Prólogo — A Partida
Castelbelforte, Província de Mantova — Reino da Itália, outubro de 1876
A bruma outonal ainda dormia sobre os campos silenciosos quando Luigi Bianchetti, aos trinta e dois anos, trancou com firmeza a última caixa de madeira. Dentro, repousavam ferramentas gastas, mas fiéis, sementes colhidas com devoção e uma imagem de Nossa Senhora envolta num lenço de linho bordado por sua esposa. Era o pouco que restava de uma vida inteira — e o tudo de que precisaria para começar outra.
A casa onde nascera e enterrara os pais dormia atrás dele, envolta por uma quietude que só os que partem em definitivo conseguem escutar. Três filhos ainda sonhavam sob o teto de barro, e Giulia, sua mulher, acendia a lareira pela última vez naquele lar. A fumaça que subia à chaminé se misturava à névoa que lambia os campos, como se o tempo, por um momento, também hesitasse em deixá-los partir.
A decisão fora amadurecida como o vinho nas adegas frias: devagar, no escuro e com uma dor surda crescendo no peito. Desde a unificação da Itália, o país mergulhara numa confusão maior do que a promessa de ordem. Impostos injustos, fome constante e a humilhação de ver os filhos implorarem por pão foram tornando insuportável a esperança. O solo que outrora dera trigo e dignidade agora devolvia apenas pedras e silêncio.
O Brasil. Um nome tão estranho quanto sedutor. Diziam que o café nascia aos montes, que terras sem dono esperavam apenas braços dispostos, e que o governo até pagava a travessia. Para Luigi, foi como ouvir um sussurro vindo do próprio futuro.
Na estação de Mantova, cercado por dezenas de outros camponeses, Luigi viu nos rostos cansados o mesmo misto de medo e fé, como se todos soubessem que estavam prestes a morrer para um mundo e nascer em outro. As locomotivas cuspiram vapor e gritos. O trem para Gênova aguardava.
Não era uma fuga. Era um salto no escuro.
E Luigi Bianchetti, com a dignidade enrugada nas mãos calejadas, deu o primeiro passo rumo ao desconhecido, sem saber que, do outro lado do oceano, uma nova história estava sendo escrita — com suor, dor, e uma esperança que nenhum império seria capaz de sufocar.
CAPÍTULO I — O ADEUS À TERRA DOS AVÓS
Castelbelforte, Província de Mantova — Itália, outubro de 1876
O sino da paróquia soava sete badaladas quando Luigi Bianchetti lançou um último olhar ao campo onde nascera. Era um pedaço raso de terra, ferido por secas e impostos, mas era tudo o que conhecera até então. O ar da manhã cortava o rosto com a friagem típica de outubro, trazendo o cheiro das folhas úmidas e das brasas que ainda fumegavam das lareiras ao longe. O outono não apenas se instalava no clima — pairava também no coração dos que ficavam.
Atrás dele, Giulia, sua mulher, dobrava lençóis e os colocava cuidadosamente numa trouxa. Estava grávida do quarto filho, embora ainda não tivessem contado a ninguém. As crianças — Matteo, de oito anos, Lucia, de seis, e o pequeno Paolo, de três — dormiam amontoados sobre palhas, inocentes ao peso daquele dia. Luigi parou um instante diante da porta aberta e observou a cena. Quis gravá-la na mente, porque sabia que nunca mais voltaria a vê-la.
Na aldeia, muitos falavam. Uns diziam que os que partiam voltavam ricos. Outros, que jamais retornavam. A única certeza era que o mundo estava mudando rápido demais — e os camponeses, como ele, não tinham tempo de acompanhá-lo.
— Tem certeza, Luigi? — perguntou o velho Padre Corrado, apertando-lhe o ombro. — Deixar tudo para trás… não é pouca coisa.
Luigi assentiu em silêncio. Era homem de poucas palavras e decisões firmes. Mais de uma vez questionara a si mesmo se era loucura trocar o certo — mesmo que miserável — por um desconhecido oceano de promessas. Mas ver seus filhos emagrecerem a cada inverno e ouvir sua mulher esconder o choro à noite, isso era mais insuportável que o risco.
Não era coragem. Era necessidade.
Na estação de Mantova, o trem a vapor tremia como um animal inquieto, cuspindo nuvens cinzentas e cheirando a ferro e carvão. Em cada vagão, famílias inteiras se espremiam com malas de couro, sacos de farinha, roupas de cama e esperanças desgastadas. Choros se misturavam a orações. O barulho das rodas nos trilhos era como um martelo selando destinos.
Luigi ajudou Giulia a subir com as crianças. Um oficial com o uniforme do governo piemontês revisava as passagens com ar severo. Muitos dos que embarcavam não sabiam ler nem escrever. Luigi tampouco. Mas trazia o nome do destino bem guardado num pedaço de papel: “Gênova — Porto de Embarque para o Brasile”.
Ali dentro, entre desconhecidos, homens murmuravam palavras de encorajamento, mulheres rezavam com terços entre os dedos, e crianças olhavam pela janela com os olhos grandes, atentos ao mundo que corria para trás. Um velho com barba branca passou distribuindo pedaços de pão duro aos passageiros.
— É pão do embarque — disse. — Vão dar outro só no navio, quando cruzarmos o Equador.
O trem apitou. E partiu.
Enquanto as casas de Mantova ficavam para trás, Luigi sentiu um aperto no estômago que nenhuma refeição aliviaria. Era a dor do exílio voluntário, da ruptura com gerações de camponeses enterrados naquele solo. Mas também era a faísca da esperança. Ao seu lado, Giulia apertou-lhe a mão. Ambos olharam para a frente.
Não voltariam jamais. Mas começariam de novo.
CAPÍTULO 2 — DESTINO: SANTA CATARINA
Do Rio, seguiram por mais seis dias costeando o litoral, até desembarcarem no porto de Desterro. Dali, atravessaram enseadas em pequenas embarcações de vela até um vilarejo improvisado chamado Nova Itália, no interior de Santa Catarina. Foram recebidos por Giuseppe Artioli, um conterrâneo que já vivia ali há dois anos e que servia como guia para os recém-chegados.
Foram levados até a Colônia de Santo Antônio dos Mulli, onde a família Bianchetti recebeu sua gleba: 85 biólcas de terra, em meio a mata fechada. Metade era bosque intocado, o restante, campo áspero. A promessa era simples: quem cultivasse, teria a posse. Mas nada naquelas terras se assemelhava aos campos da Lombardia.
CAPÍTULO III — O SILÊNCIO DA MATA
Colônia Nova Itália, Santa Catarina — janeiro de 1877
O silêncio da mata era diferente de qualquer silêncio que Luigi já conhecera. Não era ausência de som, mas presença de um som mais antigo que o homem. Um rumor úmido, vegetal, vivo. A mata não dormia. Sussurrava em línguas desconhecidas, ecoando o farfalhar das folhas, o grito noturno dos macacos e o rugido distante de predadores invisíveis.
O primeiro mês foi brutal.
Teresa, sua esposa, chorava quase todas as noites — baixinho, para não alarmar as crianças, mas suficientemente alto para ferir o coração de Luigi. Chorava pela mãe deixada em Castelbelforte, pelas irmãs, pelas vizinhas com quem trocava pão e confissões. Chorava pelo berço de Angelo, que agora era apenas uma esteira de palha. Chorava, sobretudo, por medo: do lugar, da fome, da solidão.
Luigi não tinha tempo para chorar. Dormia três, às vezes quatro horas por noite. Passava os dias derrubando árvores com machado, as mãos em sangue sob os calos. A cada tronco tombado, uma nova clareira, uma nova promessa — ou um novo pesadelo. As toras se acumulavam em pilhas irregulares, destinadas à construção da primeira palhoça. Madeira crua, sem pregos, sem esquadro. O abrigo era tosco, mas já oferecia sombra, proteção contra a chuva, e um pouco de dignidade.
Matteo, agora com doze anos, mostrava um senso precoce de responsabilidade. Carregava tábuas, ajudava o pai a cavar buracos para os esteios e acendia o fogo com gravetos secos. Seus braços eram finos, mas seus olhos estavam mudando. Deixavam de ser os de uma criança e tornavam-se os de um homem em formação — um homem forjado pela necessidade.
Rosa, de nove, aprendia a cozinhar com a mãe. Com mãos pequenas e cuidadosas, limpava a mandioca, soprava cinzas do fogareiro e ninava o bebê quando Teresa não podia. Quando Luigi a olhava — cabelos grudados na testa, vestidinho sujo de barro — sentia uma pontada no peito. Ela era tão valente quanto frágil. Um botão tentando florescer num campo de espinhos.
Angelo, o caçula, estava com dez meses e sofria com as picadas dos mosquitos, o calor insuportável e a alimentação improvisada. Chorava muito. Teresa, com os seios ressecados de tanto trabalho e pouca comida, não conseguia mais amamentar. Aprenderam a esmagar banana verde e misturar com água fervida, numa tentativa desesperada de alimentá-lo. Era pouco. Mas era tudo.
A mata os cercava como um exército em silêncio. As trilhas eram escassas, marcadas com pedaços de pano amarrados nos galhos ou pequenas toras deixadas como marcos. Havia dias em que Luigi se sentia mais perdido que um navio sem leme.
A comida escasseava. As víveres trazidas do navio — farinha de milho, carne salgada, feijões secos — acabaram na segunda semana. Foi então que a mata ensinou sua primeira lição: aprender ou morrer.
Com ajuda de um colono alemão, um certo Herr Kuntz, Luigi aprendeu a diferenciar mandioca-brava da doce. A primeira podia matar em horas; a segunda sustentava por dias. Também ensinou a caçar galinhas-d’água com armadilhas simples de cipó. E mostrou como encontrar bananas silvestres, pequenas, verdes, amargas, mas nutritivas.
As noites traziam seus próprios terrores. Sob o teto improvisado da palhoça, os Bianchetti se amontoavam em silêncio enquanto a floresta ganhava vida com sons quase sobrenaturais. O uivo das onças-pintadas no alto das colinas. O rosnado surdo de uma jaguatirica. O sibilar de cobras nos matagais. O farfalhar de galhos quebrados sem vento.
E então, o pior: o silêncio absoluto.
Era quando todos os animais paravam de emitir sons, como se ouvissem algo que os homens não podiam ouvir. Teresa apertava Angelo contra o peito e rezava em italiano antigo. Luigi segurava o facão com as mãos firmes, mas o suor lhe escorria pelas costas.
E mesmo assim, a vida insistia.
As galinhas trouxeram ovos. Um pedaço de terreno, com muito esforço, começou a produzir milho. Matteo e Rosa construíram um pequeno galinheiro. Teresa descobriu arbustos de mamão perto do riacho. Luigi, com os olhos fundos de cansaço, viu um filete de esperança: não era mais apenas sobrevivência. Era o início.
Certa manhã, ao abrir a porta da palhoça, Luigi viu o sol filtrando-se entre os galhos como ouro líquido. O ar era pesado, mas carregava um cheiro novo — cheiro de terra cultivada.
E ele soube. Estavam vivos. E não estavam derrotados.
CAPÍTULO 4 — A PRIMEIRA COLHEITA
Colônia Nova Itália, Santa Catarina — novembro de 1877 a março de 1878
O milho fora plantado como quem enterra uma prece.
Luigi ajoelhara-se diante da terra vermelha e quente, os olhos queimando de sol e de esperança. Cada semente depositada no solo era mais que uma promessa: era um pacto silencioso com o futuro. Escolhera com cuidado o pequeno aclive nos fundos da clareira, onde as cinzas das árvores recém tombadas ainda enriqueciam o terreno. Ali o solo era fértil, úmido, e a luz do sol filtrava-se por entre os galhos como bênçãos invisíveis.
Nos primeiros meses, no entanto, tudo parecia inútil.
As chuvas pesadas carregavam os brotos. As formigas cortadeiras dizimavam fileiras inteiras de mudas durante a noite. O calor escaldante dava lugar a um frio súbito ao cair da tarde. Luigi observava os canteiros com desânimo e raiva, limpava o suor da testa com as costas da mão suja e se perguntava — mais de uma vez — se o Brasil realmente era terra de promessas ou apenas uma armadilha para sonhadores.
Mas então, em dezembro de 1877, algo mudou.
As primeiras folhas do milharal — pequenas, verdes-escuras e brilhantes — romperam o solo com vigor inesperado. Luigi as observava crescer como se fossem seus próprios filhos. Mediu a altura com pedaços de vara marcados, notou a diferença entre as que cresciam à sombra e as que tomavam sol o dia inteiro. Era um homem analfabeto, mas naquela terra bruta, descobria-se um cientista empírico movido por instinto e necessidade.
Enquanto isso, Teresa florescia junto com o chão.
Aos poucos, a mulher curvada pelo medo e pela saudade se tornava novamente a companheira forte que ele conhecera em Mantova. Iniciou, à sombra da casa, uma pequena horta: feijão, abóbora, milho, um pouco de manjericão trazido da Itália em saquinhos de linho. Descobrira que o solo ali pedia respeito e paciência. E, sobretudo, parceria com o clima, com as pragas, com os mistérios da mata.
Ela passou a trocar sementes com vizinhos distantes — os Giordano, os Pellegrini, os alemães Huber e Klein. Nasciam amizades entre enxadas e canecos de água de poço. A colônia, lentamente, começava a ter rosto.
Matteo, agora mais forte, cuidava do pequeno milharal como se fosse dele. Rosa ajudava Teresa na coleta de folhas comestíveis e flores para chás. Angelo engatinhava pela terra batida da palhoça, já mais robusto, os olhos brilhantes sob os cabelos desgrenhados. A família, enfim, parecia viver — não apenas resistir.
A primeira colheita, no fim de fevereiro de 1878, foi modesta. Mas nenhum banquete em Mantova jamais teve tanto significado. Havia abóboras do tamanho de panelas, algumas espigas de milho douradas como o sol do meio-dia, um punhado de feijões prontos para serem secos e guardados. Teresa preparou um cozido simples, perfumado com manjericão e salgado com lágrimas de gratidão. Luigi, em silêncio, observava o vapor subir do prato como se fosse incenso.
Na festa de São José, em março, a colônia celebrou — mais pela vida do que pelo santo.
Homens, mulheres e crianças saíram de suas palhoças com os melhores trajes que possuíam: vestidos remendados, camisas de linho surradas, botas com sola gasta. O pequeno descampado entre as casas de madeira serviu como salão de festas. Um grupo de colonos construiu uma mesa rústica com tábuas reaproveitadas. Outro trouxe folhas de bananeira para forrar o chão. As mulheres, com mãos calejadas, prepararam bolos de fubá, aves assadas, farinha de mandioca torrada e frutas colhidas na mata. Um velho destilador improvisado forneceu aguardente de cana, forte o suficiente para queimar as mágoas.
Foi ali, naquela noite quente e iluminada por lamparinas de querosene e estrelas, que Luigi riu com gosto pela primeira vez desde que chegara ao Brasil.
Ouviu canções italianas misturadas a cantos alemães. Viu Matteo dançar com uma menina dos Huber, viu Rosa correr atrás de um galo assado como se estivesse em Mantova. Teresa, com o rosto ruborizado e os olhos brilhando, entregava pratos com um sorriso tímido.
E então Luigi entendeu: não estavam mais sozinhos. A colônia, enfim, era mais que um agrupamento de casebres no meio da mata. Era comunidade. Era povo. Era promessa cumprida, ainda que tímida.
A vida ali continuaria dura. As colheitas futuras ainda dependiam do clima, das pragas, das doenças que rondavam invisíveis. Mas naquela noite, com os estômagos cheios e os corações mais leves, os imigrantes dançaram como quem desafia o destino.
CAPÍTULO 5 — OS HOMENS E A COLÔNIA
Colônia Nova Itália, Santa Catarina — abril a setembro de 1878
As palhoças de madeira foram se multiplicando como fungos sobre a terra úmida da mata aberta. Onde antes havia apenas clareiras tímidas, surgiam agora trilhas batidas por pés descalços, cercas improvisadas, hortas minguadas e, de tempos em tempos, o cheiro agridoce de fogo de lenha e aguardente. A colônia ganhava forma — e com ela, surgiam também os primeiros conflitos.
Luigi Bianchetti, com o corpo mais forte e a alma ainda marcada pela travessia e pela luta pela sobrevivência, observava a mudança com olhos desconfiados. Os recém-chegados eram diferentes: alguns, alemães vindos do sul, já acostumados ao idioma e às leis do Império do Brasil; outros, italianos de Nápoles, da Calábria, gente de sotaques mais cerrados, menos pacientes, que olhavam para os lombardos como se falassem outra língua.
O centro de toda novidade era um homem de nome Severino Antunes, mulato alto, forte, e com olhos que não revelavam emoção. Vinha de Desterro — a capital da província — com ordens imperiais de organizar as posses, oficializar os lotes e “levar civilização aos bravos colonos”, como dizia com um certo sarcasmo embutido em sua voz pausada.
Luigi desconfiou dele desde o início.
— Homem que fala bonito e anda de paletó no barro não veio plantar, veio mandar, resmungou ao amigo Giordano numa manhã de domingo.
Mas Severino era mais que um burocrata. Tinha olhos aguçados e ouvidos atentos. Sabia que o poder nas colônias nascia do respeito dos homens — e este só era conquistado com ação. Em poucas semanas, organizou reuniões, distribuiu mapas rudimentares, estabeleceu um registo para dividir as terras. Quem não tivesse documentação ou testemunho confiável de vizinhos, perdia o que havia suado para construir. Logo, a tensão pairava sobre os campos como neblina antes da chuva.
— Esse não é mais o mato sem dono, declarou Severino certa vez diante de uma dezena de colonos reunidos numa clareira. Agora é terra de homens civilizados. Com regras.
Alguns, como os irmãos Pellegrini, logo se alinharam com ele. Homens ambiciosos, desconfiados dos lombardos e sedentos por vantagens. Começaram a denunciar vizinhos por “invasão de lote”, muitas vezes baseando-se em linhas invisíveis desenhadas à caneta por Severino. Casos chegaram a ameaçar terminar em sangue. Houve uma briga de foice entre dois napolitanos por um córrego de água limpa — e rumores de que um deles fora enterrado em silêncio nas margens da mata.
Luigi tentava manter a distância, mas a colônia não permitia neutralidade.
Na pequena casa da família Bianchetti, as discussões se intensificaram. Teresa receava os homens de Severino — especialmente o sargento encarregado de “fazer valer a ordem”, que já agredira um jovem alemão por recusar-se a pagar um imposto recém-criado.
— Você não pode continuar calado, Luigi. Vão tomar nossa terra, disse ela certa noite, a voz trêmula, os olhos fixos na lamparina. — Fale com os vizinhos. Organize-se.
Luigi ouviu. Reuniu-se com Giordano, os irmãos Klein e um padre lazarista chamado Francesco Ricci, recém-chegado da Itália com a missão de evangelizar, mas logo engajado em defender os direitos dos colonos. Criaram um pequeno conselho informal, que se encontrava toda primeira sexta-feira do mês, na casa de Luigi.
O padre Francesco, de batina suada e voz firme, propunha moderação. Luigi, com os punhos sempre cerrados e os olhos fundos de noites maldormidas, queria firmeza. O conflito com Severino Antunes era inevitável. Mas havia algo mais sombrio pairando.
Nas últimas semanas de julho, dois colonos desapareceram.
Um era Giuseppe Mancini, calabrês de fala ríspida, que jurava ter comprado seu lote de um antigo ocupante. O outro, um mestiço chamado Tertuliano, que vivia sozinho e oferecia carne seca em troca de sementes. Seus casebres foram encontrados revirados, e nenhum sinal dos corpos.
Severino, quando questionado, apenas sorriu:
— A mata engole os que não sabem viver nela.
Luigi não acreditou. Sabia que a colônia crescera demais, rápido demais, e que os olhos gananciosos do governo e dos especuladores começavam a se voltar para aquela terra ainda sem nome definitivo. Nova Itália, diziam uns. Colônia Imperial, diziam outros. Mas o nome pouco importava. O que contava era o chão onde se plantava e o direito de permanecer nele.
No fim de setembro, ao retornar do mato, Luigi encontrou Matteo à porta, pálido e com o rosto arranhado.
— Pai… os homens do Severino estiveram aqui. Disseram que vão medir nossas terras de novo. E que se não estivermos com os papéis em ordem…
Luigi respirou fundo. Sentiu a madeira do machado áspera sob os dedos. Olhou para a palhoça, para Teresa com Angelo no colo, para Rosa cuidando da horta. Viu, naquele instante, que a colônia estava diante de um novo tipo de tempestade — não a que vinha do céu, mas a que se formava entre homens.
E desta vez, seria preciso mais do que sementes para resistir.
CAPÍTULO 6 — FOGO E TERRA
Colônia Nova Itália, Outubro de 1878
A estação das chuvas começava a dar sinais, e com ela, a tensão na colônia se tornava quase palpável, como o cheiro de terra molhada antes da tempestade. As manhãs, antes ruidosas com vozes de lavradores e galos, agora amanheciam mergulhadas em um silêncio desconfortável. Os vizinhos evitavam conversar ao ar livre. Muitos temiam estar sendo vigiados.
Luigi Bianchetti passava os dias dividido entre os campos e as reuniões clandestinas do Conselho dos Colonos. A liderança forçada lhe caíra como um manto pesado. Não desejara ser chefe, mas os homens vinham a ele como vinham à terra: esperando firmeza, constância e proteção.
Padre Francesco, apesar da batina e da Bíblia, tornara-se um estrategista. Seus sermões agora misturavam fé com resistência. Falava de Moisés libertando seu povo, mas cada camponês na igreja entendia o recado: não aceitar as correntes impostas por Severino Antunes e seus asseclas.
No entanto, os inimigos também se organizavam. Severino, cada vez mais pressionado pelos representantes do Império e pelos interesses latifundiários de Desterro, começava a agir com brutalidade. Montou uma milícia de homens pagos — entre eles, desertores, caçadores e antigos capitães do mato. Dizia-se que Antônio Ramalho, o mais temido deles, já servira na repressão a quilombos e sabia como silenciar qualquer foco de rebeldia com eficiência e crueldade.
Foi Ramalho quem comandou o incêndio da choupana de Giordano Petrelli numa noite sem lua. A família conseguiu escapar pela mata, mas perdeu tudo: roupas, colheita, ferramentas. Giordano, com os olhos marejados, apareceu na manhã seguinte na casa de Luigi, a esposa e os dois filhos tremendo sob cobertores emprestados.
— Foi eles, Luigi. Vieram como sombra. Não disseram palavra. Só o fogo falou.
Luigi engoliu a raiva como quem engole pedra. Sabia que reagir com violência naquele momento poderia custar vidas. Mas o povo estava no limite. O incêndio não foi apenas um ataque: foi um recado. E a resposta precisava ser dada.
Na reunião seguinte, com uma dúzia de homens e mulheres reunidos sob a antiga figueira do vale, decidiu-se que o Conselho deixaria de ser apenas defensivo. Iria agir. Teresa, firme ao lado do marido, tomou a palavra:
— Se deixarmos que queimem as casas de um a um, vamos acabar voltando ao navio. Ou pior, sendo enterrados na mata. Essa terra é nossa. E se for preciso, vamos defendê-la como defendemos nossos filhos.
O grupo decidiu cercar os terrenos com marcos visíveis, fincados com cruzes de madeira com o nome da família, datas e um pequeno símbolo em carvão — um gesto simples, mas que declarava em silêncio: “Aqui vive alguém. Aqui não se passa sem luta.”
Luigi então teve uma ideia ousada: reunir os colonos para uma queimada controlada e simbólica. Eles próprios iriam atear fogo a um trecho da mata antiga — mostrando que a terra era domada por seus habitantes e não por capangas do governo. Seria um gesto de poder, de afirmação, mas também de perigo.
Na manhã da ação, mais de cinquenta homens e mulheres marcharam colina acima com tochas, enxadas e baldes de água. O fogo lambeu o mato alto, estalou como tambor em festa, e a fumaça subiu densa, visível a léguas.
Severino Antunes, ao avistar a nuvem negra do alto de seu posto de vigia, entendeu o recado. Não era mais uma colônia de miseráveis. Era uma comunidade decidida.
Na noite seguinte, Padre Francesco celebrou uma missa sob o céu aberto. As famílias, mesmo exaustas, cantaram juntas. Pela primeira vez em semanas, Luigi sentiu algo parecido com esperança. Não era paz, mas era um passo em direção a ela.
Contudo, nas sombras da mata, Antônio Ramalho afiava a faca em silêncio.
O sargento trazia ordens novas de Desterro. Severino, pressionado pelos fazendeiros da região, precisava “restabelecer a ordem” — com ou sem legalidade. E para isso, a liderança dos colonos precisava ser quebrada.
Luigi estava agora no centro de um jogo maior, onde política, terra e sangue se entrelaçavam como raízes ocultas sob o solo.
CAPÍTULO 7 — O INIMIGO INVISÍVEL
Colônia Nova Itália, Novembro de 1878
O calor úmido e o zumbido das cigarras faziam a floresta parecer um organismo vivo, pulsando e vigiando. Para Luigi, essa sensação de ser observado não era paranoia — era constatação. Havia algo diferente no ar. O riso das crianças parecia mais contido. As conversas entre vizinhos, sussurradas. E, acima de tudo, havia silêncio demais para uma terra que, até então, ressoava com trabalho, esperança e barulho de ferramentas.
Na casa de madeira que construíra com as próprias mãos, Luigi reparava em pequenos sinais: pegadas onde não deveriam existir, ferramentas deslocadas, feixes de cana quebrados ao redor do terreno. Estavam sendo espionados. Alguém do lado de fora — ou talvez de dentro — repassava informações para Severino Antunes.
Teresa, que há muito perdera a ingenuidade da jovem camponesa italiana, começou a esconder comida e sementes em buracos forrados com palha no chão da palhoça. Matteo, agora com treze anos, dormia com um facão velho ao lado da cama. Rosa cuidava de Angelo como uma pequena mãe em estado de alerta permanente. A infância se desfazia como o orvalho nas manhãs quentes.
Foi Giordano Petrelli quem trouxe a notícia que estremeceu o Conselho dos Colonos: havia um informante entre eles.
— Alguém passa recado pro Severino. Eu vi com meus olhos. Um homem com casaco escuro, de chapéu aba larga, se encontrou com Ramalho perto da trilha do córrego. Entregou um papel. Depois desapareceu entre as bananeiras. Era um dos nossos. Juro por minha alma.
O Conselho convocou uma reunião secreta na capela abandonada no alto da colina. Apenas sete líderes sabiam da existência do encontro, e mesmo assim, um dos caminhos estava vigiado. As pegadas recentes no barro não deixavam dúvidas.
Luigi sentou-se à frente, encarando os rostos um a um. Eram homens calejados, com olhos fundos e mãos marcadas pela enxada. Mas até o mais nobre entre os pobres é vulnerável à fome, ao medo — ou ao dinheiro.
— Há um traidor entre nós — disse ele, em voz baixa, mas firme. — E não será com gritos que vamos encontrá-lo, e sim com astúcia.
Padre Francesco propôs o uso de recados falsos. Cada membro do Conselho receberia uma informação diferente sobre um possível movimento contra os homens de Severino. Quem quer que fosse o informante, cairia na armadilha. Luigi hesitou, mas concordou. A colônia precisava de provas. A confiança, agora, era um luxo.
Na semana seguinte, espalharam os boatos como sementes ao vento. Uns diziam que os colonos marchariam rumo ao posto fiscal. Outros que queimariam o curral de um fazendeiro aliado de Severino. Em pouco tempo, as ações de retaliação revelaram a rota da informação: era Tarcísio Broletti, antigo amigo de Luigi, quem entregava tudo.
Tarcísio era um homem discreto, viúvo, sem filhos, que mantinha uma pequena lavoura de batata e criava três cabras magras. Havia viajado com a primeira leva de imigrantes no mesmo navio que os Bianchetti, e Luigi confiava nele como em um irmão.
Mas Tarcísio fora vencido pela desesperança. Após perder a esposa para uma febre e quase ver sua lavoura inteira engolida pela seca, aceitou o dinheiro e a proteção de Severino. Ramalho prometera terras, ferramentas e paz. Em troca, apenas um pouco de informação. “Nada demais”, dissera ele. “Só uns nomes. Uns encontros. Coisas pequenas.” Mas as coisas pequenas tinham consequências grandes.
Quando foi confrontado por Luigi, Tarcísio caiu de joelhos, soluçando.
— Eu só queria viver, Luigi. Só isso. Eles disseram que, se eu não ajudasse, iam me fazer desaparecer...
Teresa, firme ao lado do marido, não disse palavra. Mas seus olhos falavam: o perdão tinha limites.
O Conselho, dividido, votou pela expulsão. Tarcísio partiu naquela mesma noite, com uma trouxa nas costas e os olhos vazios. Ninguém o viu novamente.
A paz que se seguiu foi breve, mas necessária. A confiança havia sido ferida, mas não destruída. Luigi sabia que o maior perigo, agora, não estava apenas fora das matas, mas nas rachaduras invisíveis da comunidade que construíram com tanto esforço.
Numa madrugada abafada, enquanto escrevia um bilhete para o Padre Francesco com planos para fortalecer as defesas da colônia, Luigi escutou um som seco, metálico, vindo do galpão: clac.
Levantou-se devagar, pegou a espingarda que herdara de um colono falecido, e caminhou com passos leves como os de um caçador.
A porta do galpão estava entreaberta. No interior, só silêncio.
Mas no chão, uma pegada. Recente. Funda.
Não estavam sozinhos.
CAPÍTULO 8 — OS SINAIS DA TEMPESTADE
Colônia Nova Itália, Janeiro de 1879
O céu mudara de cor. Durante semanas, as nuvens cinzentas avançavam devagar como tropas em marcha, cobrindo o azul com uma camada espessa de chumbo. O vento soprava do sul, úmido, carregado de um cheiro estranho — uma mistura de terra encharcada, folhas apodrecidas e algo mais: o presságio da tragédia.
Luigi observava o horizonte como um homem que já perdera o direito à inocência. O tempo, antes aliado dos agricultores, tornava-se mais imprevisível a cada estação. Mas naquela manhã, havia algo diferente. Um silêncio fora do comum, como se até os pássaros tivessem se escondido.
— Vai chover grande, murmurou Matteo, agora com quase catorze anos, ao ver o pai guardar as ferramentas mais profundas no abrigo da sementeira.
Mas a chuva não era o pior dos presságios.
Na véspera, Angelo acordara com febre alta. A princípio, Teresa pensou que fosse o calor, ou um dente nascendo. Mas no dia seguinte, apareceram manchas vermelhas na pele, e logo depois, vieram os espasmos.
— Ele está com sarampo, disse Padre Francesco, com os olhos cansados, depois de ver outros dois pequenos colonos com os mesmos sintomas.
— E não está sozinho. Já são sete casos. Cinco deles entre crianças abaixo de cinco anos.
A peste — essa palavra proibida — circulava pelas trilhas da mata como um lobo invisível.
Nos dias que se seguiram, o pânico se espalhou mais depressa do que o vírus. Famílias começaram a erguer cercas improvisadas entre os terrenos. Crianças eram isoladas em celeiros. A escola da colônia foi fechada. Os abraços se tornaram acenos. A missa, por prudência, foi suspensa.
E como se não bastasse a doença, os ataques de capangas voltaram a se intensificar. Dois colonos que iam ao povoado trocar milho por sal desapareceram na estrada. Um deles, Giacomo Ferretti, foi encontrado uma semana depois, boiando no rio, o rosto desfigurado por peixes e a aliança arrancada do dedo.
Luigi convocou nova reunião do Conselho. Não mais na capela, agora vigiada por espiões. Encontraram refúgio em uma gruta esquecida entre rochedos cobertos de musgo, perto da antiga trilha dos tropeiros. Ali, os homens falaram pouco e ouviram muito.
— Severino sabe que estamos fracos, disse Luigi. — Ele espera que o medo faça o trabalho por ele. Que um de nós entregue os outros, como Tarcísio. Mas está enganado.
O plano que propôs era ousado. Assumir o controle da estrada que ligava a colônia ao vilarejo mais próximo. Era por ali que passavam suprimentos, cartas, medicamentos. Se eles a controlassem, poderiam negociar em pé de igualdade — ou ao menos, impedir que fossem estrangulados.
A resistência ganhou novo fôlego. Matteo, já quase um homem, cavava trincheiras sob a chuva. As mulheres passaram a se revezar entre cuidar dos doentes e preparar armadilhas rudimentares nas trilhas. Até o padre empunhou uma velha pistola enferrujada deixada por um soldado da guerra do Paraguai.
Mas o pior ainda estava por vir.
Certa manhã, Teresa encontrou Rosa desfalecida ao lado da bacia de roupas. O rosto pálido, os lábios secos. O mesmo vermelho da febre que tomara Angelo começava agora a tingir sua pele. Teresa apertou a filha contra o peito com uma força que parecia querer impedir a morte de entrar.
Luigi sentiu a alma ceder ao desespero, mas não caiu.
— Vamos enfrentar isso como enfrentamos o oceano, Teresa. Com coragem. Com fé. Um dia de cada vez.
Enquanto isso, os olhos de Severino também se voltavam para a colônia.
— Eles estão resistindo demais, resmungou para Ramalho, jogando as cartas sobre a mesa de madeira da fazenda. — Já deviam estar de joelhos. Mande um aviso. Queime uma casa. Pegue um deles. Um líder.
E Ramalho, silencioso e metódico, já escolhia o alvo.
O céu, enfim, desabou. A tempestade caiu sobre a floresta como se o céu tivesse se rasgado. Árvores inteiras vieram abaixo, estradas desapareceram sob rios de lama. As lavouras foram engolidas em minutos.
Mas no coração da mata, entre o medo e a febre, os colonos seguiam de pé. Toscos, mal armados, exaustos. Mas vivos.
O inimigo era invisível, mas eles também eram. E invisibilidade, naquele momento, era uma vantagem.
CAPÍTULO 9 — O MENINO QUE VEIO DA MATA
Colônia Nova Itália, Março de 1881
As chuvas haviam retornado mais cedo naquele ano, trazendo consigo um verde denso, quase sufocante. O rio das Antas corria barrento, arrastando galhos, folhas e a memória do verão que se despedia. Naquela manhã de céu baixo, Luigi e Matteo estavam consertando a roda de um carro de bois na margem quando Matteo interrompeu o trabalho e ergueu o braço, em silêncio.
— Pai... olha ali.
Entre os arbustos, com o corpo magro coberto por lama e olhos arregalados como de um animal encurralado, um menino os observava. Estava nu, com os cabelos longos e embaraçados. Tinha o peito arfando e um ferimento na perna, recente. A pele era bronzeada pelo sol, e havia tinta vermelha esmaecida em seu rosto — vestígio de um rito que ninguém ali compreendia.
Luigi levantou-se devagar, mãos visíveis, postura calma.
— Está tudo bem, pequeno. Ninguém vai te machucar, disse em português pausado, embora soubesse que ele não compreenderia uma única palavra.
O menino hesitou. O rio atrás dele rugia. Os olhos — olhos de quem já vira mais do que devia — avaliaram os dois homens por um instante longo, até que, com um gesto frágil, deu dois passos à frente e caiu.
Na colônia, foi Teresa quem o limpou, alimentou e enfaixou. O menino não falou nos primeiros dias. Só observava. Dormia com os olhos entreabertos, como um filhote selvagem. Quando Matteo tentou dar-lhe um nome italiano, Teresa o deteve.
— Não. Ele não veio da Itália. Não nasceu entre nós. Vamos chamá-lo como ele é.
Luigi assentiu. Na reunião da capela naquela semana, apresentou o menino como Tupi.
— A floresta nos deu esse filho. Ele veio de um mundo que existia antes do nosso.
Alguns colonos franziram o cenho. Houve cochichos, olhares desconfiados. Mas ninguém ousou contrariar Luigi publicamente.
Os meses seguintes revelaram um vínculo improvável. Tupi, silencioso como as corujas que espreitava no alto das árvores, demonstrava uma sabedoria prática que logo se mostrou inestimável. Mostrou a Teresa como usar a casca de uma árvore para aliviar as cólicas de Rosa, que ainda era frágil de saúde. Levou Matteo para a mata fechada e ensinou-lhe a encontrar mel sem provocar as abelhas. A Luigi, mostrou como rastrear uma anta apenas pelos galhos quebrados e fezes frescas no caminho.
Mas o mais impressionante era a forma como andava — com pés leves, como se fosse parte da floresta.
— Ele não pisa. Ele escorrega como sombra, dissera Giovanni Pellini, com um misto de admiração e receio.
Tupi, por sua vez, começou a absorver palavras. Primeiro, nomes de coisas: "fogo", "água", "pão", "machado". Depois, frases curtas. Sua língua nativa, entretanto, permanecia um enigma. Às vezes, à noite, ele falava dormindo, em sons guturais e cadenciados. Teresa ouvia da porta, com o coração apertado, como quem assiste a um espírito contar seus lamentos.
Em setembro daquele ano, uma onça atacou uma das plantações mais afastadas. Quando os homens se organizaram para caçá-la, foi Tupi quem conduziu o grupo. Aos pés de uma árvore, indicou com o dedo três marcas leves no barro.
— Ela está ferida. Vai voltar para beber água.
E estava certo. Na beira do açude, no cair da tarde, a viram pela primeira vez — bela, ágil e mortal. Foi Luigi quem fez o disparo certeiro. Quando o animal tombou, Tupi se ajoelhou ao lado do corpo e tocou a pelagem com reverência.
— Ela era guardiã da mata, murmurou, em italiano hesitante. — Agora a floresta vai nos testar.
Naquela noite, ninguém dormiu bem.
Com o tempo, o receio inicial dos colonos foi se esvaindo. Tupi participava das ceifas, das celebrações religiosas e até das aulas improvisadas que Teresa organizava para ensinar os filhos dos camponeses a ler. Mas sua presença também provocava conflitos ocultos.
Padre Francesco, embora prudente, não escondia sua apreensão:
— Ele não é batizado. Vem de outro mundo, de outro deus.
Luigi respondeu com firmeza:
— Ele é meu filho agora. A floresta o trouxe para nós quando mais precisávamos. Isso também é milagre.
Certa manhã, já próximo do fim do ano, Tupi levou Rosa até o topo de um morro ao norte da colônia. Lá, apontou para o horizonte.
— Antes, tudo era floresta.
— E agora?, perguntou ela.
Ele pensou por um instante e respondeu, com um sotaque carregado:
— Agora é floresta com casas. Com risos. Com fogueira... e tristeza também.
Rosa segurou a mão dele. Era a primeira vez que ele falava tanto de uma vez só.
— E você? De onde veio, Tupi?
Mas ele não respondeu. Só olhou para o céu.
E naquele silêncio, Rosa entendeu: há dores que não se dizem. Só se carregam. Como cicatrizes invisíveis deixadas pela mata.
CAPÍTULO 10 — UM FUTURO ESCULPIDO A MACHADO
Santo Antônio dos Mulli, Novembro de 1885
O sol do fim da tarde derramava seu ouro pálido sobre os telhados de madeira recém-encerada. A fumaça das chaminés subia preguiçosa, misturando-se ao cheiro de milho assado, pão fresco e aguardente. As cigarras cantavam alto nos pinheiros, como se celebrassem também a chegada da festa mais aguardada do ano: a colheita.
Luigi caminhava pela estrada batida da colônia com passos lentos, sentindo o chão firme sob as botas — aquele chão que, menos de uma década antes, fora puro matagal e promessas vazias. Agora, a pequena Santo Antônio dos Mulli florescia como um broto teimoso que rompe a terra dura para alcançar o sol.
À sua esquerda, erguiam-se construções sólidas: a igreja de pedra basáltica, construída com o esforço de doze famílias e a bênção do padre Francesco, cujas paredes abrigavam não apenas preces, mas memórias. Ao lado, a escola, onde Isabetta, a filha do velho Zanin, ensinava as letras com mãos firmes e coração italiano. Ali, crianças de todas as idades — filhos de pedreiros, agricultores, marceneiros — aprendiam a desenhar o futuro.
E não longe dali, terminava a estrada de terra vermelha que agora ligava a colônia a outras comunidades italianas da serra gaúcha — Conde D’Eu, Dona Isabel, Caxias. Por ali passavam carros de boi, tropas de mulas, e, às vezes, viajantes que traziam notícias de Porto Alegre ou São Paulo. O mundo começava a se abrir.
Luigi já não era apenas um imigrante. Fora nomeado representante dos colonos junto ao governo provincial, cargo que aceitara com relutância. Não se via como político, mas como alguém que aprendera, a golpes de machado, que para sobreviver era preciso mais que fé: era preciso voz.
Matteo, agora com dezessete anos, já não usava os calções curtos da infância. Havia crescido alto, com os olhos escuros e incisivos do pai e a leveza de espírito da mãe. Sonhava alto. Falava em máquinas, ferrovias, pontes sobre rios imensos. Queria estudar engenharia em São Paulo, na Escola Politécnica recém-fundada.
— Pai... quero construir caminhos, como o senhor construiu este lugar. Mas com pedras, com metal, com ciência.
Luigi o ouvira em silêncio naquela manhã. Depois de um longo gole de café, assentiu.
— Vá, Matteo. Voe. Só não esqueça de onde partiu.
Rosa, agora moça feita, herdara a tenacidade silenciosa de Teresa. Era disciplinada, determinada, e havia encontrado sua vocação entre os livros. Junto de Isabetta, ajudava a alfabetizar as crianças menores, inclusive as filhas dos tropeiros e os pequenos filhos de imigrantes alemães que agora começavam a chegar.
Com Rosa, a escola ganhara vida. Era ela quem lia histórias em voz alta — de reis, guerreiros e santos — encantando os pequenos, como se plantasse esperança com palavras.
— Cada letra é uma chave, dizia às crianças. E cada chave abre uma porta.
A festa da colheita reuniu mais de cem pessoas no largo da igreja. Havia polenta fumegante, salame curado, bolos de milho, galinha recheada, vinho tinto em garrafões de vidro. E havia música: acordeão, violino e vozes italianas que cantavam canções de saudade e alegria. Velhos choravam. Jovens dançavam. As crianças corriam soltas, como quem não carrega ainda o peso do passado.
Luigi, ao lado de Teresa, servia o vinho com um sorriso que não via seu rosto havia anos. Seus cabelos já traziam fios brancos, e suas mãos estavam calejadas como troncos. Mas naquele dia, ao erguer os olhos para a colina onde havia levantado, com as próprias mãos, a primeira casa, algo dentro dele se quebrou suavemente.
Era gratidão. E uma dor doce.
— Lembra quando chegamos, Teresa?, murmurou ele. — Nem estrada havia. Só mato e medo.
Teresa apertou-lhe a mão.
— Agora temos uma casa. Uma aldeia. Um destino.
Mais tarde, sozinho diante da janela de seu quarto, Luigi viu o crepúsculo pintar o céu em tons de cobre e cinza. Ouviu risos ao longe, o tilintar de copos, uma cantiga em dialeto vêneto. E então, por um momento, viu-se de novo jovem, deixando a aldeia em Padova, com os filhos pequenos e um futuro por inventar.
A Itália estava distante, sim — tão distante quanto os sonhos que deixara para trás. Mas ali, entre o mato e a esperança, ele encontrara uma nova pátria, não traçada em mapas, mas esculpida em madeira, suor e amor.
Um futuro que nascera de um machado golpeando a mata.
E Luigi Mulli sorriu, enquanto o último raio de sol desaparecia atrás das montanhas.
EPÍLOGO — A SEMENTE DOS BIANCHETTI
Santo Antônio dos Mulli, Março de 1902
O velho Luigi Bianchetti sentou-se no alpendre de sua casa, agora com a fachada firme e envernizada, envolta por um jardim que Teresa plantara aos poucos, flor por flor. À sua frente, os parreirais ondulavam como um mar verde sob o vento da tarde. Mais adiante, um grupo de crianças brincava entre os canteiros de milho e as árvores de pêssego, gritando palavras em português entremeadas de dialeto italiano. Entre elas, corria um menino de olhos muito escuros, o neto mais novo, Antonio, que herdara o nome do bisavô e o espírito curioso de Matteo.
Luigi tinha agora cinquenta e sete anos, mas seu rosto parecia mais velho. Não por fraqueza, mas por ter vivido demais — cada sulco em sua pele contava uma batalha vencida, cada ruga uma estação difícil, cada cicatriz uma escolha.
Desde a chegada àquela terra, um quarto de século se passara.
Matteo não vivia mais na colônia. Tornara-se engenheiro civil e morava em Campinas, onde ajudava a projetar ferrovias que cruzavam o Brasil. Rosa, por sua vez, permanecera ali, firme como uma rocha. Casara-se com um viúvo local, um marceneiro de mãos calmas e coração justo. Eles cuidavam da escola e também da pequena biblioteca comunitária — onde os livros, doados por padres, viajantes e professores, repousavam sobre prateleiras de madeira da mata.
Teresa envelhecera com dignidade. Embora a força dos braços já não fosse a mesma, seu olhar permanecia luminoso. Cuidava do lar com ternura, e suas mãos sabiam quando acariciar, quando rezar e quando ensinar.
E Tupi, agora um homem de quase trinta anos, morava nas bordas da mata, mas visitava a colônia como um irmão visita o lar da infância. Tinha a sabedoria ancestral do seu povo e a alma entrelaçada com a dos Bianchetti. Ensinava ervas e histórias, ensinava o tempo da terra, o silêncio da floresta e o respeito ao invisível. Era, em essência, a ponte que nunca se rompeu entre o velho mundo europeu e o espírito imemorial daquela terra.
Naquele dia, Luigi recebeu uma carta. O envelope vinha da Itália. Era de um primo distante, de Castelbelforte, a aldeia que ele deixara para trás. A carta falava de mudanças, de progresso, de tempos novos que haviam chegado ao Reino de Itália. Mas também falava de ausências. Muitos que Luigi amara — amigos, parentes, velhos vizinhos — já não existiam mais.
Ele a leu devagar, depois dobrou o papel com cuidado e o guardou entre os documentos da família, junto às passagens de navio, ao contrato de terra e a um pedaço seco de solo italiano que trouxera consigo no bolso da túnica em 1876.
Naquela noite, na ceia, Luigi pediu a palavra. Seus filhos, noras, netos e amigos estavam ali, em torno de uma longa mesa de madeira que ele próprio ajudara a esculpir, quando a colônia ainda era um amontoado de barracos.
— Quando chegamos aqui, disse com a voz pausada, não havia nada. Só mato, medo e esperança. Mas havia fé. Fé de que o amanhã poderia ser melhor do que ontem.
Fez uma pausa. O silêncio era reverente.
— Se hoje temos uma casa, uma igreja, uma estrada... se temos escola, música e até vinho nosso — não foi sorte. Foi escolha. Foi luta. Cada árvore que tombou nos deu abrigo. Cada semente que plantamos nos alimentou. E cada lágrima que derramamos regou este chão para que florescesse vida.
Ergueu um copo de vinho caseiro.
— A Itália foi o berço. Mas o Brasil foi o campo onde florescemos. Este chão é nosso, porque foi esculpido a machado, sim — mas também a suor, coragem e amor.
Naquela madrugada, enquanto todos dormiam, Luigi saiu sozinho e caminhou até o topo da colina. A mesma onde, quase trinta anos antes, levantara com as próprias mãos a primeira palhoça.
Ali, sob o céu repleto de estrelas, ajoelhou-se.
E, pela primeira vez em muitos anos, chorou.
Chorou pelos que ficaram. Pelos que partiram. Pelos que jamais chegaram. Chorou pelo menino que fora, pelo homem que se tornara, e pelo legado que deixava. A brisa lhe tocou o rosto com ternura. E ele sorriu.
A semente dos Bianchetti havia germinado.
E dali, daquele solo batido e sagrado, nasceria o amanhã.
FIM
Cronologia Final
🔹 Outubro de 1876
✒️ NOTA HISTÓRICA DO AUTOR
Este resumo de romance é uma homenagem ficcional — mas profundamente embasada — à saga dos milhares de imigrantes italianos que, entre o final do século XIX e início do XX, cruzaram o Atlântico em busca de uma vida digna no Brasil.
As condições na Itália, especialmente nas regiões do norte e sul, eram devastadoras: fome, desemprego, fragmentação social e uma reforma agrária ineficaz empurraram famílias inteiras a abandonar seus lares. Após a unificação italiana (1861), o sonho de unidade não se traduziu em prosperidade para os camponeses.
No Brasil, por outro lado, a abolição da escravidão e a expansão da agricultura demandavam novas mãos para o trabalho, especialmente nas lavouras de café. A política de colonização promovida pelo Império Brasileiro incentivava a vinda de imigrantes europeus, oferecendo terras — muitas vezes em condições precárias e distantes — com a promessa de autonomia e progresso.
Surgiram assim as colônias italianas, notadamente no Rio Grande do Sul, Santa Catarina e São Paulo. Essas comunidades enfrentaram dificuldades imensas: isolamento, doenças, o desafio do desmatamento e o convívio inicial tenso com os povos indígenas que ali viviam muito antes de sua chegada.
Os personagens deste livro são fictícios, mas suas experiências refletem com fidelidade o espírito de resiliência, fé e luta que marcou a trajetória de tantos. A figura de Tupi simboliza a ponte entre dois mundos — o europeu e o indígena —, uma reconciliação que a história real raramente permitiu com justiça.
A Colônia de Santo Antônio dos Mulli não existiu literalmente, mas é inspirada em diversas colônias reais como Nova Milano, Dona Isabel (atual Bento Gonçalves), Conde D’Eu (Garibaldi) e a Silveira Martins, conhecida com a 4ª Colônia Italiana, que ainda hoje preservam a herança linguística e cultural dos primeiros pioneiros.
Se esta obra conseguiu, ainda que por breves instantes, reconectar o leitor com a dor, a coragem e a esperança dos que vieram antes de nós, então seu propósito está cumprido.
— Piazzetta