro lado do oceano Atlântico, trazendo a caligrafia torta de parentes que haviam partido antes. Eram cartas do Brasil, cheias de relatos incertos, mas carregadas de uma luz que não existia em Valdobbiadene. Nelas, repetia-se o nome de um destino que começava a circular entre os imigrantes: a Colônia Dona Isabel, um lugar remoto “no sul do mundo”, onde — diziam — a terra se abria como um livro em branco, esperando pela coragem de quem aceitasse recomeçar. Essas cartas, escritas por mãos calejadas que conheciam a pobreza tão bem quanto Domenico, revelavam algo quase inacreditável: que, do outro lado do oceano, homens simples finalmente respiravam dignidade. Eram palavras que atravessavam mares não apenas com notícias, mas com uma promessa silenciosa de futuro, capaz de inquietar até os mais resignados.

Domenico guardou uma dessas cartas sob o colchão por semanas, como se o simples contato com o papel pudesse iluminar os dias sombrios de San Giovanni. Ele a relia sempre que o desânimo o apertava, repetindo cada frase como quem procura sinais de um destino possível. A caligrafia trêmula do parente que escrevera do Brasil se tornara quase uma oração particular, um lembrete de que a vida podia ser maior do que a pobreza que cercava a vila. Até que, numa manhã de geada, quando o frio parecia entrar pelas frestas da casa e congelar qualquer ilusão de futuro, Domenico tomou sua decisão: partiria. Depois de uma noite inteira de vigília silenciosa, levantou-se com uma determinação inédita. Vendeu a velha carroça herdada do pai — último símbolo de um passado que já não o sustentava — e juntou moedas que mal enchiam o fundo de um bolso. Era pouco, quase nada, mas suficiente para iniciar a travessia que mudaria sua vida. A despedida da mãe foi o momento mais duro: ela não tinha palavras, apenas um olhar que misturava orgulho e temor. Antes que ele cruzasse o limiar da porta, colocou em suas mãos um pequeno crucifixo de madeira, gasto pelos anos e pelas preces. “Leva contigo”, murmurou. Domenico apertou o objeto com força, sabendo que, entre tudo o que deixava e tudo o que buscaria no caminho até a Colônia Dona Isabel, aquele crucifixo seria o único companheiro que jamais abandonaria.

A viagem de Valdobbiadene até Gênova foi longa e cansativa, uma travessia que parecia medir não apenas a distância entre duas cidades, mas o próprio peso da decisão que Domenico havia tomado. A cada milha vencida, o trem e as estradas revelavam rostos diferentes, todos marcados pelo mesmo misto de apreensão e esperança que ele próprio carregava. Entre aqueles viajantes que cruzavam seu caminho, muitos vinham de regiões vizinhas da província de Treviso: famílias inteiras de Vidor, levando baús improvisados e crianças sonolentas; grupos de jovens de Farra di Soligo, que escondiam o medo sob uma coragem quase teatral; trabalhadores de Follina e Cison di Valmarino, homens habituados ao esforço físico, mas visivelmente abalados pela incerteza que envolvia a partida. Alguns viajavam em silêncio absoluto, outros repetiam histórias sobre parentes que já haviam embarcado rumo ao Brasil, como se as palavras pudessem firmar a própria decisão. E, embora cada um carregasse motivações distintas — dívidas, sonhos, promessas ou pura necessidade —, todos traziam no olhar o mesmo brilho inquieto, uma combinação profunda de dúvida e desejo. Era esse olhar, tão humano e tão familiar, que lembrava a Domenico que sua jornada não era única: fazia parte de um movimento maior, um êxodo silencioso que transformava camponeses anônimos em imigrantes, empurrando-os em direção ao desconhecido.

O navio que os conduziu ao Brasil era um gigante cansado, um casco de ferro que rangia como se carregasse séculos de histórias e desalento. No porão, onde a maioria dos imigrantes encontrava seu lugar forçado, o ar úmido misturava o sal do oceano ao cheiro de medo que parecia escorrer das paredes escuras. Crianças choravam sem alívio, velhos apertavam terços gastos entre os dedos deformados pelo trabalho, e os dias se arrastavam em um ciclo de náuseas, escuridão e lembranças que doíam. Cada balanço do mar fazia o futuro parecer ainda mais distante, e cada noite trazia a certeza de que não havia retorno possível para quem deixara a Itália unificada em busca de sobrevivência. Ainda assim, por mais sombrio que fosse o porão, havia algo que nenhum vento contrário conseguia apagar: a esperança persistente — quase teimosa — de um recomeço. Era essa esperança que sustentava aqueles homens e mulheres, transformando a travessia do Atlântico em um ritual de passagem para uma nova vida na terra prometida.

Quando avistou o Rio de Janeiro, Domenico sentiu o coração falhar por um segundo, como se a imensidão diante dele exigisse uma pausa para ser compreendida. A cidade surgia do mar com uma grandiosidade quase irreal: montanhas íngremes que pareciam brotar das águas verdes, uma vegetação exuberante que o sol tropical incendiava em tons impossíveis, e uma luz intensa que não existia em nenhum recanto da Itália recém-unificada. Era um cenário que misturava beleza e estranhamento, marcando de forma indelével a chegada dos imigrantes italianos ao Brasil.

Mas Domenico sabia que aquele deslumbramento não seria o fim de sua jornada. O Rio de Janeiro era apenas o primeiro sopro de um continente desconhecido. Seu destino estava muito além, no extremo sul, onde as colônias italianas se multiplicavam entre vales úmidos, encostas férteis e florestas densas que ainda carregavam o cheiro da mata virgem. Para lá seguiriam homens como ele — homens que buscavam não apenas terra, mas a chance de construir uma vida que a Europa nunca lhes oferecera. Aquele era apenas o começo, o primeiro capítulo de uma travessia que o conduziria à Colônia Dona Isabel e ao coração da imigração italiana no Brasil.

A chegada à Colônia Dona Isabel foi um choque de realidade que desmontou qualquer ilusão construída pelas cartas enviadas do Brasil. Não havia estradas que facilitassem o caminho, nem casas erguidas à espera dos recém-chegados. O que se estendia diante de Domenico era uma imensidão de mata fechada, onde a vegetação densa escondia barrancos escorregadios, raízes traiçoeiras e um silêncio profundo que só era quebrado pelo ritmo cadenciado dos machados abrindo clareiras na floresta. Era o som do início de tudo — duro, lento, irremediável.

Quando finalmente recebeu o lote 56 da Linha Leopoldina, percebeu que seu novo mundo cabia naquele retângulo de floresta bruta. Ali não havia nada que lembrasse Valdobbiadene, nem as colinas suaves da frazione San Giovanni. Seus olhos, acostumados aos vinhedos ordenados do Vêneto, precisaram se habituar à desordem selvagem da mata brasileira, onde cada palmo parecia resistir ao toque humano. Para transformar aquele chão em sustento, Domenico teria de domá-lo com as próprias mãos — derrubar árvores centenárias, abrir trilhas, erguer uma casa que o protegesse das chuvas violentas e das noites úmidas que pareciam não ter fim.

Naquele primeiro instante, ele compreendeu que a colonização no sul do Brasil não era apenas promessa de terra; era sobretudo uma prova de resistência, coragem e fé. Ali começaria sua verdadeira luta por um futuro.

Os primeiros meses na Colônia Dona Isabel foram exaustivos, quase impiedosos. O sol ardia sem trégua sobre a clareira recém-aberta, queimando a pele e roubando o fôlego de quem ousava trabalhar desde antes da aurora. Quando a chuva chegava, não vinha como alívio, mas como ameaça: penetrava pelas frestas da palhoça improvisada, inundando o chão de terra batida, apagando o pequeno fogo que Domenico tentava manter aceso e transformando as noites em longas vigílias de frio e incerteza. A solidão pesava como uma rocha — silenciosa, constante, difícil de afastar.

Ainda assim, a colônia oferecia dois milagres que nenhum outro presente poderia superar: o trabalho, que dava sentido aos dias, e a amizade, que dava coragem para enfrentá-los. Foi nesse ciclo de esforço e necessidade que Domenico conheceu Caterina Fregonese, recém-chegada da localidade de Bigolino, também pertencente ao comune de Valdobbiadene. Ela era jovem, de passos firmes e olhar decidido, com uma determinação que parecia desafiar a rudeza da floresta e a precariedade das primeiras moradias.

Juntos, aprenderam a derrubar árvores que pareciam impossíveis de tombar, a abrir trilhas que serpenteavam entre galhos retorcidos e raízes profundas, e a transformar o medo silencioso das primeiras noites na mata em força compartilhada. A cada jornada, a cooperação entre eles se tornava mais natural; a cada obstáculo vencido, crescia a convicção de que recomeçar naquele pedaço de Brasil era difícil — mas possível. E talvez, pela primeira vez, Domenico sentiu que aquele novo mundo poderia, um dia, tornar-se um lar.

Ao lado dos vizinhos — a família Dalla Costa, oriunda de Pieve di Soligo; os irmãos Zanin, vindos de Sernaglia della Battaglia; e o velho Peruzzetto, que deixara para trás as colinas de Vidor — Domenico descobriu que o Brasil não era apenas um destino final, mas uma tarefa diária, quase um chamado silencioso que exigia força, coragem e persistência. A convivência com aquelas famílias, igualmente marcadas pela dureza da travessia e pela esperança de reconstruir a vida, ensinou-lhe que a colonização no sul do Brasil só era possível porque ninguém caminhava sozinho.

Cada árvore derrubada parecia um monumento erguido contra a própria adversidade. Cada tora arrastada pelo barro, sob sol ou chuva, era um lembrete de que nenhum deles havia atravessado o oceano para se render. E cada broto plantado na terra recém-limpada — milho, trigo, feijão, videiras ainda frágeis — tornava-se um gesto de afirmação: estavam vivos, estavam presentes e pertenciam àquele chão novo e indomado.

Na união entre os imigrantes, Domenico percebeu que o Brasil os moldava tanto quanto eles moldavam a terra. Era um pacto tácito entre homens e floresta, entre passado e futuro. E, dia após dia, as raízes que lançavam no solo da Colônia Dona Isabel começavam a se entrelaçar com as raízes que haviam deixado para trás na província de Treviso, criando uma nova história — deles, e de todos que chegariam depois.

Quando finalmente ergueu sua primeira casa de madeira, Domenico chorou sem pudor, como alguém que, depois de longa tempestade, avista um pedaço de céu limpo. A construção não tinha beleza: as tábuas eram irregulares, o telhado deixava passar vento pelas frestas, e o chão ainda era terra batida. Também não era grande; mal comportava o fogão improvisado, a pequena mesa de pinho e a cama onde ele caía exausto todas as noites. Mas era dele — fruto de semanas de esforço contínuo, de machadadas que feriam as mãos, de dias escuros em que a saudade da Itália quase o paralisava.

Aquela casa simples tornou-se o símbolo vivo de que a travessia do Atlântico, os medos do porão e as despedidas do Vêneto haviam valido a pena. Era a prova de que nenhum sofrimento tinha sido em vão. Ali, naquele pedaço de terras brasileiras da Colônia Dona Isabel, Domenico sentiu nascer algo que jamais encontrara em San Giovanni: a convicção profunda de que o futuro podia finalmente ser construído com as próprias mãos.

A cada martelada que ouviu ecoar na mata, ele compreendeu que não era apenas uma casa que se erguia, mas uma existência inteira que ganhava forma — uma vida nova, plantada com coragem naquele solo distante do qual começava, pouco a pouco, a sentir-se parte.

E assim, no coração verde do Rio Grande do Sul, Domenico Cavallin deixou de ser apenas um camponês anônimo da província de Treviso, moldado pelas colinas estreitas de San Giovanni e pelas limitações de uma terra que já não lhe prometia futuro. No Brasil, tornou-se mais do que imigrante: tornou-se colono, pioneiro e fundador de um modo de vida que exigia coragem para cada amanhecer e fé para cada noite.

Com o passar dos anos, suas marcas se espalharam pela Colônia Dona Isabel — na roça aberta à força dos braços, nas videiras que insistiam em crescer mesmo sob o clima incerto, nas pequenas sendas que ligavam um lote ao outro, criando uma comunidade onde antes só havia mata densa e silêncio. Cada gesto seu, cada metro de terra domada, cada árvore derrubada para dar espaço à vida, ajudou a transformar aquele núcleo isolado em povoado, o povoado em vila, e a vila em cidade.

Quando os primeiros sinos ecoaram no vale, quando as primeiras colheitas foram celebradas, e quando as crianças da segunda geração começaram a falar português com sotaque de Vêneto, Domenico compreendeu que algo maior havia sido construído — algo que sobreviveria a ele. Sua trajetória, entrelaçada às de tantos outros imigrantes italianos, tornou-se parte da memória eterna que deu origem à futura Bento Gonçalves, erguida sobre trabalho, esperança e sacrifício.

Assim, sem alarde e sem ambição além do necessário, Domenico Cavallin inscreveu seu nome na história de um novo mundo. E o Brasil, que antes lhe parecia apenas destino incerto, transformou-se no lugar onde seu passado encontrou repouso e onde seu futuro — e o de seus descendentes — encontrou raiz.

Nota do Autor 

Esta narrativa é inteiramente ficcional e não representa a biografia real de nenhuma pessoa específica. Os nomes, sobrenomes e locais utilizados — embora comuns na província de Treviso durante o período da grande emigração italiana — foram escolhidos ao acaso e servem apenas para conferir verossimilhança histórica ao enredo. O objetivo deste texto é homenagear a trajetória dos imigrantes que ajudaram a construir a Colônia Dona Isabel e preservar a memória da imigração italiana no Rio Grande do Sul.

Dr. Luiz Carlos B. Piazzetta