Mostrando postagens com marcador imigraçao italiana no Brasil. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador imigraçao italiana no Brasil. Mostrar todas as postagens

segunda-feira, 18 de agosto de 2025

Giovanni Battista Lorenzo: Entre Dois Mundos

 


Giovanni Battista Lorenzo 

 Entre Dois Mundos


Giovanni Battista Lorenzo nasceu em 24 de novembro de 1855, em Longarone, uma vila pitoresca na província de Belluno, incrustada no coração das Dolomitas. Essas montanhas imponentes, com seus picos que pareciam tocar o céu, dominavam o horizonte como sentinelas eternas de uma terra de contrastes. Elas eram, ao mesmo tempo, um refúgio e um desafio: majestosas em sua beleza, mas implacáveis em sua dureza.

Filho de Matteo Lorenzo e Angela Ricci, Giovanni veio ao mundo em uma família humilde, que vivia do cultivo de uma terra que parecia resistir a cada arado, como se relutasse em ceder seu sustento. Matteo, um homem de poucas palavras, mas de força quase sobre-humana, acreditava que o solo era o legado mais valioso que poderia deixar aos filhos. Angela, por sua vez, era o coração da casa: uma mulher de espírito resiliente, cujo canto suave ao final do dia embalava os sonhos das crianças enquanto preparava o pão escasso que mal alimentava todos.

A infância de Giovanni foi uma luta constante contra as adversidades impostas por uma terra ingrata e os longos invernos que pareciam durar uma eternidade. A geada cobrindo os campos pela manhã era ao mesmo tempo uma lembrança da beleza fria das montanhas e do trabalho árduo que o aguardava. Desde muito jovem, ele ajudava o pai na lavoura, aprendendo a distinguir os sinais do céu – uma tempestade iminente, uma seca traiçoeira – que determinariam o sucesso ou o fracasso de cada colheita.

Mas o solo árido e o clima implacável não eram os únicos desafios. A região era assolada por uma pobreza endêmica que parecia inquebrantável. Famílias como os Lorenzo viviam à beira da subsistência, constantemente ameaçadas pelas forças da natureza e pela incerteza econômica de uma Itália que ainda lutava para encontrar sua identidade como nação. “É preciso mais do que força para prosperar aqui, Giovanni,” Matteo dizia ao filho enquanto limpava o suor da testa após um longo dia de trabalho. “É preciso fé... e talvez um pouco de sorte.”

Mesmo assim, Longarone não era apenas um lugar de privações. Havia momentos de profunda beleza e alegria que alimentavam os sonhos de Giovanni. As festas religiosas traziam vida à pequena vila, com procissões iluminadas por tochas e canções que ecoavam entre os penhascos. Era durante essas celebrações que Giovanni começava a imaginar um mundo além da estreita faixa de terra que sua família cultivava. Ele observava os comerciantes que vinham das cidades maiores, trazendo histórias de lugares distantes e exóticos, e sentia nascer dentro de si uma inquietação, um desejo de explorar o desconhecido.

Angela, sempre perceptiva, notava o brilho nos olhos do filho mais velho quando ele ouvia essas histórias. “Você tem algo especial, Giovanni,” dizia ela, acariciando seu rosto com mãos calejadas. “Um coração inquieto e mãos talentosas. Não deixe que este lugar sufoque seus sonhos.”

Essa inquietação encontrou uma saída inesperada na carpintaria. Ainda menino, Giovanni descobriu uma paixão por transformar madeira bruta em algo útil e belo. Com ferramentas simples emprestadas de um vizinho, ele passou a esculpir pequenos objetos – colheres, cadeiras, caixas. Sua habilidade chamou a atenção dos moradores da vila, que começavam a lhe pedir encomendas. Cada peça que criava era uma pequena vitória contra a dureza de sua realidade, e cada elogio recebido alimentava sua crescente confiança. No entanto, a dureza da vida no campo não poupava ninguém, e as colheitas incertas colocavam a família Lorenzo em constante risco de perder tudo. Giovanni cresceu ouvindo as histórias de famílias inteiras que deixaram a Itália em busca de uma vida melhor, atravessando mares e terras desconhecidas. Aos poucos, ele começou a se perguntar se não estava destinado a fazer o mesmo. Enquanto as montanhas que cercavam Longarone eram vistas por muitos como um escudo protetor, para Giovanni elas começaram a parecer uma prisão. Com o passar dos anos, a aspiração de Giovanni deixou de ser apenas um desejo infantil e transformou-se em um plano. Ele sabia que não podia permanecer em Longarone, confinado à pequena propriedade que sustentava sua família. Mas também sabia que partir não seria fácil. A lealdade à família e o amor por sua terra o amarravam, mesmo quando o chamado do desconhecido se tornava cada vez mais forte. 

Giovanni Battista Lorenzo era, naquele momento, um jovem dividido entre dois mundos: o passado, enraizado na tradição e no sacrifício, e o futuro, que prometia oportunidades além da compreensão, mas que exigiria coragem para desbravá-lo. Naquele pequeno vilarejo cercado pelas Dolomitas, nasceu o homem que um dia atravessaria continentes e se tornaria um símbolo de resiliência e transformação. Ainda jovem, Giovanni revelou um talento que parecia desafiar sua realidade: a carpintaria. Enquanto outros meninos de sua idade dedicavam-se exclusivamente ao trabalho no campo ou às obrigações domésticas, ele se encantava com a transformação da madeira bruta em algo útil e belo. Com ferramentas rudimentares emprestadas de um vizinho — um martelo, um formão e uma velha serra —, passou a esculpir objetos simples. Primeiro foram colheres e pequenos brinquedos, feitos quase como passatempo. Mas o que começou como uma curiosidade logo se transformou em um ofício promissor.

As peças de Giovanni tinham uma qualidade única. Cada curva de uma cadeira, cada detalhe entalhado em uma caixa parecia carregar não apenas habilidade técnica, mas uma alma própria. Seus vizinhos notaram. Em uma comunidade onde os bens eram escassos e tudo precisava ser funcional, os objetos criados por ele se destacavam por sua beleza. Logo, começaram a surgir pedidos: uma mesa para a cozinha, uma cruz para a capela local, até mesmo uma nova porta para a casa de um comerciante. O reconhecimento foi instantâneo. Matteo, seu pai, embora um homem rígido e preso às tradições agrícolas, não pôde deixar de notar o talento do filho. “A madeira é mais generosa contigo do que a terra é comigo, disse certa vez, entregando a Giovanni uma pilha de tábuas antigas que ele havia guardado por anos. Para Angela, sua mãe, o sucesso do filho era uma dádiva, um pequeno vislumbre de que talvez ele pudesse escapar do ciclo de dificuldades que parecia aprisionar as gerações anteriores da família.

Contudo, enquanto a reputação de Giovanni como carpinteiro crescia, a Itália ao seu redor mudava de forma. A recente unificação do país, proclamada em 1861, trouxe consigo a promessa de um futuro próspero para uma nação unificada, mas a realidade para os camponeses do norte era bem diferente. As mudanças políticas e econômicas concentravam as riquezas nas mãos dos grandes proprietários de terra e industriais, enquanto os pequenos agricultores e artesãos, como a família Lorenzo, enfrentavam uma crescente desigualdade.

Os impostos aumentaram. As terras comuns, que por gerações serviram como sustento para as famílias mais pobres, foram privatizadas ou simplesmente extintas. O custo de vida subiu enquanto os preços dos produtos agrícolas despencavam. A fome, que antes era uma ameaça sazonal, começou a parecer uma presença constante. Giovanni, observador por natureza, absorvia essas mudanças com a mesma sensibilidade com que esculpia seus trabalhos em madeira.

Ao mesmo tempo, as montanhas que cercavam Longarone, antes um símbolo de segurança e proteção, começaram a parecer uma prisão. Cada vez que entregava um de seus trabalhos, ouvia histórias de pessoas que haviam partido. Falavam de oportunidades nas cidades industriais do norte ou além-mar, em lugares tão distantes quanto a América do Sul ou os campos de trigo da França. Essas histórias eram carregadas de promessas, mas também de perigos. Os que partiam enfrentavam o desconhecido, deixando para trás famílias, tradições e tudo o que conheciam.

Giovanni, no entanto, sentia que não tinha escolha. Ele sabia que a carpintaria, por mais promissora que fosse em Longarone, estava limitada pelas necessidades básicas da vila. Ali, suas criações nunca seriam mais do que utensílios ou enfeites simples. “O mundo é maior do que estas montanhas,” pensava ele enquanto seus dedos corriam pelas ranhuras de um pedaço de madeira recém-polido. “Se eu quiser mais, preciso ir atrás.”

O desejo de partir crescia dentro dele como uma chama. Havia uma inquietação em seu espírito, algo que ele próprio não conseguia explicar, mas que o empurrava para além das fronteiras de sua terra natal. “Giovanni, coragem não é apenas enfrentar o perigo,” disse Angela certa noite, enquanto costurava à luz de uma lamparina. “É também saber quando deixar para trás aquilo que nos é querido. Você tem o talento e a vontade. Não deixe que o medo o segure aqui.”

Com essa convicção e o apoio silencioso da família, Giovanni começou a planejar sua partida. Ele sabia que o futuro exigiria mais do que apenas sua habilidade com madeira; seria necessária coragem, resiliência e uma fé inabalável em suas próprias capacidades. Contudo, havia também a dor de partir. Cada entalhe finalizado, cada peça concluída parecia uma despedida — um adeus ao menino que cresceu entre as Dolomitas e ao homem que agora estava prestes a desbravar um mundo desconhecido.

Giovanni ainda não sabia onde seus passos o levariam, mas estava decidido a caminhar. Aquele talento incomum para a carpintaria, combinado à determinação de transcender as dificuldades de sua terra natal, estava prestes a transformar não apenas sua vida, mas também o destino de todos ao seu redor.

Em 1876, aos 21 anos, Giovanni despediu-se de sua família em uma manhã gelada de primavera. As montanhas de Longarone, que durante toda sua vida haviam sido sua fortaleza e prisão, agora pareciam distantes enquanto o jovem caminhava em direção ao desconhecido. Com uma mala de madeira que ele mesmo havia construído, recheada apenas com algumas roupas e ferramentas básicas de carpintaria, Giovanni iniciou a longa jornada rumo à França, alimentado por um misto de ansiedade e esperança. A viagem foi um teste de resiliência. Ele cruzou vilarejos isolados, atravessou campos de trigo e florestas, viajando em trens lotados e enfrentando estradas lamacentas. Cada passo o afastava do conforto familiar, mas também o aproximava de um futuro que ele mal podia imaginar. Quando finalmente chegou a Lyon, uma das cidades mais vibrantes da França naquela época, foi tomado por um sentimento avassalador. As ruas eram um frenesi de atividade: vendedores ambulantes gritavam suas ofertas, carruagens passavam apressadas, e o ar era preenchido pelo cheiro de carvão queimado e pão fresco. Apesar do entusiasmo inicial, Lyon não o recebeu com o calor que ele esperava. Giovanni rapidamente descobriu que as promessas de trabalho eram apenas uma parte da história. Sem dinheiro suficiente para uma boa hospedagem, teve que se contentar com um quarto apertado em uma pensão cheia de outros imigrantes. As noites eram frias, e o barulho constante dos companheiros de quarto — alguns rindo, outros lamentando sua sorte — muitas vezes não o deixavam dormir.

Após dias batendo de porta em porta, Giovanni finalmente conseguiu emprego em uma oficina de marcenaria localizada em um dos bairros industriais da cidade. O lugar era um galpão amplo e escuro, iluminado apenas por lâmpadas a óleo que lançavam sombras oscilantes sobre as pilhas de madeira e ferramentas espalhadas. A oficina produzia móveis refinados para atender à crescente demanda da emergente classe burguesa, que buscava ostentar sua riqueza com peças elegantes e bem trabalhadas. O trabalho era árduo. Giovanni começava antes do amanhecer, limpando serragem e organizando ferramentas. Sob a supervisão de um mestre francês severo chamado Étienne Morel, ele passou semanas apenas observando, absorvendo cada movimento, cada técnica. Os marceneiros mais experientes usavam ferramentas que ele nunca tinha visto antes, como serras circulares movidas a vapor e fresas que podiam criar padrões ornamentais com precisão. Giovanni sabia que aquele era seu momento de aprender.

Mesmo com uma rotina exaustiva de 12 horas diárias, ele não permitiu que o cansaço ou as dificuldades o impedissem de avançar. Durante os intervalos, Giovanni estudava os projetos que os mestres deixavam sobre a bancada. Ele analisava as proporções das peças, os detalhes dos entalhes, os acabamentos que davam vida às criações. À noite, em seu quarto apertado, tentava replicar em pedaços de madeira descartada o que havia visto durante o dia. Com o tempo, ele não apenas adquiriu novas habilidades, mas começou a compreender o design sob uma perspectiva artística. Lyon estava no coração de uma Europa em transformação, e a influência de movimentos como o Art Nouveau começava a surgir nas curvas graciosas das cadeiras e nas formas sinuosas das mesas. Giovanni ficou fascinado. Para ele, a madeira deixava de ser apenas matéria-prima e se transformava em uma tela onde histórias podiam ser esculpidas.

Além das habilidades técnicas, Giovanni também se dedicou a aprender o idioma francês, inicialmente por necessidade, mas depois por paixão. As palavras eram difíceis no início, e ele muitas vezes se sentia como um estranho em meio aos diálogos rápidos de seus colegas. Mas ele persistiu, ouvindo atentamente as conversas na oficina e praticando com os outros imigrantes. Em pouco tempo, passou a se comunicar com confiança, o que lhe abriu novas oportunidades.

Apesar das dificuldades, ele começou a prosperar. Seu esforço não passou despercebido. “Esse italiano tem mãos de ouro,” ouviu Morel comentar certa vez com um cliente. A partir daí, Giovanni passou a ser encarregado de projetos mais desafiadores, como entalhar cabeceiras de cama intricadas e projetar cadeiras ornamentadas. Sua dedicação transformou-o de um simples ajudante em um marceneiro respeitado na oficina. Os anos em Lyon moldaram Giovanni tanto quanto ele moldava a madeira. Ele aprendeu não apenas a ser um melhor carpinteiro, mas também a navegar pelas complexidades de uma nova cultura, a lidar com preconceitos e a se manter firme diante dos desafios. À medida que sua reputação crescia, ele começou a pensar no que mais o mundo poderia oferecer.

Ainda assim, um pensamento constante o acompanhava: aquele não era seu destino final. A França havia sido um porto seguro, uma escola de ofício e perseverança. Mas Giovanni sabia que sua jornada ainda estava longe de terminar. Em suas noites solitárias, ele sonhava com um lugar onde pudesse usar o que aprendera para construir algo maior, algo duradouro. Esse lugar, ele começava a suspeitar, estava do outro lado do oceano.

Em Lyon, Giovanni não apenas aperfeiçoou suas habilidades na marcenaria, mas também teve seu olhar ampliado para a dura realidade dos imigrantes. Ele, que no início se sentira como um simples trabalhador em busca de um futuro melhor, agora se via parte de um grupo marginalizado e explorado. O preconceito contra os italianos era palpável em cada esquina e nas palavras sussurradas pelos franceses quando passavam por eles nas ruas. Trabalhavam com intensidade, mas eram vistos apenas como ferramentas descartáveis — mão de obra barata que preenchia os postos mais sujos e exigentes. Trabalhadores que, no entanto, estavam longe de ser bem-vindos em um país que ainda se via como superior, mais refinado, distante do atraso que, em sua visão, as massas imigrantes representavam.

Giovanni, embora integrado ao sistema de trabalho, jamais se acostumou com o tratamento cruel de seus colegas. Ele via como seus compatriotas eram frequentemente relegados aos piores postos na fábrica, mal pagos, forçados a viver em condições insalubres e a se submeter às humilhações diárias. Enquanto o suor e a poeira da oficina marcavam suas mãos e roupas, ele não podia deixar de notar que seus amigos italianos carregavam não apenas a carga física do trabalho, mas também o peso invisível do desprezo. Era um fardo que Giovanni carregava consigo, sentindo uma mistura de raiva e resignação ao observar o destino de seus companheiros.

Foi nesse contexto de luta e discriminação que ele conheceu Marie Duval, uma jovem francesa de espírito indomável e olhos brilhando com o desejo de escapar das rígidas convenções da sociedade francesa. Marie não era como as outras mulheres da cidade. Crescera em uma família que, embora de classe média, valorizava a liberdade de pensamento, e ela absorvia com paixão as ideias progressistas que circulavam nas universidades e salões de Lyon. Ela frequentava a mesma mercearia onde Giovanni comprava suas provisões e, com o tempo, eles começaram a trocar palavras sobre o cotidiano, sobre a vida e os sonhos que ambos tinham, tão diferentes e, ao mesmo tempo, entrelaçados pela busca por algo melhor.

Marie, com sua visão arrojada, acreditava na transformação pessoal, no poder de reinventar a vida, algo que Giovanni nunca havia considerado até então. Ela não o via como um simples imigrante, um carpinteiro italiano, mas como um homem com um futuro brilhante, capaz de transcender os limites impostos por sua origem e pelas condições de sua classe. Para Giovanni, ela representava tudo o que ele buscava: liberdade, mudança, renovação. Ela também, de alguma forma, viu nele a chama da determinação, aquela força quieta que o levava a trabalhar de forma incansável para melhorar a si mesmo, que o impulsionava a não se conformar com a dura realidade que o cercava. Era como se, ao lado de Marie, ele se visse refletido, e os sonhos que cultivava agora parecessem mais tangíveis, menos distantes.

Em 1880, depois de quatro anos de um romance silencioso, mas profundo, Giovanni e Marie se casaram em uma cerimônia simples, com poucos convidados, mas repleta de um significado que ambos carregariam para sempre. A felicidade, porém, foi breve e cheia de sombras. Mesmo com o cuidado e o amor que dispensaram à sua nova vida, não conseguiram escapar da crueldade do destino. Em poucos meses após o casamento, Marie ficou grávida e, com grande esperança, os dois esperaram pela chegada de seu primeiro filho. No entanto, a gravidez foi marcada por complicações, e o bebê nasceu prematuramente, enfraquecido por uma infecção que se espalhava pelos bairros operários da cidade. A morte do pequeno Luca, aos dois meses de vida, devastou ambos.

A dor de perder o filho foi profunda, mas, ao invés de se separarem, como tantos casais poderiam ter feito sob tamanha tragédia, Giovanni e Marie se uniram ainda mais, compartilhando o luto e o vazio que a morte do filho deixara em suas vidas. Mas a dureza da vida nos bairros pobres de Lyon continuou a cobrar seu preço. Em 1882, Marie ficou novamente grávida, com esperanças renovadas. No entanto, a infecção e a febre que assolaram o bairro atingiram a jovem mãe, que contraiu uma doença que, apesar de todos os esforços dos médicos da época, acabou levando também a segunda criança, uma menina que eles haviam nomeado Sophia. Com a perda da filha, Giovanni e Marie caíram em um abismo de desespero. A morte de dois filhos em tão pouco tempo era uma realidade cruel demais, algo que nenhum sonho de uma vida melhor poderia compensar.

Essa dor imensa os deixou com cicatrizes invisíveis, mas, ao mesmo tempo, uma determinação mais forte. Giovanni, que já havia se deparado com as injustiças da vida como imigrante, agora tinha diante de si a dolorosa realidade da perda, da fragilidade da vida. Marie, embora profundamente marcada pela dor, se recusava a se deixar consumir pelo luto. Ela sabia que a vida, por mais imprevisível e dolorosa, exigia que eles seguissem em frente. Ela olhou para Giovanni, com olhos ainda brilhando de determinação, e disse-lhe que não podiam se permitir afundar em seu sofrimento. "A vida, Giovanni, não é um destino que se espera, mas uma luta que se enfrenta", ela lhe disse com uma firmeza que ele nunca havia visto antes.

Essas palavras, carregadas de dor, mas também de força, foram a âncora que os manteve unidos. Marie se tornou a âncora emocional de Giovanni, e ele, por sua vez, a sustentou fisicamente. No entanto, o peso da tragédia não desapareceu. Giovanni, que começava a se destacar cada vez mais na oficina de marcenaria, agora se via não apenas como um carpinteiro, mas como um homem que tinha que lutar para garantir o futuro de sua família — uma luta que exigia muito mais que apenas habilidade com madeira, mas uma coragem que ele só agora começava a entender de verdade.

A experiência na França foi, sem dúvida, um aprendizado valioso para Giovanni. No entanto, cada dia vivido nas oficinas de Lyon, cada gesto de desprezo de um colega francês, cada olhar atravessado de um patrão que o via apenas como mais um imigrante sem identidade, uma sombra em meio à paisagem industrial, reforçava a amarga realidade de sua condição. Ele havia se tornado um mestre em sua arte, mas, ao mesmo tempo, se via como um estrangeiro condenado a permanecer à margem da sociedade. A lealdade que ele sentia por seus compatriotas italianos, com quem compartilhava os fardos do trabalho e as noites de solidão, não era suficiente para dissolver a barreira invisível que os separava dos franceses. Mesmo com o domínio das técnicas mais avançadas de carpintaria e marcenaria, mesmo com o conhecimento do francês, que ele falava com a fluência de um nativo, Giovanni jamais conseguiria ultrapassar o estigma de ser "o outro", aquele que havia cruzado as fronteiras em busca de algo que só lhe parecia alcançar à custa de sacrifícios imensuráveis.

Com o tempo, os pequenos sucessos que Giovanni conquistara na marcenaria — a criação de móveis finos, a satisfação de um cliente que apreciava o toque refinado de suas mãos — pareciam, paradoxalmente, mais amargos. Ele era respeitado como profissional, mas ainda se via excluído da verdadeira aceitação. O prestígio que sua arte lhe proporcionava não lhe dava acesso aos círculos sociais mais elevados. Era o preço que ele pagava por ser um imigrante. Seu nome italiano, a sonoridade estranha para os ouvidos franceses, sempre o lembrava de que havia uma linha invisível, mas tangível, que jamais poderia ultrapassar. Giovanni sentia-se, de certa forma, condenado a viver em uma terra onde suas habilidades eram reconhecidas, mas sua origem jamais seria inteiramente aceita.

Foi nesse momento de desilusão que, em uma noite fria de inverno, enquanto escutava conversas no bar local, ele ouviu pela primeira vez falar do Brasil — um país distante, nas Américas, onde a terra parecia abundante e as oportunidades pareciam multiplicar-se à medida que o olhar se estendia para as vastas planícies. O que lhe contaram, no entanto, não era apenas a promessa de riqueza, mas a possibilidade de um recomeço. Os relatos que ele ouviu falavam de um novo mundo, repleto de promessas de trabalho, de uma terra onde a mão-de-obra italiana era cobiçada e onde os imigrantes não eram relegados à periferia das grandes cidades, mas vistos como pioneiros, como aqueles que construíam o futuro de um país. Muitos falavam sobre as colônias italianas no sul do Brasil, onde os italianos começavam a se estabelecer, cultivando a terra e erguendo suas próprias comunidades.

Para Giovanni, a ideia de se afastar da França e recomeçar em uma terra desconhecida parecia, naqueles dias, uma chance de se libertar do peso da rejeição. Ele pensou nas promessas que a vida no Brasil oferecia: a chance de ser tratado como igual, de ser reconhecido por sua habilidade e coragem, de erguer sua própria casa e, quem sabe, de construir um nome que fosse respeitado por todos. Ele se imaginou, um homem de 25 anos, com a bagagem adquirida na França, com suas mãos calejadas pela marcenaria, mas com a mente agora aberta para o futuro. O Brasil era uma terra cheia de promessas, um país que parecia ser a fuga definitiva dos grilhões da marginalidade a que estava condenado na velha Europa.

A ideia de migrar para o Brasil parecia algo tangível, quase palpável, como se o destino estivesse finalmente lhe oferecendo uma oportunidade que ele não poderia ignorar. E foi com esse espírito de renovação e de esperança que Giovanni começou a preparar sua partida. A decisão de emigrar foi, sem dúvida, a mais difícil de sua vida. Deixar para trás os amigos com quem compartilhara a dureza da vida em Lyon, a esposa Marie que, embora ainda fosse seu suporte emocional, começava a sucumbir à melancolia de uma vida que nunca parecia ser a que eles haviam sonhado, significava não apenas uma mudança geográfica, mas um rompimento com tudo o que ele havia conhecido até então.

Aos 25 anos, Giovanni não apenas partia para uma nova terra, mas estava também quebrando as correntes invisíveis que o prendiam ao passado. Ele não sabia o que o esperava, mas tinha certeza de uma coisa: o Brasil representava a última chance de transformação, não apenas para ele, mas para sua família, para o legado que ele queria deixar para seus filhos, algo que nunca poderia construir vivendo à sombra de sua identidade imigrante na França.

E assim, com o coração apertado pela saudade, mas também pulsando de uma coragem renovada, Giovanni começou a se preparar para a longa jornada que o levaria para o desconhecido Brasil, um lugar onde o futuro, ao menos nas histórias que ouviu, era seu para ser conquistado. Na véspera de sua partida, enquanto observava o último pôr do sol sobre os telhados de Lyon, ele sentiu uma sensação de liberdade que nunca tinha experimentado antes. Como se, finalmente, estivesse deixando para trás não apenas uma terra, mas também uma vida inteira de limitações e de esperanças frustradas. E a cada passo que dava em direção ao novo, ele se sentia mais leve, como se estivesse, finalmente, começando a viver sua verdadeira história.

Em 1891, Giovanni, Marie e o filho sobrevivente, Luigi, finalmente se viram à beira de uma nova jornada, a qual esperavam com um misto de ansiedade e esperança. A decisão de emigrar para o Brasil não foi tomada de ânimo leve, mas sim carregada de promessas e expectativas. Após anos de luta na França, de perdas e de sonhos adiados, Giovanni sentiu que a travessia para o Brasil representava mais do que uma mudança de destino. Era, talvez, a última chance de garantir um futuro diferente para sua família, de estabelecer um novo começo que fizesse jus ao sacrifício de tudo o que haviam deixado para trás.

No entanto, o que deveria ser o alicerce de uma vida nova logo se mostrou repleto de dificuldades inesperadas. O navio que os levaria ao Brasil, o Andrea Doria, não era apenas um transporte, mas um cenário de promessas e perigos. O barco era grande e imponente, mas também apinhado de imigrantes, muitos deles em busca de um futuro melhor, como Giovanni. Ao longo da viagem, uma sombra de doença se espalhou silenciosamente entre os passageiros. Os primeiros sinais surgiram logo após a partida de Marselha, com febres altas e tosse seca. No início, ninguém deu muita atenção, afinal, viagens transatlânticas eram sempre longas e penosas. Mas, com o tempo, os sintomas se agravaram, e logo se tornaram uma epidemia à bordo.

O sarampo, uma doença de contágio rápido, mostrava-se particularmente devastador em um navio abarrotado de imigrantes, onde os cuidados médicos eram inexistentes. Luigi, o filho de Giovanni, que até então parecia saudável e cheio de vida, começou a apresentar sinais de fraqueza. Marie, incansável em sua dedicação, fazia o possível para proteger o menino, mas a enfermidade espalhava-se com a ferocidade de um incêndio em palha seca. Em pouco tempo, Luigi também estava gravemente adoecido, deixando os pais à beira do desespero. Giovanni, que sobrevivera à fome e à pobreza na Itália e na França, agora enfrentava a perspectiva mais aterradora de sua vida: a possível perda de seu único filho.

Nos corredores escuros do navio, os gritos angustiados de mães desesperadas misturavam-se ao silêncio resignado daqueles que já haviam perdido suas crianças. A atmosfera era sufocante, impregnada pelo cheiro de morte e pela tristeza insuportável de vidas ceifadas prematuramente. Cada dia que passava era um pesadelo prolongado, uma luta constante entre a esperança e o desespero.

Contra todas as expectativas, Luigi começou a reagir. Suas febres diminuíram e, embora enfraquecido, ele sobreviveu. A pequena Anna, ainda mais vulnerável devido à sua pouca idade, também contraiu a doença, mas foi cuidada com tamanha dedicação por Marie que conseguiu resistir. Giovanni, exausto, mas aliviado pela recuperação dos filhos, apertou a família contra o peito em uma promessa silenciosa de que nunca deixaria que algo assim os ameaçasse novamente.

A travessia, contudo, marcou a família de forma indelével. O navio, atravessando o Atlântico como um espectro carregado de dor, tornou-se um símbolo do preço que pagavam por um futuro incerto. Giovanni e Marie, gratos por terem sobrevivido ao pesadelo, sentiam o peso das perdas ao seu redor. Enquanto contemplavam o horizonte que anunciava a chegada ao Brasil, decidiram que, não importando os desafios à frente, a força que os mantivera unidos seria suficiente para vencer qualquer adversidade.

Quando finalmente avistaram a costa brasileira, uma sensação de alívio misturou-se com o medo do desconhecido. O Porto de Santos, uma das portas de entrada para o Brasil, era caótico e desordenado. A esperança de uma nova vida foi rapidamente obscurecida pela realidade dura e imprevisível da chegada. Ao desembarcarem, uma nova humilhação os aguardava: a quarentena obrigatória. Por dias, Giovanni, Marie e os poucos sobreviventes do navio foram mantidos sob vigilância, sem saber se poderiam finalmente tocar em terra firme. A ansiedade crescia a cada hora, enquanto os oficiais do governo inspecionavam meticulosamente cada um dos passageiros, buscando sinais de doenças que poderiam comprometer a saúde pública.

As condições no Porto de Santos eram deploráveis. As famílias de imigrantes aguardavam sob barracas improvisadas, em um clima de tensão crescente. Giovanni, que sempre soubera como lidar com a adversidade, sentia a pressão aumentando. As memórias da viagem — das doenças, das mortes, da dor irreparável pela perda de seu filho — pareciam se misturar com a frustração de não poder seguir em frente. O Brasil, que uma vez parecia um lugar de promessas, agora parecia um labirinto de obstáculos.

Os dias de quarentena passaram lentamente, com Giovanni e Marie refletindo sobre a jornada que haviam empreendido. Eles haviam cruzado o mar, superado tragédias, e, finalmente, chegaram a uma terra nova — mas o que os esperava? Uma sensação de incerteza pesava sobre seus corações, enquanto observavam o movimento frenético de pessoas e cargas no porto. O Brasil era, de fato, vasto e cheio de oportunidades, mas também era imenso, desconhecido e, como tudo o mais, repleto de desafios.

Quando finalmente foram liberados, Giovanni e Marie se aventuraram no interior do país, para o destino prometido aos imigrantes italianos: as colônias no sul. Mas a memória da tragédia e a saudade de Luigi jamais os abandonariam. Eles estavam longe de saber que sua luta para se reerguer em um novo mundo seria ainda mais árdua do que jamais imaginariam. O Brasil, com todas as suas promessas de prosperidade, aguardava-os com seus próprios fantasmas — mas Giovanni sabia que, como homem, ele não poderia mais voltar atrás. O futuro, com todos os seus desafios, era agora a única coisa que restava. E ele enfrentaria tudo com a mesma coragem que o havia levado até ali.

Quando finalmente chegaram a São Paulo, o coração de Giovanni batia mais rápido do que nunca, mas não era apenas a ansiedade de começar uma nova vida que o agitava. Ele estava fascinado pela cidade que se estendia à sua frente, um emaranhado de ruas movimentadas, mercados cheios de cores vibrantes, e uma mistura de rostos de todas as partes do mundo. A cidade, então, era um cenário pulsante de uma modernidade que contrastava fortemente com as montanhas e os campos austeros de Longarone. As primeiras impressões de Giovanni foram aquelas de um lugar vibrante, com uma energia que fazia o espírito se expandir. Era um lugar onde o futuro parecia se desenrolar diante dele, mas onde também a brutalidade das contradições sociais se manifestava de forma crua.

As promessas que haviam atraído milhares de imigrantes, como ele, estavam ali, estampadas nos panfletos e propagandas que falavam de terras férteis e empregos nos cafeeiros. Mas Giovanni logo percebeu que a realidade era muito mais complexa do que ele imaginara. Embora a ideia de se estabelecer nos grandes cafezais fosse tentadora para muitos de seus compatriotas, ele não se sentia atraído por essa vida. As promessas de uma abundância fácil de trabalho no campo pareciam vagas e distantes demais, e Giovanni sabia, no fundo, que a terra jamais seria sua verdadeira aliada. Ele tinha uma habilidade, uma arte refinada e trabalhada com o suor da experiência, e não era nos cafezais que essa arte se manifestaria. Giovanni não era um homem de terra; ele era um homem de madeira.

Foi então que ele tomou a decisão de buscar algo mais alinhado ao que sabia fazer de melhor. Ao se afastar dos campos que tantos imigrantes buscavam, ele se dirigiu para um bairro recém-emergente, que começava a atrair cada vez mais conterrâneos e também outros estrangeiros: o Brás. O bairro ainda estava se formando, mas já exalava uma atmosfera própria, marcada pela presença de comerciantes, artesãos e operários. Era o reduto da imigração italiana em São Paulo, onde os italianos começaram a se estabelecer, estabelecer seus negócios e criar novas famílias, mantendo-se unidos pela língua e pelas tradições.

Ali, Giovanni percebeu que havia uma comunidade que o receberia, não como um simples imigrante, mas como alguém com um ofício. As oportunidades que ele procurava não estavam nos grandes campos de café, mas nas pequenas oficinas e ruas comerciais do Brás, onde o som do martelo sobre a madeira, o cheiro da serragem e o esforço silencioso de um artesão moldavam o caráter de um lugar. Ele então arrumou seu pequeno estúdio, uma oficina modesta, mas cheia de potencial, onde as mãos calejadas por anos de trabalho duro na França encontraram um novo lar.

A transformação do Brás era rápida, e Giovanni sentia que poderia se tornar uma parte fundamental dela. A demanda por móveis e objetos de decoração estava crescendo entre os imigrantes italianos que se estabeleciam na cidade, muitos dos quais ainda estavam acostumados à vida no campo e à simplicidade de suas casas na Itália. Ele percebeu que poderia aplicar os conhecimentos adquiridos na França, onde aprendera a trabalhar com as mais sofisticadas técnicas de marcenaria, para criar peças que não apenas atendiam às necessidades de seus compatriotas, mas que também traziam um toque de arte para a vida simples dos imigrantes.

Mas, como tudo na vida, os desafios eram constantes. Giovanni logo se viu enfrentando as dificuldades de um mercado competitivo, com vários outros imigrantes tentando conquistar seu espaço. O bairro do Brás, embora florescendo, ainda estava longe de ser o centro próspero que viria a ser nas décadas seguintes. O trabalho era escasso, os preços dos materiais variavam frequentemente e, muitas vezes, Giovanni tinha que negociar com fornecedores que cobravam o preço da escassez. Além disso, ele sabia que ainda havia uma barreira invisível que o separava dos paulistanos nativos — o preconceito que muitos imigrantes enfrentavam, não apenas de outras etnias, mas também de uma elite brasileira que via os italianos como trabalhadores inferiores.

Porém, Giovanni, com sua perseverança inabalável e o caráter forjado pelas dificuldades passadas, não se deixou abater. Ele conheceu a fundo a sua arte e percebeu que, para prosperar, deveria trazer algo único para o mercado. Ele começou a elaborar móveis e objetos não apenas utilitários, mas que carregavam uma beleza estética que refletia a tradição italiana, mas também o toque moderno que ele aprendera na França. A sua carpintaria passou a ser procurada por aqueles que queriam mais do que simples mobília: eles queriam um pedaço de arte, algo que representasse o sonho de uma nova vida em terras distantes.

A fama de Giovanni se espalhou lentamente pelo Brás e, com o tempo, ele foi ganhando a confiança de uma clientela fiel. No coração de São Paulo, uma cidade em constante crescimento e mudança, ele construiu não apenas móveis, mas também sua própria reputação. Ele já não era mais um simples imigrante italiano que chegara ao Brasil com o peso da dor da perda e da saudade. Ele era um mestre carpinteiro, um homem que transformava a madeira em obras-primas, que traziam um pedaço de sua Itália para o novo mundo. Giovanni, agora mais do que nunca, sentia que sua luta tinha valido a pena. E, por mais que ainda restassem obstáculos, ele sabia que, com sua habilidade e determinação, o Brás seria seu ponto de partida para uma nova vida, em uma nova terra, onde a sua arte e o seu espírito encontrariam um lar.

A "Fábrica de Móveis Lorenzo", pequena e modesta no início, se transformou em um verdadeiro refúgio de criatividade e habilidade sob as mãos de Giovanni. Quando ele abriu as portas da oficina, ela era um espaço simples, com paredes de madeira não tratada, onde o cheiro da serragem pairava no ar, e as ferramentas que ele trouxera da França – algumas já gastas e outras novas – se alinhavam em bancadas rústicas. A produção, no começo, era voltada para o mobiliário simples: mesas, cadeiras e armários de madeira, peças práticas que atendiam à crescente demanda dos imigrantes italianos que chegavam a São Paulo. Eram móveis funcionais, desenhados para sobreviver à pressão de uma vida sem grandes luxos, mas ainda assim, Giovanni tinha algo a mais em mente. Ele não queria apenas criar utilitários, ele queria criar beleza.

Foi a partir de um projeto simples de uma cama de casal, encomendada por um imigrante italiano que se estabelecera em uma das vielas do Brás, que Giovanni teve a primeira grande ideia. Ele percebeu que as peças de mobiliário podiam ser mais do que apenas funcionais. Ele poderia aplicar a sofisticação e a elegância das tradições artísticas que aprendera nas oficinas de Lyon, misturando o estilo clássico europeu com o toque único da cultura italiana que ele carregava em sua alma. Introduziu ornamentos refinados, delicados entalhes nas cabeceiras das camas, arabescos nas gavetas e até detalhes inspirados nas igrejas e nos palácios da Itália. O resultado foi um mobiliário que parecia ter saído das mãos de um mestre artesão, feito não apenas para ser usado, mas para ser admirado. As linhas das peças de Giovanni eram elegantes, mas imbuídas de um toque de rusticidade, como se a madeira ainda carregasse consigo o espírito das montanhas de Longarone.

Logo, sua reputação se espalhou pelas ruas do Brás, e, pouco a pouco, também alcançou os bairros mais abastados da cidade. A "Fábrica de Móveis Lorenzo" tornou-se sinônimo de qualidade e sofisticação. Giovanni não se contentava em atender apenas os imigrantes; ele desejava ir além. Ele queria conquistar os paulistanos nativos, especialmente os novos ricos que emergiam da rápida industrialização de São Paulo. Ele sabia que a cidade estava mudando, que novas classes sociais estavam surgindo, e que sua chance de prosperar dependia de sua habilidade em se adaptar às demandas da elite emergente. Os paulistanos mais ricos, ávidos por mostrar seu status, procuravam móveis que não fossem apenas peças utilitárias, mas símbolos de seu novo poder e riqueza. Giovanni foi perspicaz o suficiente para perceber essa demanda.

Foi assim que ele passou a introduzir, de forma gradual, os elementos do estilo rococó e o neoclássico nas peças que produzia. As mesas de jantar ganharam detalhes intrincados, com arabescos dourados que remetiam aos palácios de Veneza e Roma. As estantes, projetadas para as bibliotecas dos novos ricos, eram adornadas com colunas esculpidas e superfícies polidas que brilhavam sob a luz suave dos salões. Ele não apenas criava móveis, mas verdadeiras obras de arte, peças que falavam do gosto refinado e da ascensão social dos que as compravam. Seu trabalho foi rapidamente reconhecido pela alta sociedade paulistana, que começou a encomendar peças personalizadas para seus palacetes, que começavam a surgir nas áreas mais nobres da cidade, como a Avenida Paulista.

Em 1895, Giovanni foi convidado para trabalhar em um projeto grandioso: o mobiliário de uma nova igreja que estava sendo erguida no bairro do Bexiga, um centro vibrante da comunidade italiana em São Paulo. A igreja, dedicada a São Pedro, seria um marco na cidade, um símbolo da fé que unia tantos imigrantes. Giovanni se sentiu profundamente honrado com o convite, e isso não apenas fortaleceu sua posição como mestre carpinteiro, mas também lhe deu a oportunidade de trabalhar em um projeto que realmente representava a fusão de suas raízes italianas com sua nova vida no Brasil. O altar da igreja foi esculpido por suas mãos, delicadamente adornado com entalhes que capturavam a essência da religiosidade e da história da Itália. As cadeiras de madeira, projetadas para os fiéis, eram simples, mas elegantes, refletindo a mistura de austeridade e beleza que ele tanto prezava.

O sucesso de Giovanni não se limitava apenas aos móveis que ele produzia para os imigrantes ou para a classe alta de São Paulo. Ele começou a ser chamado para trabalhar em projetos ainda mais desafiadores, como o mobiliário de grandes palacetes na Avenida Paulista, onde a elite paulistana consolidava sua presença. As casas da alta sociedade não eram apenas espaços de moradia; eram palácios que representavam a ascensão de uma nova classe social, e esses espaços exigiam móveis à altura de sua grandiosidade. Giovanni se destacou em cada um desses projetos, criando peças que deslumbravam pela beleza e pela funcionalidade.

As encomendas começaram a chegar de todas as partes da cidade, e a oficina de Giovanni passou a ser um lugar de constante movimento. Ele começou a contratar ajudantes e treinou alguns dos filhos dos imigrantes italianos, transmitindo sua arte e sua visão a uma nova geração. A “Fábrica de Móveis Lorenzo” se expandiu, e Giovanni viu seu nome, que antes era sinônimo de um simples carpinteiro, se tornar uma marca registrada da sofisticação paulistana.

Com o tempo, as peças criadas por Giovanni não eram mais apenas móveis; elas se tornaram símbolos de uma nova era, a era da industrialização e da modernidade de São Paulo, mas também um reflexo da tradição e da alma dos imigrantes que contribuíam para essa construção. Ele, um homem simples vindo das montanhas de Longarone, se tornara uma figura central no coração da cidade, respeitado não apenas por sua habilidade, mas pela sua capacidade de transformar um ofício humilde em uma arte admirada por todos.

E assim, a história de Giovanni Lorenzo se entrelaçou com a própria história de São Paulo, uma cidade que, tal como ele, havia sido moldada pela persistência, pelo trabalho árduo e pelo desejo incessante de construir um futuro melhor.

Os anos que seguiram à chegada de Giovanni e sua família ao Brasil foram, em muitos aspectos, uma luta silenciosa contra o peso da saudade. A vastidão das terras paulistas, com suas paisagens exóticas e seu ritmo frenético, contrastava fortemente com as montanhas suaves de Longarone. A saudade de sua terra natal era um fardo diário que pesava em seu coração, uma sensação de perda constante que parecia não diminuir, apesar das promessas de um futuro melhor. A falta do cheiro familiar das pinheirais e o som do rio Piave, que corria por entre as aldeias, parecia ecoar em sua mente a cada novo amanhecer.

Entretanto, foi a morte de Marie, sua amada esposa, em 1905, que colocou sua resistência à prova. Marie, com sua personalidade forte e espírito livre, sempre fora a âncora emocional de Giovanni. Ela era a luz que o guiava quando as dúvidas sobre o futuro o assombravam e o consolo que ele procurava nas noites longas, quando a solidão da cidade grande ameaçava consumi-lo. Quando ela adoeceu, a febre tifoide tomou conta de seu corpo com uma velocidade implacável. Ele a viu, debilitada, lutar contra a doença, os olhos ainda cheios de vida, mas o corpo fragilizado. Mesmo com todos os cuidados que ele e os médicos conseguiram proporcionar, Marie não resistiu, e ela se foi.

Sua morte deixou um vazio profundo no coração de Giovanni. Os dias seguintes foram uma sequência de uma dor esmagadora, marcada pela perda de não apenas a esposa, mas também de uma parte de si mesmo. A vida na cidade de São Paulo, antes uma terra de promessas, agora se tornara um lugar de solidão. As ruas movimentadas, a cultura pulsante e a energia frenética da metrópole pareciam ainda mais insuportáveis agora, sem a presença de Marie ao seu lado.

No entanto, como um homem de fé, Giovanni procurou refúgio no que lhe era mais sagrado: sua crença religiosa. A igreja que ele ajudara a construir, um marco da comunidade italiana na cidade, tornou-se o seu porto seguro. Os domingos, antes um dia de descanso e conforto familiar, agora eram ocasiões de reflexão e de busca por consolo. Giovanni encontrou nas preces um meio de lidar com a dor que o consumia. Ele passava horas em silêncio na igreja, os olhos voltados para o altar, buscando nas palavras sagradas o conforto que não encontrava mais na vida cotidiana. Era ali, rodeado pela madeira polida das bancadas que ele mesmo havia projetado, que ele sentia um vínculo com a esposa falecida. Como se, de alguma maneira, a presença de Marie ainda estivesse presente, nas formas e nos detalhes que ele tinha criado com tanto carinho.

A comunidade italiana, que começava a florescer ao seu redor, também ofereceu um consolo inesperado. Os imigrantes, que haviam partido de terras distantes com esperanças e sonhos semelhantes aos de Giovanni, se tornaram uma família substituta para ele. Havia um senso de irmandade entre eles, uma compreensão silenciosa do que significava a perda, a luta diária para se manter em pé, e a força que era necessária para seguir em frente. Eles compartilhavam mais do que um idioma comum; compartilhavam uma história de superação e resiliência.

O bairro do Brás, que antes havia sido apenas um local de trabalho, agora se tornava para Giovanni um lugar de pertencimento. Ele se tornou uma figura central na vida dos italianos que ali viviam. Não apenas pelo seu trabalho como carpinteiro, mas também pela sua postura de líder silencioso, alguém que havia enfrentado suas próprias batalhas e superado tantas adversidades. Ele foi chamado para organizar festas tradicionais italianas, para ser conselheiro das famílias que, como ele, lutavam para manter vivas suas tradições e valores, longe de sua terra natal.

Com o tempo, Giovanni começou a perceber que, embora a dor da perda nunca desaparecesse por completo, ele podia encontrar novas formas de preencher o vazio deixado por Marie. A sua fé, os laços que criara com os outros imigrantes e o profundo amor por sua arte foram as forças que o mantiveram em pé. Ele transformou sua dor em força criativa, dedicando-se ainda mais ao seu trabalho, criando peças de mobiliário que, agora, carregavam a emoção e a memória de sua perda.

No entanto, apesar das circunstâncias difíceis, Giovanni nunca perdeu sua fé em um futuro melhor. Ele soubera, desde a chegada ao Brasil, que a vida nunca seria fácil, mas que o esforço, a dedicação e a habilidade poderiam transformá-la. Ele, assim como os outros imigrantes, havia deixado para trás um mundo que não oferecia muitas possibilidades, mas encontrara, na terra desconhecida, a chance de construir algo novo. E, ao fazer isso, ele manteve viva a memória de Marie, que sempre acreditara no poder do recomeço e na capacidade humana de se reinventar.

À medida que o tempo passava e Giovanni se consolidava como um dos maiores carpinteiros de São Paulo, seu filho Luigi, agora um jovem adulto, começava a se destacar de maneira notável. Luigi, que cresceu no seio de um lar de imigrantes, nunca teve a chance de esquecer as dificuldades que sua família enfrentara nos primeiros anos de chegada ao Brasil. No entanto, ao invés de ser consumido por essas lembranças, ele as usou como combustível para a sua própria determinação em criar algo ainda mais grandioso do que seu pai. Desde a infância, Luigi havia demonstrado um talento nato para a engenharia e a mecânica, fascinado pelas engrenagens das máquinas e pelas possibilidades que elas ofereciam. Enquanto Giovanni se concentrava nos aspectos artísticos da carpintaria, Luigi começava a vislumbrar um futuro em que a tradição do trabalho manual pudesse ser aprimorada pelas inovações tecnológicas que estavam transformando o mundo ao seu redor.

Aos 18 anos, Luigi foi enviado por Giovanni para a Escola Técnica de São Paulo, um centro de aprendizado que se tornaria o alicerce de sua formação. Lá, ele aprendeu sobre as mais novas técnicas de manufatura, o uso de máquinas e ferramentas de última geração, e, talvez o mais importante, a aplicação desses conhecimentos na prática. Quando voltou para a oficina de seu pai, Luigi trouxe consigo não apenas um diploma, mas uma visão renovada sobre o futuro do trabalho artesanal. Ele compreendia a importância de preservar a qualidade das criações de Giovanni, mas também sabia que a chave para o sucesso estava em combinar a arte tradicional com as novas tecnologias.

Foi nesse contexto que Luigi se tornou o braço direito de Giovanni. Ele introduziu inovações revolucionárias na oficina, com a ajuda das máquinas que ele trouxera da Europa, como serras elétricas e lixas automáticas, que agilizaram a produção sem comprometer a precisão e o acabamento das peças. A oficina, que antes era um espaço modesto onde Giovanni criava com suas próprias mãos móveis de madeira esculpida, rapidamente se transformou em um ateliê moderno, eficiente e capaz de atender a uma demanda crescente. Luigi também treinou outros carpinteiros e ajudou a estabelecer um sistema de trabalho mais organizado, onde cada peça de mobiliário passava por etapas específicas, desde a concepção até o acabamento final. Ele supervisionava de perto todos os processos, sempre buscando a excelência e a perfeição, mas também abraçando as oportunidades que a industrialização oferecia.

Com a entrada das máquinas e da eficiência no processo de produção, a “Fábrica de Móveis Lorenzo” se tornou muito mais do que um simples negócio. O ateliê se transformou em um símbolo de resiliência, uma prova de que os imigrantes italianos não apenas sobreviveriam no Brasil, mas prosperariam. A oficina não era apenas uma fonte de renda para Giovanni e Luigi, mas também para dezenas de outros italianos recém-chegados que viam na “Fábrica de Móveis Lorenzo” uma chance de recomeçar, uma oportunidade de construir um futuro melhor para suas famílias. Muitos deles tinham histórias semelhantes às de Giovanni: tinham deixado suas terras na Itália em busca de uma vida mais digna, mas agora, em São Paulo, encontravam-se diante da dura realidade da imigração. No entanto, dentro da oficina, sentiam que pertenciam a algo maior, a uma comunidade que compartilhava não apenas o esforço diário, mas também o sonho de um futuro mais próspero.

Luigi, com sua visão de futuro, também soubera expandir os horizontes da empresa. Ele buscou diversificar a produção, introduzindo novos estilos de móveis que atendiam à crescente classe média brasileira. A produção de móveis finos para igrejas e palacetes, iniciada por Giovanni, continuou a prosperar, mas Luigi também começou a se aventurar na criação de móveis mais acessíveis para as famílias que viviam nos bairros emergentes de São Paulo. Seus móveis, de um design elegante e, ao mesmo tempo, prático, passaram a ser símbolo de status para a nova classe média paulista. Ao mesmo tempo, os projetos mais luxuosos que Giovanni ainda supervisionava continuaram a atrair os mais abastados, fazendo com que a “Fábrica de Móveis Lorenzo” se tornasse uma das mais reconhecidas da cidade.

O crescimento da oficina não se deu apenas no aspecto material, mas também na qualidade de vida da comunidade italiana em São Paulo. Giovanni, sempre guiado por seu espírito de solidariedade, criou um ambiente no qual seus empregados eram tratados com dignidade e respeito. Muitos dos trabalhadores que começavam a vida como simples operários foram promovidos a carpinteiros e, com o tempo, abriram suas próprias oficinas ou se tornaram supervisores na “Fábrica de Móveis Lorenzo”. Para Giovanni e Luigi, o sucesso não estava apenas no lucro, mas na capacidade de ajudar aqueles que, como eles, haviam atravessado mares e continentes em busca de uma vida melhor. Com o tempo, o ateliê tornou-se um pilar da comunidade italiana no Brás, um lugar onde o trabalho árduo e a solidariedade prevaleciam, uma verdadeira família forjada não apenas pelo sangue, mas também pela luta e pelos sonhos compartilhados.

A "Fábrica de Móveis Lorenzo", agora próspera, era um símbolo do que a dedicação, a visão e a colaboração podiam realizar. Giovanni, já envelhecido, viu com orgulho como seu legado era preservado e expandido por seu filho, que se tornara não apenas seu sucessor, mas seu parceiro em todos os sentidos. Quando Giovanni olhava para o sucesso da oficina, via não apenas os móveis lindamente esculpidos, mas também as histórias de vida que ali se entrelaçavam. Cada peça que saía da “Fábrica de Móveis Lorenzo” era um testemunho da resiliência de uma família, de uma comunidade e, acima de tudo, de um imigrante que, com suas próprias mãos, construiu seu futuro em uma terra estrangeira.

Nos anos 1930, Giovanni Lorenzo já era uma figura amplamente reverenciada na cidade de São Paulo, um verdadeiro mestre artesão que havia conquistado não apenas o respeito de sua comunidade, mas também a admiração de clientes abastados e figuras de destaque na sociedade paulista. Sua obra, que inicialmente começara em um pequeno ateliê no bairro do Brás, havia se espalhado por toda a cidade, e seus móveis elegantemente esculpidos eram vistos não apenas em lares de classe alta, mas também em igrejas, escolas e até mesmo no mobiliário de edifícios públicos. Cada peça que saía de sua oficina trazia consigo a alma de um imigrante que atravessara oceanos e continentes para construir uma nova vida, e agora sua habilidade e dedicação se refletiam nas formas refinadas e nas técnicas de carpintaria que se tornaram sua assinatura.

Giovanni, agora com mais de 70 anos, havia se tornado sinônimo de excelência no ofício. Seus móveis não eram apenas objetos funcionais, mas também obras de arte que evocavam o esplendor da tradição italiana, misturada com as influências do novo mundo que ele havia adotado como lar. Suas criações ornamentadas com detalhes intrincados, seus trabalhos em madeira maciça e suas entalhes delicados tornaram-se cobiçados por aqueles que podiam pagar por luxo, mas também eram admirados por quem entendia o valor do trabalho manual. A sua habilidade e o reconhecimento que conquistara ao longo de sua vida o transformaram em uma lenda viva da carpintaria paulistana, e sua oficina, embora reduzida em tamanho, continuava a produzir peças de uma qualidade incomparável.

No entanto, Giovanni não se via como uma simples figura do passado, um mestre artesão que se rendia à tranquilidade da aposentadoria. Muito pelo contrário, ele se sentia impelido a continuar sua obra, a perpetuar o legado de sua família e de sua comunidade. Sentia que seu trabalho estava longe de ser concluído e que, enquanto fosse capaz, deveria transmitir os conhecimentos que acumulou a outros, especialmente aos jovens que começavam a se interessar pelo ofício da carpintaria. Ele acreditava que o verdadeiro valor de um mestre não estava em acumular riqueza ou fama, mas em transmitir seu conhecimento e experiência, em forjar novas gerações de trabalhadores qualificados que continuariam o que ele iniciara.

Por isso, ele dedicava grande parte de seu tempo ao treinamento de jovens aprendizes que chegavam até sua oficina, vindos de diferentes bairros de São Paulo, muitos deles filhos de outros imigrantes italianos ou de brasileiros que viam na carpintaria uma chance de conquistar uma vida melhor. Giovanni acreditava profundamente no valor do aprendizado prático e na disciplina que o ofício exigia. Sob sua orientação, os jovens aprendiam a trabalhar a madeira com a mesma paixão e respeito com que ele sempre a tratara. Mas mais do que isso, Giovanni ensinava-lhes sobre a história do trabalho manual, o significado de cada entalhe e de cada corte, e como a carpintaria poderia ser uma forma de expressão pessoal, um modo de deixar uma marca indelével no mundo, como ele fizera ao longo de sua vida.

Entre os aprendizes que Giovanni formou ao longo dos anos, muitos se tornaram mestres em seus próprios direitos, e alguns até abriram suas próprias oficinas, dando continuidade ao legado do mestre Lorenzo. A "Fábrica de Móveis Lorenzo" ainda existia, embora sob a liderança de seu filho Luigi e de novos gerentes que Giovanni havia treinado com o mesmo cuidado e atenção aos detalhes que ele exigia de si próprio. Giovanni, contudo, preferia manter-se ativo dentro da oficina, supervisionando os projetos mais importantes e assegurando que os padrões que ele estabelecera fossem mantidos, mesmo com o crescimento do negócio e a modernização do processo de produção.

Além de seus móveis, Giovanni também continuava a ser procurado por projetos especiais, como a criação de mobiliário para igrejas e escolas, onde sua habilidade em trabalhar com madeira e sua atenção ao simbolismo e à função do mobiliário religioso garantiam-lhe um lugar de destaque. Um de seus maiores projetos na década de 1930 foi a renovação do mobiliário da Igreja de São Bento, um dos templos mais importantes de São Paulo. Giovanni projetou um altar de madeira que mesclava o estilo barroco italiano com o moderno, criando uma peça que seria admirada por gerações. Ele também dedicou seu tempo ao restauro de móveis antigos, trabalhando com esmero para devolver sua beleza original, ao mesmo tempo em que integrava elementos contemporâneos nas novas peças, sem perder a essência de seu trabalho.

Entretanto, sua verdadeira paixão continuava sendo a preservação do ofício. Ele ainda se reunia frequentemente com outros mestres carpinteiros, discutindo técnicas, trocando histórias e ensinando os segredos que ele mesmo aprendera ao longo de décadas. Giovanni sabia que sua vida estava chegando ao fim, mas sentia que seu espírito continuaria a viver através daqueles a quem ele havia transmitido sua arte. Ele não via sua oficina como apenas um negócio, mas como um templo da tradição artesanal, um lugar onde o trabalho manual e a dedicação à perfeição se entrelaçavam, criando algo mais duradouro do que qualquer riqueza material.

Com o peso dos anos, Giovanni sentiu que sua força física já não era mais a mesma. Seu corpo, marcado pelo tempo e pelo trabalho árduo, exigia mais descanso do que antes. A saudade de sua terra natal, que nunca o deixara completamente, agora se tornava uma companhia constante. Porém, ele encontrou conforto na comunidade que havia ajudado a construir. Sua relação com Luigi e seus netos, que começavam a se interessar pelo ofício de carpinteiro, era profunda e solidificada pelo respeito mútuo e pelo amor pela profissão. Giovanni não temia a morte; ele sabia que, de certa forma, sua vida se perpetuaria nas mãos daqueles que, como ele, haviam aprendido a trabalhar a madeira e a construir algo duradouro com suas próprias mãos.

Assim, enquanto a cidade de São Paulo continuava a crescer e a se modernizar, Giovanni Lorenzo, com sua habilidade, sua fé e sua dedicação, se tornava uma lenda viva. O homem que um dia saíra das montanhas de Longarone, com nada mais do que suas ferramentas e sua coragem, agora via seu nome imortalizado em cada móvel que saía de sua oficina. A "Fábrica de Móveis Lorenzo" continuava a prosperar, mas, para Giovanni, o maior legado não estava nas riquezas acumuladas, mas no reconhecimento do valor do trabalho manual e na criação de uma tradição que perduraria por gerações.

Em 12 de abril de 1939, aos 84 anos, Giovanni Battista Lorenzo faleceu serenamente em sua casa, no bairro do Brás. Seus olhos, que já haviam visto tanto — da fria e isolada Longarone às vastas terras de São Paulo — se fecharam pela última vez com a tranquilidade de um homem que soubera, ao longo de sua vida, enfrentar tempestades e superar barreiras. A morte de Giovanni, como ele sempre desejara, foi silenciosa, sem dor, rodeado pelas paredes de madeira que ele mesmo criara, nas quais tantas memórias de sua jornada estavam gravadas.

Quando a notícia de sua partida se espalhou, uma onda de pesar tomou conta da cidade. O velório, realizado na Igreja Nossa Senhora da Paz, foi uma celebração de vida, mais do que de luto. Pessoas de todas as classes sociais, oriundas dos cantos mais humildes até os mais altos círculos paulistanos, compareceram para prestar suas homenagens a aquele homem cuja trajetória parecia transcender qualquer fronteira. Entre os presentes estavam seus filhos, netos, colegas de trabalho, ex-aprendizes e até alguns que haviam sido tocados apenas pela beleza dos móveis que ele criara, mas que sentiam que, de alguma forma, Giovanni Lorenzo havia moldado algo mais dentro deles.

Os bancos da igreja, que normalmente ficavam vazios ou eram preenchidos por uma pequena multidão, estavam agora lotados. A simplicidade da cerimônia, no entanto, não tirou a grandiosidade do momento. Havia uma aura de respeito profundo que pairava sobre todos, como se cada pessoa presente sentisse que estava diante de algo imortal. Giovanni não era apenas um mestre carpinteiro; ele era um símbolo da persistência, do sonho que se materializava com as mãos calejadas, do homem que deixou sua marca no Brasil, assim como naqueles que o conheceram.

Luigi, seu filho e braço direito, foi quem escolheu as palavras para o epitáfio que marcaria sua sepultura. A frase que ele escolheu era simples, mas poderosa, refletindo o homem que Giovanni fora e o impacto de sua vida naqueles que o cercaram. "De Longarone a São Paulo, suas mãos construíram sonhos, sua coragem edificou vidas." Essas palavras não apenas encapsulavam o espírito da jornada de Giovanni, mas também evocavam os milhares de imigrantes como ele, cujos nomes raramente apareciam nos livros de história, mas cujas contribuições, silenciosas e persistentes, ajudaram a erigir um país inteiro.

As mãos de Giovanni, aquelas mesmas mãos que uma vez moldaram a madeira com precisão e paixão, estavam agora, ironicamente, livres das ferramentas que ele usava para criar beleza e funcionalidade. Elas descansavam pacificamente, mas em sua trajetória, elas haviam tocado o coração de milhares de brasileiros, imigrantes e nativos, moldando não apenas a madeira, mas também a alma de uma nação em formação.

O legado de Giovanni Lorenzo não estava apenas nas peças de mobiliário que ele criara ao longo de sua vida, mas na rede de relações que ele estabelecera, na comunidade italiana que ajudara a construir e na lição de que, com coragem, trabalho árduo e uma fé inabalável, era possível, sim, criar um novo futuro, mesmo quando tudo parecia perdido. Sua oficina, que continuava a prosperar sob a direção de seu filho Luigi e dos aprendizes que ele havia treinado, era mais do que um simples negócio; era um símbolo de resiliência e adaptação, um local onde o espírito do imigrante encontrava expressão.

Durante os dias que se seguiram ao velório, a cidade de São Paulo viveu um luto coletivo. Muitos paulistanos, especialmente os de origem italiana, viam em Giovanni Lorenzo o retrato de seu próprio esforço e sacrifício. Como ele, muitos haviam chegado ao Brasil em busca de uma vida melhor, e como ele, muitos haviam construído seus sonhos com as mãos calejadas pelo trabalho árduo. A morte de Giovanni não foi apenas a perda de um mestre carpinteiro, mas também a perda de uma geração inteira de homens e mulheres que haviam contribuído para a fundação de uma nova sociedade.

A "Fábrica de Móveis Lorenzo" continuou a prosperar nos anos seguintes à sua morte, mas Giovanni não seria esquecido. Sua história foi contada e recontada, não apenas pelos que o conheceram diretamente, mas por aqueles que, de alguma forma, se sentiram conectados a ele. Seu nome se tornou sinônimo de dedicação, de esforço imensurável e de um sonho que se tornara realidade. As gerações seguintes dos Lorenzo, que haviam crescido em sua oficina, mantiveram vivas suas tradições e continuaram a produzir móveis que levavam consigo não apenas a qualidade da madeira, mas também o espírito do homem que um dia, com coragem, atravessou os mares para buscar algo mais.

No fundo, o maior tributo a Giovanni foi dado pelas palavras de sua própria filha, Maria, que, em um discurso durante a missa de 30º dia de sua morte, disse: "Meu pai nos ensinou, mais do que a trabalhar a madeira, a trabalhar os nossos próprios sonhos." E, assim, o homem que viera de Longarone para construir uma nova vida em São Paulo continuava a construir sonhos, não apenas de madeira, mas de pessoas, de uma cidade, de um país que se fazia, peça por peça, ao ritmo de suas mãos laboriosas. E, em cada canto daquele Brasil que ele ajudou a moldar, Giovanni Lorenzo deixava um pedaço de si — uma obra que jamais se desfaria.

Nota do Autor

A saga de Giovanni Battista Lorenzo é, antes de tudo, uma homenagem à coragem, resiliência e determinação de milhões de imigrantes que, entre o final do século XIX e o início do século XX, cruzaram oceanos em busca de uma nova vida. Embora esta obra seja fruto da minha imaginação, ela foi inspirada por eventos reais, vividos por pessoas cuja história ecoa na trajetória fictícia de Giovanni e sua família.
Durante a pesquisa para este trabalho, mergulhei nas histórias de imigrantes italianos que deixaram suas aldeias nas montanhas do Vêneto, na Lombardia e em outras regiões da Itália, enfrentando incertezas e dificuldades inimagináveis. Ao chegar ao Brasil, essas famílias não encontraram as promessas de prosperidade imediata que haviam lhes sido vendidas, mas sim desafios de adaptação, isolamento e, muitas vezes, condições de trabalho duras e exploradoras. A saga de Giovanni reflete esse percurso — o embate entre sonhos e realidade, a luta diária e o desejo inquebrantável de criar um futuro melhor para seus descendentes.
Embora Giovanni Battista Lorenzo e sua família sejam personagens fictícios, suas experiências foram construídas a partir de uma miríade de relatos reais. Conheci a história de um carpinteiro italiano que, como Giovanni, transformou-se em um mestre artesão no Brasil e cuja obra permanece viva em igrejas e lares paulistanos. Ouvi também sobre famílias que perderam entes queridos durante a travessia do Atlântico, mães que enterraram filhos em terras desconhecidas e comunidades inteiras que, mesmo à distância de suas pátrias, recriaram uma Itália vibrante em solo brasileiro.
Esta história é, portanto, uma ficção fundamentada na verdade universal das migrações humanas: o anseio por uma vida melhor, a busca incessante por dignidade e a capacidade do ser humano de adaptar-se e florescer em meio às adversidades. Giovanni representa todos aqueles que, com coragem e trabalho árduo, não apenas moldaram madeira ou construíram casas, mas também esculpiram os alicerces de uma sociedade diversa e próspera.
Espero que esta obra inspire os leitores a refletirem sobre o valor e o legado desses pioneiros e a reconhecerem a beleza e a importância das histórias de seus próprios ancestrais. Afinal, cada um de nós carrega, de algum modo, a força daqueles que vieram antes de nós e, como Giovanni Battista Lorenzo, ousaram sonhar com um futuro melhor.

Com gratidão e respeito,

Dr. Luiz C. B. Piazzetta


quinta-feira, 19 de junho de 2025

O Horizonte dos Bravos

 


O Horizonte dos Bravos

Um romance histórico em homenagem aos imigrantes italianos no Brasil


Prólogo — A Partida

Castelbelforte, Província de Mantova — Reino da Itália, outubro de 1876

A bruma outonal ainda dormia sobre os campos silenciosos quando Luigi Bianchetti, aos trinta e dois anos, trancou com firmeza a última caixa de madeira. Dentro, repousavam ferramentas gastas, mas fiéis, sementes colhidas com devoção e uma imagem de Nossa Senhora envolta num lenço de linho bordado por sua esposa. Era o pouco que restava de uma vida inteira — e o tudo de que precisaria para começar outra.

A casa onde nascera e enterrara os pais dormia atrás dele, envolta por uma quietude que só os que partem em definitivo conseguem escutar. Três filhos ainda sonhavam sob o teto de barro, e Giulia, sua mulher, acendia a lareira pela última vez naquele lar. A fumaça que subia à chaminé se misturava à névoa que lambia os campos, como se o tempo, por um momento, também hesitasse em deixá-los partir.

A decisão fora amadurecida como o vinho nas adegas frias: devagar, no escuro e com uma dor surda crescendo no peito. Desde a unificação da Itália, o país mergulhara numa confusão maior do que a promessa de ordem. Impostos injustos, fome constante e a humilhação de ver os filhos implorarem por pão foram tornando insuportável a esperança. O solo que outrora dera trigo e dignidade agora devolvia apenas pedras e silêncio.

A gota final veio com os cartazes colados nas portas das igrejas e tavernas:
Il Nuovo Mondo vi aspetta! Terra fertile e lavoro garantito in Brasile. Partenze sovvenzionate dal governo.”

O Brasil. Um nome tão estranho quanto sedutor. Diziam que o café nascia aos montes, que terras sem dono esperavam apenas braços dispostos, e que o governo até pagava a travessia. Para Luigi, foi como ouvir um sussurro vindo do próprio futuro.

Na estação de Mantova, cercado por dezenas de outros camponeses, Luigi viu nos rostos cansados o mesmo misto de medo e fé, como se todos soubessem que estavam prestes a morrer para um mundo e nascer em outro. As locomotivas cuspiram vapor e gritos. O trem para Gênova aguardava.

Não era uma fuga. Era um salto no escuro.

E Luigi Bianchetti, com a dignidade enrugada nas mãos calejadas, deu o primeiro passo rumo ao desconhecido, sem saber que, do outro lado do oceano, uma nova história estava sendo escrita — com suor, dor, e uma esperança que nenhum império seria capaz de sufocar.


CAPÍTULO I — O ADEUS À TERRA DOS AVÓS

Castelbelforte, Província de Mantova — Itália, outubro de 1876

O sino da paróquia soava sete badaladas quando Luigi Bianchetti lançou um último olhar ao campo onde nascera. Era um pedaço raso de terra, ferido por secas e impostos, mas era tudo o que conhecera até então. O ar da manhã cortava o rosto com a friagem típica de outubro, trazendo o cheiro das folhas úmidas e das brasas que ainda fumegavam das lareiras ao longe. O outono não apenas se instalava no clima — pairava também no coração dos que ficavam.

Atrás dele, Giulia, sua mulher, dobrava lençóis e os colocava cuidadosamente numa trouxa. Estava grávida do quarto filho, embora ainda não tivessem contado a ninguém. As crianças — Matteo, de oito anos, Lucia, de seis, e o pequeno Paolo, de três — dormiam amontoados sobre palhas, inocentes ao peso daquele dia. Luigi parou um instante diante da porta aberta e observou a cena. Quis gravá-la na mente, porque sabia que nunca mais voltaria a vê-la.

Na aldeia, muitos falavam. Uns diziam que os que partiam voltavam ricos. Outros, que jamais retornavam. A única certeza era que o mundo estava mudando rápido demais — e os camponeses, como ele, não tinham tempo de acompanhá-lo.

— Tem certeza, Luigi? — perguntou o velho Padre Corrado, apertando-lhe o ombro. — Deixar tudo para trás… não é pouca coisa.

Luigi assentiu em silêncio. Era homem de poucas palavras e decisões firmes. Mais de uma vez questionara a si mesmo se era loucura trocar o certo — mesmo que miserável — por um desconhecido oceano de promessas. Mas ver seus filhos emagrecerem a cada inverno e ouvir sua mulher esconder o choro à noite, isso era mais insuportável que o risco.

Não era coragem. Era necessidade.

Na estação de Mantova, o trem a vapor tremia como um animal inquieto, cuspindo nuvens cinzentas e cheirando a ferro e carvão. Em cada vagão, famílias inteiras se espremiam com malas de couro, sacos de farinha, roupas de cama e esperanças desgastadas. Choros se misturavam a orações. O barulho das rodas nos trilhos era como um martelo selando destinos.

Luigi ajudou Giulia a subir com as crianças. Um oficial com o uniforme do governo piemontês revisava as passagens com ar severo. Muitos dos que embarcavam não sabiam ler nem escrever. Luigi tampouco. Mas trazia o nome do destino bem guardado num pedaço de papel: “Gênova — Porto de Embarque para o Brasile”.

Ali dentro, entre desconhecidos, homens murmuravam palavras de encorajamento, mulheres rezavam com terços entre os dedos, e crianças olhavam pela janela com os olhos grandes, atentos ao mundo que corria para trás. Um velho com barba branca passou distribuindo pedaços de pão duro aos passageiros.

— É pão do embarque — disse. — Vão dar outro só no navio, quando cruzarmos o Equador.

O trem apitou. E partiu.

Enquanto as casas de Mantova ficavam para trás, Luigi sentiu um aperto no estômago que nenhuma refeição aliviaria. Era a dor do exílio voluntário, da ruptura com gerações de camponeses enterrados naquele solo. Mas também era a faísca da esperança. Ao seu lado, Giulia apertou-lhe a mão. Ambos olharam para a frente.

Não voltariam jamais. Mas começariam de novo.


CAPÍTULO 2 — DESTINO: SANTA CATARINA

Do Rio, seguiram por mais seis dias costeando o litoral, até desembarcarem no porto de Desterro. Dali, atravessaram enseadas em pequenas embarcações de vela até um vilarejo improvisado chamado Nova Itália, no interior de Santa Catarina. Foram recebidos por Giuseppe Artioli, um conterrâneo que já vivia ali há dois anos e que servia como guia para os recém-chegados.

Foram levados até a Colônia de Santo Antônio dos Mulli, onde a família Bianchetti recebeu sua gleba: 85 biólcas de terra, em meio a mata fechada. Metade era bosque intocado, o restante, campo áspero. A promessa era simples: quem cultivasse, teria a posse. Mas nada naquelas terras se assemelhava aos campos da Lombardia.


CAPÍTULO III — O SILÊNCIO DA MATA

Colônia Nova Itália, Santa Catarina — janeiro de 1877

O silêncio da mata era diferente de qualquer silêncio que Luigi já conhecera. Não era ausência de som, mas presença de um som mais antigo que o homem. Um rumor úmido, vegetal, vivo. A mata não dormia. Sussurrava em línguas desconhecidas, ecoando o farfalhar das folhas, o grito noturno dos macacos e o rugido distante de predadores invisíveis.

primeiro mês foi brutal.

Teresa, sua esposa, chorava quase todas as noites — baixinho, para não alarmar as crianças, mas suficientemente alto para ferir o coração de Luigi. Chorava pela mãe deixada em Castelbelforte, pelas irmãs, pelas vizinhas com quem trocava pão e confissões. Chorava pelo berço de Angelo, que agora era apenas uma esteira de palha. Chorava, sobretudo, por medo: do lugar, da fome, da solidão.

Luigi não tinha tempo para chorar. Dormia três, às vezes quatro horas por noite. Passava os dias derrubando árvores com machado, as mãos em sangue sob os calos. A cada tronco tombado, uma nova clareira, uma nova promessa — ou um novo pesadelo. As toras se acumulavam em pilhas irregulares, destinadas à construção da primeira palhoça. Madeira crua, sem pregos, sem esquadro. O abrigo era tosco, mas já oferecia sombra, proteção contra a chuva, e um pouco de dignidade.

Matteo, agora com doze anos, mostrava um senso precoce de responsabilidade. Carregava tábuas, ajudava o pai a cavar buracos para os esteios e acendia o fogo com gravetos secos. Seus braços eram finos, mas seus olhos estavam mudando. Deixavam de ser os de uma criança e tornavam-se os de um homem em formação — um homem forjado pela necessidade.

Rosa, de nove, aprendia a cozinhar com a mãe. Com mãos pequenas e cuidadosas, limpava a mandioca, soprava cinzas do fogareiro e ninava o bebê quando Teresa não podia. Quando Luigi a olhava — cabelos grudados na testa, vestidinho sujo de barro — sentia uma pontada no peito. Ela era tão valente quanto frágil. Um botão tentando florescer num campo de espinhos.

Angelo, o caçula, estava com dez meses e sofria com as picadas dos mosquitos, o calor insuportável e a alimentação improvisada. Chorava muito. Teresa, com os seios ressecados de tanto trabalho e pouca comida, não conseguia mais amamentar. Aprenderam a esmagar banana verde e misturar com água fervida, numa tentativa desesperada de alimentá-lo. Era pouco. Mas era tudo.

A mata os cercava como um exército em silêncio. As trilhas eram escassas, marcadas com pedaços de pano amarrados nos galhos ou pequenas toras deixadas como marcos. Havia dias em que Luigi se sentia mais perdido que um navio sem leme.

A comida escasseava. As víveres trazidas do navio — farinha de milho, carne salgada, feijões secos — acabaram na segunda semana. Foi então que a mata ensinou sua primeira lição: aprender ou morrer.

Com ajuda de um colono alemão, um certo Herr Kuntz, Luigi aprendeu a diferenciar mandioca-brava da doce. A primeira podia matar em horas; a segunda sustentava por dias. Também ensinou a caçar galinhas-d’água com armadilhas simples de cipó. E mostrou como encontrar bananas silvestres, pequenas, verdes, amargas, mas nutritivas.

As noites traziam seus próprios terrores. Sob o teto improvisado da palhoça, os Bianchetti se amontoavam em silêncio enquanto a floresta ganhava vida com sons quase sobrenaturais. O uivo das onças-pintadas no alto das colinas. O rosnado surdo de uma jaguatirica. O sibilar de cobras nos matagais. O farfalhar de galhos quebrados sem vento.

E então, o pior: o silêncio absoluto.

Era quando todos os animais paravam de emitir sons, como se ouvissem algo que os homens não podiam ouvir. Teresa apertava Angelo contra o peito e rezava em italiano antigo. Luigi segurava o facão com as mãos firmes, mas o suor lhe escorria pelas costas.

E mesmo assim, a vida insistia.

As galinhas trouxeram ovos. Um pedaço de terreno, com muito esforço, começou a produzir milho. Matteo e Rosa construíram um pequeno galinheiro. Teresa descobriu arbustos de mamão perto do riacho. Luigi, com os olhos fundos de cansaço, viu um filete de esperança: não era mais apenas sobrevivência. Era o início.

Certa manhã, ao abrir a porta da palhoça, Luigi viu o sol filtrando-se entre os galhos como ouro líquido. O ar era pesado, mas carregava um cheiro novo — cheiro de terra cultivada.

E ele soube. Estavam vivos. E não estavam derrotados.


CAPÍTULO 4 — A PRIMEIRA COLHEITA

Colônia Nova Itália, Santa Catarina — novembro de 1877 a março de 1878

O milho fora plantado como quem enterra uma prece.

Luigi ajoelhara-se diante da terra vermelha e quente, os olhos queimando de sol e de esperança. Cada semente depositada no solo era mais que uma promessa: era um pacto silencioso com o futuro. Escolhera com cuidado o pequeno aclive nos fundos da clareira, onde as cinzas das árvores recém tombadas ainda enriqueciam o terreno. Ali o solo era fértil, úmido, e a luz do sol filtrava-se por entre os galhos como bênçãos invisíveis.

Nos primeiros meses, no entanto, tudo parecia inútil.

As chuvas pesadas carregavam os brotos. As formigas cortadeiras dizimavam fileiras inteiras de mudas durante a noite. O calor escaldante dava lugar a um frio súbito ao cair da tarde. Luigi observava os canteiros com desânimo e raiva, limpava o suor da testa com as costas da mão suja e se perguntava — mais de uma vez — se o Brasil realmente era terra de promessas ou apenas uma armadilha para sonhadores.

Mas então, em dezembro de 1877, algo mudou.

As primeiras folhas do milharal — pequenas, verdes-escuras e brilhantes — romperam o solo com vigor inesperadoLuigi as observava crescer como se fossem seus próprios filhos. Mediu a altura com pedaços de vara marcados, notou a diferença entre as que cresciam à sombra e as que tomavam sol o dia inteiro. Era um homem analfabeto, mas naquela terra bruta, descobria-se um cientista empírico movido por instinto e necessidade.

Enquanto isso, Teresa florescia junto com o chão.

Aos poucos, a mulher curvada pelo medo e pela saudade se tornava novamente a companheira forte que ele conhecera em Mantova. Iniciou, à sombra da casa, uma pequena horta: feijão, abóbora, milho, um pouco de manjericão trazido da Itália em saquinhos de linho. Descobrira que o solo ali pedia respeito e paciência. E, sobretudo, parceria com o clima, com as pragas, com os mistérios da mata.

Ela passou a trocar sementes com vizinhos distantes — os Giordano, os Pellegrini, os alemães Huber e Klein. Nasciam amizades entre enxadas e canecos de água de poço. A colônia, lentamente, começava a ter rosto.

Matteo, agora mais forte, cuidava do pequeno milharal como se fosse dele. Rosa ajudava Teresa na coleta de folhas comestíveis e flores para chás. Angelo engatinhava pela terra batida da palhoça, já mais robusto, os olhos brilhantes sob os cabelos desgrenhados. A família, enfim, parecia viver — não apenas resistir.

primeira colheita, no fim de fevereiro de 1878, foi modesta. Mas nenhum banquete em Mantova jamais teve tanto significado. Havia abóboras do tamanho de panelas, algumas espigas de milho douradas como o sol do meio-dia, um punhado de feijões prontos para serem secos e guardados. Teresa preparou um cozido simples, perfumado com manjericão e salgado com lágrimas de gratidão. Luigi, em silêncio, observava o vapor subir do prato como se fosse incenso.

Na festa de São José, em março, a colônia celebrou — mais pela vida do que pelo santo.

Homens, mulheres e crianças saíram de suas palhoças com os melhores trajes que possuíam: vestidos remendados, camisas de linho surradas, botas com sola gasta. O pequeno descampado entre as casas de madeira serviu como salão de festas. Um grupo de colonos construiu uma mesa rústica com tábuas reaproveitadas. Outro trouxe folhas de bananeira para forrar o chão. As mulheres, com mãos calejadas, prepararam bolos de fubá, aves assadas, farinha de mandioca torrada e frutas colhidas na mata. Um velho destilador improvisado forneceu aguardente de cana, forte o suficiente para queimar as mágoas.

Foi ali, naquela noite quente e iluminada por lamparinas de querosene e estrelas, que Luigi riu com gosto pela primeira vez desde que chegara ao Brasil.

Ouviu canções italianas misturadas a cantos alemães. Viu Matteo dançar com uma menina dos Huber, viu Rosa correr atrás de um galo assado como se estivesse em Mantova. Teresa, com o rosto ruborizado e os olhos brilhando, entregava pratos com um sorriso tímido.

E então Luigi entendeu: não estavam mais sozinhos. A colônia, enfim, era mais que um agrupamento de casebres no meio da mata. Era comunidade. Era povo. Era promessa cumprida, ainda que tímida.

A vida ali continuaria dura. As colheitas futuras ainda dependiam do clima, das pragas, das doenças que rondavam invisíveis. Mas naquela noite, com os estômagos cheios e os corações mais leves, os imigrantes dançaram como quem desafia o destino.

E Luigi, com um copo de aguardente na mão e o cheiro do mato no ar, olhou para o céu escuro e agradeceu em silêncio:
— Grazie, Dio. Estamos vivos.

CAPÍTULO 5 — OS HOMENS E A COLÔNIA

Colônia Nova Itália, Santa Catarina — abril a setembro de 1878

As palhoças de madeira foram se multiplicando como fungos sobre a terra úmida da mata aberta. Onde antes havia apenas clareiras tímidas, surgiam agora trilhas batidas por pés descalços, cercas improvisadas, hortas minguadas e, de tempos em tempos, o cheiro agridoce de fogo de lenha e aguardente. A colônia ganhava forma — e com ela, surgiam também os primeiros conflitos.

Luigi Bianchetti, com o corpo mais forte e a alma ainda marcada pela travessia e pela luta pela sobrevivência, observava a mudança com olhos desconfiados. Os recém-chegados eram diferentes: alguns, alemães vindos do sul, já acostumados ao idioma e às leis do Império do Brasil; outros, italianos de Nápoles, da Calábria, gente de sotaques mais cerrados, menos pacientes, que olhavam para os lombardos como se falassem outra língua.

O centro de toda novidade era um homem de nome Severino Antunes, mulato alto, forte, e com olhos que não revelavam emoção. Vinha de Desterro — a capital da província — com ordens imperiais de organizar as posses, oficializar os lotes e “levar civilização aos bravos colonos”, como dizia com um certo sarcasmo embutido em sua voz pausada.

Luigi desconfiou dele desde o início.

— Homem que fala bonito e anda de paletó no barro não veio plantar, veio mandar, resmungou ao amigo Giordano numa manhã de domingo.

Mas Severino era mais que um burocrata. Tinha olhos aguçados e ouvidos atentos. Sabia que o poder nas colônias nascia do respeito dos homens — e este só era conquistado com ação. Em poucas semanas, organizou reuniões, distribuiu mapas rudimentares, estabeleceu um registo para dividir as terras. Quem não tivesse documentação ou testemunho confiável de vizinhos, perdia o que havia suado para construir. Logo, a tensão pairava sobre os campos como neblina antes da chuva.

— Esse não é mais o mato sem dono, declarou Severino certa vez diante de uma dezena de colonos reunidos numa clareira. Agora é terra de homens civilizados. Com regras.

Alguns, como os irmãos Pellegrini, logo se alinharam com ele. Homens ambiciosos, desconfiados dos lombardos e sedentos por vantagens. Começaram a denunciar vizinhos por “invasão de lote”, muitas vezes baseando-se em linhas invisíveis desenhadas à caneta por Severino. Casos chegaram a ameaçar terminar em sangue. Houve uma briga de foice entre dois napolitanos por um córrego de água limpa — e rumores de que um deles fora enterrado em silêncio nas margens da mata.

Luigi tentava manter a distância, mas a colônia não permitia neutralidade.

Na pequena casa da família Bianchetti, as discussões se intensificaram. Teresa receava os homens de Severino — especialmente o sargento encarregado de “fazer valer a ordem”, que já agredira um jovem alemão por recusar-se a pagar um imposto recém-criado.

— Você não pode continuar calado, Luigi. Vão tomar nossa terra, disse ela certa noite, a voz trêmula, os olhos fixos na lamparina. — Fale com os vizinhos. Organize-se.

Luigi ouviu. Reuniu-se com Giordano, os irmãos Klein e um padre lazarista chamado Francesco Ricci, recém-chegado da Itália com a missão de evangelizar, mas logo engajado em defender os direitos dos colonos. Criaram um pequeno conselho informal, que se encontrava toda primeira sexta-feira do mês, na casa de Luigi.

O padre Francesco, de batina suada e voz firme, propunha moderação. Luigi, com os punhos sempre cerrados e os olhos fundos de noites maldormidas, queria firmeza. O conflito com Severino Antunes era inevitável. Mas havia algo mais sombrio pairando.

Nas últimas semanas de julho, dois colonos desapareceram.

Um era Giuseppe Mancini, calabrês de fala ríspida, que jurava ter comprado seu lote de um antigo ocupante. O outro, um mestiço chamado Tertuliano, que vivia sozinho e oferecia carne seca em troca de sementes. Seus casebres foram encontrados revirados, e nenhum sinal dos corpos.

Severino, quando questionado, apenas sorriu:

— A mata engole os que não sabem viver nela.

Luigi não acreditou. Sabia que a colônia crescera demais, rápido demais, e que os olhos gananciosos do governo e dos especuladores começavam a se voltar para aquela terra ainda sem nome definitivo. Nova Itália, diziam uns. Colônia Imperial, diziam outros. Mas o nome pouco importava. O que contava era o chão onde se plantava e o direito de permanecer nele.

No fim de setembro, ao retornar do mato, Luigi encontrou Matteo à porta, pálido e com o rosto arranhado.

— Pai… os homens do Severino estiveram aqui. Disseram que vão medir nossas terras de novo. E que se não estivermos com os papéis em ordem…

Luigi respirou fundo. Sentiu a madeira do machado áspera sob os dedos. Olhou para a palhoça, para Teresa com Angelo no colo, para Rosa cuidando da horta. Viu, naquele instante, que a colônia estava diante de um novo tipo de tempestade — não a que vinha do céu, mas a que se formava entre homens.

E desta vez, seria preciso mais do que sementes para resistir.


CAPÍTULO 6 — FOGO E TERRA

Colônia Nova Itália, Outubro de 1878

A estação das chuvas começava a dar sinais, e com ela, a tensão na colônia se tornava quase palpável, como o cheiro de terra molhada antes da tempestade. As manhãs, antes ruidosas com vozes de lavradores e galos, agora amanheciam mergulhadas em um silêncio desconfortável. Os vizinhos evitavam conversar ao ar livre. Muitos temiam estar sendo vigiados.

Luigi Bianchetti passava os dias dividido entre os campos e as reuniões clandestinas do Conselho dos Colonos. A liderança forçada lhe caíra como um manto pesado. Não desejara ser chefe, mas os homens vinham a ele como vinham à terra: esperando firmeza, constância e proteção.

Padre Francesco, apesar da batina e da Bíblia, tornara-se um estrategista. Seus sermões agora misturavam fé com resistência. Falava de Moisés libertando seu povo, mas cada camponês na igreja entendia o recado: não aceitar as correntes impostas por Severino Antunes e seus asseclas.

No entanto, os inimigos também se organizavam. Severino, cada vez mais pressionado pelos representantes do Império e pelos interesses latifundiários de Desterro, começava a agir com brutalidade. Montou uma milícia de homens pagos — entre eles, desertores, caçadores e antigos capitães do mato. Dizia-se que Antônio Ramalho, o mais temido deles, já servira na repressão a quilombos e sabia como silenciar qualquer foco de rebeldia com eficiência e crueldade.

Foi Ramalho quem comandou o incêndio da choupana de Giordano Petrelli numa noite sem lua. A família conseguiu escapar pela mata, mas perdeu tudo: roupas, colheita, ferramentas. Giordano, com os olhos marejados, apareceu na manhã seguinte na casa de Luigi, a esposa e os dois filhos tremendo sob cobertores emprestados.

— Foi eles, Luigi. Vieram como sombra. Não disseram palavra. Só o fogo falou.

Luigi engoliu a raiva como quem engole pedra. Sabia que reagir com violência naquele momento poderia custar vidas. Mas o povo estava no limite. O incêndio não foi apenas um ataque: foi um recado. E a resposta precisava ser dada.

Na reunião seguinte, com uma dúzia de homens e mulheres reunidos sob a antiga figueira do vale, decidiu-se que o Conselho deixaria de ser apenas defensivo. Iria agir. Teresa, firme ao lado do marido, tomou a palavra:

— Se deixarmos que queimem as casas de um a um, vamos acabar voltando ao navio. Ou pior, sendo enterrados na mata. Essa terra é nossa. E se for preciso, vamos defendê-la como defendemos nossos filhos.

O grupo decidiu cercar os terrenos com marcos visíveis, fincados com cruzes de madeira com o nome da família, datas e um pequeno símbolo em carvão — um gesto simples, mas que declarava em silêncio: Aqui vive alguém. Aqui não se passa sem luta.

Luigi então teve uma ideia ousada: reunir os colonos para uma queimada controlada e simbólica. Eles próprios iriam atear fogo a um trecho da mata antiga — mostrando que a terra era domada por seus habitantes e não por capangas do governo. Seria um gesto de poder, de afirmação, mas também de perigo.

Na manhã da ação, mais de cinquenta homens e mulheres marcharam colina acima com tochas, enxadas e baldes de água. O fogo lambeu o mato alto, estalou como tambor em festa, e a fumaça subiu densa, visível a léguas.

Severino Antunes, ao avistar a nuvem negra do alto de seu posto de vigia, entendeu o recado. Não era mais uma colônia de miseráveis. Era uma comunidade decidida.

Na noite seguinte, Padre Francesco celebrou uma missa sob o céu aberto. As famílias, mesmo exaustas, cantaram juntas. Pela primeira vez em semanas, Luigi sentiu algo parecido com esperança. Não era paz, mas era um passo em direção a ela.

Contudo, nas sombras da mata, Antônio Ramalho afiava a faca em silêncio.

O sargento trazia ordens novas de Desterro. Severino, pressionado pelos fazendeiros da região, precisava “restabelecer a ordem” — com ou sem legalidade. E para isso, a liderança dos colonos precisava ser quebrada.

Luigi estava agora no centro de um jogo maior, onde política, terra e sangue se entrelaçavam como raízes ocultas sob o solo.


CAPÍTULO 7 — O INIMIGO INVISÍVEL

Colônia Nova Itália, Novembro de 1878

O calor úmido e o zumbido das cigarras faziam a floresta parecer um organismo vivo, pulsando e vigiando. Para Luigi, essa sensação de ser observado não era paranoia — era constatação. Havia algo diferente no ar. O riso das crianças parecia mais contido. As conversas entre vizinhos, sussurradas. E, acima de tudo, havia silêncio demais para uma terra que, até então, ressoava com trabalho, esperança e barulho de ferramentas.

Na casa de madeira que construíra com as próprias mãos, Luigi reparava em pequenos sinais: pegadas onde não deveriam existir, ferramentas deslocadas, feixes de cana quebrados ao redor do terreno. Estavam sendo espionados. Alguém do lado de fora — ou talvez de dentro — repassava informações para Severino Antunes.

Teresa, que há muito perdera a ingenuidade da jovem camponesa italiana, começou a esconder comida e sementes em buracos forrados com palha no chão da palhoça. Matteo, agora com treze anos, dormia com um facão velho ao lado da cama. Rosa cuidava de Angelo como uma pequena mãe em estado de alerta permanente. A infância se desfazia como o orvalho nas manhãs quentes.

Foi Giordano Petrelli quem trouxe a notícia que estremeceu o Conselho dos Colonos: havia um informante entre eles.

— Alguém passa recado pro Severino. Eu vi com meus olhos. Um homem com casaco escuro, de chapéu aba larga, se encontrou com Ramalho perto da trilha do córrego. Entregou um papel. Depois desapareceu entre as bananeiras. Era um dos nossos. Juro por minha alma.

O Conselho convocou uma reunião secreta na capela abandonada no alto da colina. Apenas sete líderes sabiam da existência do encontro, e mesmo assim, um dos caminhos estava vigiado. As pegadas recentes no barro não deixavam dúvidas.

Luigi sentou-se à frente, encarando os rostos um a um. Eram homens calejados, com olhos fundos e mãos marcadas pela enxada. Mas até o mais nobre entre os pobres é vulnerável à fome, ao medo — ou ao dinheiro.

— Há um traidor entre nós — disse ele, em voz baixa, mas firme. — E não será com gritos que vamos encontrá-lo, e sim com astúcia.

Padre Francesco propôs o uso de recados falsos. Cada membro do Conselho receberia uma informação diferente sobre um possível movimento contra os homens de Severino. Quem quer que fosse o informante, cairia na armadilha. Luigi hesitou, mas concordou. A colônia precisava de provas. A confiança, agora, era um luxo.

Na semana seguinte, espalharam os boatos como sementes ao vento. Uns diziam que os colonos marchariam rumo ao posto fiscal. Outros que queimariam o curral de um fazendeiro aliado de Severino. Em pouco tempo, as ações de retaliação revelaram a rota da informação: era Tarcísio Broletti, antigo amigo de Luigi, quem entregava tudo.

Tarcísio era um homem discreto, viúvo, sem filhos, que mantinha uma pequena lavoura de batata e criava três cabras magras. Havia viajado com a primeira leva de imigrantes no mesmo navio que os Bianchetti, e Luigi confiava nele como em um irmão.

Mas Tarcísio fora vencido pela desesperança. Após perder a esposa para uma febre e quase ver sua lavoura inteira engolida pela seca, aceitou o dinheiro e a proteção de Severino. Ramalho prometera terras, ferramentas e paz. Em troca, apenas um pouco de informação. “Nada demais”, dissera ele. “Só uns nomes. Uns encontros. Coisas pequenas.” Mas as coisas pequenas tinham consequências grandes.

Quando foi confrontado por Luigi, Tarcísio caiu de joelhos, soluçando.

— Eu só queria viver, Luigi. Só isso. Eles disseram que, se eu não ajudasse, iam me fazer desaparecer...

Teresa, firme ao lado do marido, não disse palavra. Mas seus olhos falavam: o perdão tinha limites.

O Conselho, dividido, votou pela expulsão. Tarcísio partiu naquela mesma noite, com uma trouxa nas costas e os olhos vazios. Ninguém o viu novamente.

A paz que se seguiu foi breve, mas necessária. A confiança havia sido ferida, mas não destruída. Luigi sabia que o maior perigo, agora, não estava apenas fora das matas, mas nas rachaduras invisíveis da comunidade que construíram com tanto esforço.

Numa madrugada abafada, enquanto escrevia um bilhete para o Padre Francesco com planos para fortalecer as defesas da colônia, Luigi escutou um som seco, metálico, vindo do galpão: clac.

Levantou-se devagar, pegou a espingarda que herdara de um colono falecido, e caminhou com passos leves como os de um caçador.

A porta do galpão estava entreaberta. No interior, só silêncio.

Mas no chão, uma pegada. Recente. Funda.

Não estavam sozinhos.


CAPÍTULO 8 — OS SINAIS DA TEMPESTADE

Colônia Nova Itália, Janeiro de 1879

O céu mudara de cor. Durante semanas, as nuvens cinzentas avançavam devagar como tropas em marcha, cobrindo o azul com uma camada espessa de chumbo. O vento soprava do sul, úmido, carregado de um cheiro estranho — uma mistura de terra encharcada, folhas apodrecidas e algo mais: o presságio da tragédia.

Luigi observava o horizonte como um homem que já perdera o direito à inocência. O tempo, antes aliado dos agricultores, tornava-se mais imprevisível a cada estação. Mas naquela manhã, havia algo diferente. Um silêncio fora do comum, como se até os pássaros tivessem se escondido.

— Vai chover grande, murmurou Matteo, agora com quase catorze anos, ao ver o pai guardar as ferramentas mais profundas no abrigo da sementeira.

Mas a chuva não era o pior dos presságios.

Na véspera, Angelo acordara com febre alta. A princípio, Teresa pensou que fosse o calor, ou um dente nascendo. Mas no dia seguinte, apareceram manchas vermelhas na pele, e logo depois, vieram os espasmos.

— Ele está com sarampo, disse Padre Francesco, com os olhos cansados, depois de ver outros dois pequenos colonos com os mesmos sintomas.

— E não está sozinho. Já são sete casos. Cinco deles entre crianças abaixo de cinco anos.

A peste — essa palavra proibida — circulava pelas trilhas da mata como um lobo invisível.

Nos dias que se seguiram, o pânico se espalhou mais depressa do que o vírus. Famílias começaram a erguer cercas improvisadas entre os terrenos. Crianças eram isoladas em celeiros. A escola da colônia foi fechada. Os abraços se tornaram acenos. A missa, por prudência, foi suspensa.

E como se não bastasse a doença, os ataques de capangas voltaram a se intensificar. Dois colonos que iam ao povoado trocar milho por sal desapareceram na estrada. Um deles, Giacomo Ferretti, foi encontrado uma semana depois, boiando no rio, o rosto desfigurado por peixes e a aliança arrancada do dedo.

Luigi convocou nova reunião do Conselho. Não mais na capela, agora vigiada por espiões. Encontraram refúgio em uma gruta esquecida entre rochedos cobertos de musgo, perto da antiga trilha dos tropeiros. Ali, os homens falaram pouco e ouviram muito.

— Severino sabe que estamos fracos, disse Luigi. — Ele espera que o medo faça o trabalho por ele. Que um de nós entregue os outros, como Tarcísio. Mas está enganado.

O plano que propôs era ousado. Assumir o controle da estrada que ligava a colônia ao vilarejo mais próximo. Era por ali que passavam suprimentos, cartas, medicamentos. Se eles a controlassem, poderiam negociar em pé de igualdade — ou ao menos, impedir que fossem estrangulados.

A resistência ganhou novo fôlego. Matteo, já quase um homem, cavava trincheiras sob a chuva. As mulheres passaram a se revezar entre cuidar dos doentes e preparar armadilhas rudimentares nas trilhas. Até o padre empunhou uma velha pistola enferrujada deixada por um soldado da guerra do Paraguai.

Mas o pior ainda estava por vir.

Certa manhã, Teresa encontrou Rosa desfalecida ao lado da bacia de roupas. O rosto pálido, os lábios secos. O mesmo vermelho da febre que tomara Angelo começava agora a tingir sua pele. Teresa apertou a filha contra o peito com uma força que parecia querer impedir a morte de entrar.

Luigi sentiu a alma ceder ao desespero, mas não caiu.

— Vamos enfrentar isso como enfrentamos o oceano, Teresa. Com coragem. Com fé. Um dia de cada vez.

Enquanto isso, os olhos de Severino também se voltavam para a colônia.

— Eles estão resistindo demais, resmungou para Ramalho, jogando as cartas sobre a mesa de madeira da fazenda. — Já deviam estar de joelhos. Mande um aviso. Queime uma casa. Pegue um deles. Um líder.

E Ramalho, silencioso e metódico, já escolhia o alvo.

O céu, enfim, desabou. A tempestade caiu sobre a floresta como se o céu tivesse se rasgado. Árvores inteiras vieram abaixo, estradas desapareceram sob rios de lama. As lavouras foram engolidas em minutos.

Mas no coração da mata, entre o medo e a febre, os colonos seguiam de pé. Toscos, mal armados, exaustos. Mas vivos.

O inimigo era invisível, mas eles também eram. E invisibilidade, naquele momento, era uma vantagem.


CAPÍTULO 9 — O MENINO QUE VEIO DA MATA

Colônia Nova Itália, Março de 1881

As chuvas haviam retornado mais cedo naquele ano, trazendo consigo um verde denso, quase sufocante. O rio das Antas corria barrento, arrastando galhos, folhas e a memória do verão que se despedia. Naquela manhã de céu baixo, Luigi e Matteo estavam consertando a roda de um carro de bois na margem quando Matteo interrompeu o trabalho e ergueu o braço, em silêncio.

— Pai... olha ali.

Entre os arbustos, com o corpo magro coberto por lama e olhos arregalados como de um animal encurralado, um menino os observava. Estava nu, com os cabelos longos e embaraçados. Tinha o peito arfando e um ferimento na perna, recente. A pele era bronzeada pelo sol, e havia tinta vermelha esmaecida em seu rosto — vestígio de um rito que ninguém ali compreendia.

Luigi levantou-se devagar, mãos visíveis, postura calma.

— Está tudo bem, pequeno. Ninguém vai te machucar, disse em português pausado, embora soubesse que ele não compreenderia uma única palavra.

O menino hesitou. O rio atrás dele rugia. Os olhos — olhos de quem já vira mais do que devia — avaliaram os dois homens por um instante longo, até que, com um gesto frágil, deu dois passos à frente e caiu.


Na colônia, foi Teresa quem o limpou, alimentou e enfaixou. O menino não falou nos primeiros dias. Só observava. Dormia com os olhos entreabertos, como um filhote selvagem. Quando Matteo tentou dar-lhe um nome italiano, Teresa o deteve.

— Não. Ele não veio da Itália. Não nasceu entre nós. Vamos chamá-lo como ele é.

Luigi assentiu. Na reunião da capela naquela semana, apresentou o menino como Tupi.

— A floresta nos deu esse filho. Ele veio de um mundo que existia antes do nosso.

Alguns colonos franziram o cenho. Houve cochichos, olhares desconfiados. Mas ninguém ousou contrariar Luigi publicamente.

Os meses seguintes revelaram um vínculo improvável. Tupi, silencioso como as corujas que espreitava no alto das árvores, demonstrava uma sabedoria prática que logo se mostrou inestimável. Mostrou a Teresa como usar a casca de uma árvore para aliviar as cólicas de Rosa, que ainda era frágil de saúde. Levou Matteo para a mata fechada e ensinou-lhe a encontrar mel sem provocar as abelhas. A Luigi, mostrou como rastrear uma anta apenas pelos galhos quebrados e fezes frescas no caminho.

Mas o mais impressionante era a forma como andava — com pés leves, como se fosse parte da floresta.

— Ele não pisa. Ele escorrega como sombra, dissera Giovanni Pellini, com um misto de admiração e receio.

Tupi, por sua vez, começou a absorver palavras. Primeiro, nomes de coisas: "fogo", "água", "pão", "machado". Depois, frases curtas. Sua língua nativa, entretanto, permanecia um enigma. Às vezes, à noite, ele falava dormindo, em sons guturais e cadenciados. Teresa ouvia da porta, com o coração apertado, como quem assiste a um espírito contar seus lamentos.

Em setembro daquele ano, uma onça atacou uma das plantações mais afastadas. Quando os homens se organizaram para caçá-la, foi Tupi quem conduziu o grupo. Aos pés de uma árvore, indicou com o dedo três marcas leves no barro.

— Ela está ferida. Vai voltar para beber água.

E estava certo. Na beira do açude, no cair da tarde, a viram pela primeira vez — bela, ágil e mortal. Foi Luigi quem fez o disparo certeiro. Quando o animal tombou, Tupi se ajoelhou ao lado do corpo e tocou a pelagem com reverência.

— Ela era guardiã da mata, murmurou, em italiano hesitante. — Agora a floresta vai nos testar.

Naquela noite, ninguém dormiu bem.

Com o tempo, o receio inicial dos colonos foi se esvaindo. Tupi participava das ceifas, das celebrações religiosas e até das aulas improvisadas que Teresa organizava para ensinar os filhos dos camponeses a ler. Mas sua presença também provocava conflitos ocultos.

Padre Francesco, embora prudente, não escondia sua apreensão:

— Ele não é batizado. Vem de outro mundo, de outro deus.

Luigi respondeu com firmeza:

— Ele é meu filho agora. A floresta o trouxe para nós quando mais precisávamos. Isso também é milagre.

Certa manhã, já próximo do fim do ano, Tupi levou Rosa até o topo de um morro ao norte da colônia. Lá, apontou para o horizonte.

— Antes, tudo era floresta.

— E agora?, perguntou ela.

Ele pensou por um instante e respondeu, com um sotaque carregado:

— Agora é floresta com casas. Com risos. Com fogueira... e tristeza também.

Rosa segurou a mão dele. Era a primeira vez que ele falava tanto de uma vez só.

— E você? De onde veio, Tupi?

Mas ele não respondeu. Só olhou para o céu.

E naquele silêncio, Rosa entendeu: há dores que não se dizem. Só se carregam. Como cicatrizes invisíveis deixadas pela mata.


CAPÍTULO 10 — UM FUTURO ESCULPIDO A MACHADO

Santo Antônio dos Mulli, Novembro de 1885

O sol do fim da tarde derramava seu ouro pálido sobre os telhados de madeira recém-encerada. A fumaça das chaminés subia preguiçosa, misturando-se ao cheiro de milho assado, pão fresco e aguardente. As cigarras cantavam alto nos pinheiros, como se celebrassem também a chegada da festa mais aguardada do ano: a colheita.

Luigi caminhava pela estrada batida da colônia com passos lentos, sentindo o chão firme sob as botas — aquele chão que, menos de uma década antes, fora puro matagal e promessas vazias. Agora, a pequena Santo Antônio dos Mulli florescia como um broto teimoso que rompe a terra dura para alcançar o sol.

À sua esquerda, erguiam-se construções sólidas: a igreja de pedra basáltica, construída com o esforço de doze famílias e a bênção do padre Francesco, cujas paredes abrigavam não apenas preces, mas memórias. Ao lado, a escola, onde Isabetta, a filha do velho Zanin, ensinava as letras com mãos firmes e coração italiano. Ali, crianças de todas as idades — filhos de pedreiros, agricultores, marceneiros — aprendiam a desenhar o futuro.

E não longe dali, terminava a estrada de terra vermelha que agora ligava a colônia a outras comunidades italianas da serra gaúcha — Conde D’Eu, Dona Isabel, Caxias. Por ali passavam carros de boi, tropas de mulas, e, às vezes, viajantes que traziam notícias de Porto Alegre ou São Paulo. O mundo começava a se abrir.

Luigi já não era apenas um imigrante. Fora nomeado representante dos colonos junto ao governo provincial, cargo que aceitara com relutância. Não se via como político, mas como alguém que aprendera, a golpes de machado, que para sobreviver era preciso mais que fé: era preciso voz.

Matteo, agora com dezessete anos, já não usava os calções curtos da infância. Havia crescido alto, com os olhos escuros e incisivos do pai e a leveza de espírito da mãe. Sonhava alto. Falava em máquinas, ferrovias, pontes sobre rios imensos. Queria estudar engenharia em São Paulo, na Escola Politécnica recém-fundada.

— Pai... quero construir caminhos, como o senhor construiu este lugar. Mas com pedras, com metal, com ciência.

Luigi o ouvira em silêncio naquela manhã. Depois de um longo gole de café, assentiu.

— Vá, Matteo. Voe. Só não esqueça de onde partiu.

Rosa, agora moça feita, herdara a tenacidade silenciosa de Teresa. Era disciplinada, determinada, e havia encontrado sua vocação entre os livros. Junto de Isabetta, ajudava a alfabetizar as crianças menores, inclusive as filhas dos tropeiros e os pequenos filhos de imigrantes alemães que agora começavam a chegar.

Com Rosa, a escola ganhara vida. Era ela quem lia histórias em voz alta — de reis, guerreiros e santos — encantando os pequenos, como se plantasse esperança com palavras.

— Cada letra é uma chave, dizia às crianças. E cada chave abre uma porta.

A festa da colheita reuniu mais de cem pessoas no largo da igreja. Havia polenta fumegante, salame curado, bolos de milho, galinha recheada, vinho tinto em garrafões de vidro. E havia música: acordeão, violino e vozes italianas que cantavam canções de saudade e alegria. Velhos choravam. Jovens dançavam. As crianças corriam soltas, como quem não carrega ainda o peso do passado.

Luigi, ao lado de Teresa, servia o vinho com um sorriso que não via seu rosto havia anos. Seus cabelos já traziam fios brancos, e suas mãos estavam calejadas como troncos. Mas naquele dia, ao erguer os olhos para a colina onde havia levantado, com as próprias mãos, a primeira casa, algo dentro dele se quebrou suavemente.

Era gratidão. E uma dor doce.

— Lembra quando chegamos, Teresa?, murmurou ele. — Nem estrada havia. Só mato e medo.

Teresa apertou-lhe a mão.

— Agora temos uma casa. Uma aldeia. Um destino.

Mais tarde, sozinho diante da janela de seu quarto, Luigi viu o crepúsculo pintar o céu em tons de cobre e cinza. Ouviu risos ao longe, o tilintar de copos, uma cantiga em dialeto vêneto. E então, por um momento, viu-se de novo jovem, deixando a aldeia em Padova, com os filhos pequenos e um futuro por inventar.

A Itália estava distante, sim — tão distante quanto os sonhos que deixara para trás. Mas ali, entre o mato e a esperança, ele encontrara uma nova pátria, não traçada em mapas, mas esculpida em madeira, suor e amor.

Um futuro que nascera de um machado golpeando a mata.

E Luigi Mulli sorriu, enquanto o último raio de sol desaparecia atrás das montanhas.


EPÍLOGO — A SEMENTE DOS BIANCHETTI

Santo Antônio dos Mulli, Março de 1902

O velho Luigi Bianchetti sentou-se no alpendre de sua casa, agora com a fachada firme e envernizada, envolta por um jardim que Teresa plantara aos poucos, flor por flor. À sua frente, os parreirais ondulavam como um mar verde sob o vento da tarde. Mais adiante, um grupo de crianças brincava entre os canteiros de milho e as árvores de pêssego, gritando palavras em português entremeadas de dialeto italiano. Entre elas, corria um menino de olhos muito escuros, o neto mais novo, Antonio, que herdara o nome do bisavô e o espírito curioso de Matteo.

Luigi tinha agora cinquenta e sete anos, mas seu rosto parecia mais velho. Não por fraqueza, mas por ter vivido demais — cada sulco em sua pele contava uma batalha vencida, cada ruga uma estação difícil, cada cicatriz uma escolha.

Desde a chegada àquela terra, um quarto de século se passara.

Matteo não vivia mais na colônia. Tornara-se engenheiro civil e morava em Campinas, onde ajudava a projetar ferrovias que cruzavam o Brasil. Rosa, por sua vez, permanecera ali, firme como uma rocha. Casara-se com um viúvo local, um marceneiro de mãos calmas e coração justo. Eles cuidavam da escola e também da pequena biblioteca comunitária — onde os livros, doados por padres, viajantes e professores, repousavam sobre prateleiras de madeira da mata.

Teresa envelhecera com dignidade. Embora a força dos braços já não fosse a mesma, seu olhar permanecia luminoso. Cuidava do lar com ternura, e suas mãos sabiam quando acariciar, quando rezar e quando ensinar.

Tupi, agora um homem de quase trinta anos, morava nas bordas da mata, mas visitava a colônia como um irmão visita o lar da infância. Tinha a sabedoria ancestral do seu povo e a alma entrelaçada com a dos Bianchetti. Ensinava ervas e histórias, ensinava o tempo da terra, o silêncio da floresta e o respeito ao invisível. Era, em essência, a ponte que nunca se rompeu entre o velho mundo europeu e o espírito imemorial daquela terra.

Naquele dia, Luigi recebeu uma carta. O envelope vinha da Itália. Era de um primo distante, de Castelbelforte, a aldeia que ele deixara para trás. A carta falava de mudanças, de progresso, de tempos novos que haviam chegado ao Reino de Itália. Mas também falava de ausências. Muitos que Luigi amara — amigos, parentes, velhos vizinhos — já não existiam mais.

Ele a leu devagar, depois dobrou o papel com cuidado e o guardou entre os documentos da família, junto às passagens de navio, ao contrato de terra e a um pedaço seco de solo italiano que trouxera consigo no bolso da túnica em 1876.

Naquela noite, na ceia, Luigi pediu a palavra. Seus filhos, noras, netos e amigos estavam ali, em torno de uma longa mesa de madeira que ele próprio ajudara a esculpir, quando a colônia ainda era um amontoado de barracos.

— Quando chegamos aqui, disse com a voz pausada, não havia nada. Só mato, medo e esperança. Mas havia fé. Fé de que o amanhã poderia ser melhor do que ontem.

Fez uma pausa. O silêncio era reverente.

— Se hoje temos uma casa, uma igreja, uma estrada... se temos escola, música e até vinho nosso — não foi sorte. Foi escolha. Foi luta. Cada árvore que tombou nos deu abrigo. Cada semente que plantamos nos alimentou. E cada lágrima que derramamos regou este chão para que florescesse vida.

Ergueu um copo de vinho caseiro.

— A Itália foi o berço. Mas o Brasil foi o campo onde florescemos. Este chão é nosso, porque foi esculpido a machado, sim — mas também a suor, coragem e amor.

Naquela madrugada, enquanto todos dormiam, Luigi saiu sozinho e caminhou até o topo da colina. A mesma onde, quase trinta anos antes, levantara com as próprias mãos a primeira palhoça.

Ali, sob o céu repleto de estrelas, ajoelhou-se.

E, pela primeira vez em muitos anos, chorou.

Chorou pelos que ficaram. Pelos que partiram. Pelos que jamais chegaram. Chorou pelo menino que fora, pelo homem que se tornara, e pelo legado que deixava. A brisa lhe tocou o rosto com ternura. E ele sorriu.

semente dos Bianchetti havia germinado.

E dali, daquele solo batido e sagrado, nasceria o amanhã.


FIM


Cronologia Final

🔹 Outubro de 1876

Luigi Bianchetti, sua esposa Teresa e seus três filhos (Matteo, Rosa e o bebê Angelo) deixam Castelbelforte, província de Mantova, no norte da Itália, rumo ao Brasil, em busca de uma vida melhor. A Itália enfrenta uma grave crise social e econômica no período pós-unificação.

🔹 Janeiro de 1877
Após uma longa e difícil travessia marítima, a família desembarca no porto de Rio Grande e segue por terra e por rios até a Colônia de Santo Antônio dos Mulli, no interior do Rio Grande do Sul.

🔹 Março de 1877
Instalam-se provisoriamente em um abrigo de madeira improvisado. Começa o trabalho de desmatamento e adaptação à vida no Brasil. Teresa luta contra a saudade; Luigi enfrenta o desafio físico e emocional de edificar uma nova existência no desconhecido.

🔹 Novembro de 1877
As primeiras mudas de café e uma pequena horta plantada por Teresa começam a vingar. Surge um tímido sinal de esperança.

🔹 Março de 1878
Celebra-se a primeira Festa de São José com os colonos vizinhos. A comunidade começa a tomar forma e estabelecer laços sociais.

🔹 Inverno de 1879
Luigi lidera a construção de uma escola e de uma capela de madeira. Sua visão de futuro começa a inspirar os demais colonos.

🔹 Outubro de 1880
Rosa torna-se auxiliar de ensino, alfabetizando as crianças da colônia. Matteo mostra talento com números e engenharia rudimentar, desenhando pontes de madeira para os riachos próximos.

🔹 Março de 1881
O menino indígena, posteriormente batizado como Tupi, é encontrado por Luigi às margens do rio. Ele se torna membro da família e importante elo entre os colonos e a natureza que os cerca.

🔹 Dezembro de 1883
Tupi ajuda a comunidade a enfrentar uma infestação de pragas nas lavouras, utilizando saberes tradicionais. Os colonos passam a respeitar mais a sabedoria indígena.

🔹 Abril de 1885
Matteo parte para estudar engenharia em São Paulo, com apoio dos pais e da comunidade. Rosa se casa com Giovanni, um marceneiro da colônia, e assume a liderança da escola.

🔹 Novembro de 1887
A estrada que liga Santo Antônio dos Mulli a outras colônias italianas da serra é finalizada. A comunidade prospera e ganha reconhecimento na região.

🔹 Março de 1902
Luigi, agora com 57 anos, contempla o legado de sua família. Os netos crescem entre o italiano e o português, a horta e os livros. A semente dos Bianchetti floresceu.


✒️ NOTA HISTÓRICA DO AUTOR

Este resumo de romance é uma homenagem ficcional — mas profundamente embasada — à saga dos milhares de imigrantes italianos que, entre o final do século XIX e início do XX, cruzaram o Atlântico em busca de uma vida digna no Brasil.

As condições na Itália, especialmente nas regiões do norte e sul, eram devastadoras: fome, desemprego, fragmentação social e uma reforma agrária ineficaz empurraram famílias inteiras a abandonar seus lares. Após a unificação italiana (1861), o sonho de unidade não se traduziu em prosperidade para os camponeses.

No Brasil, por outro lado, a abolição da escravidão e a expansão da agricultura demandavam novas mãos para o trabalho, especialmente nas lavouras de café. A política de colonização promovida pelo Império Brasileiro incentivava a vinda de imigrantes europeus, oferecendo terras — muitas vezes em condições precárias e distantes — com a promessa de autonomia e progresso.

Surgiram assim as colônias italianas, notadamente no Rio Grande do Sul, Santa Catarina e São Paulo. Essas comunidades enfrentaram dificuldades imensas: isolamento, doenças, o desafio do desmatamento e o convívio inicial tenso com os povos indígenas que ali viviam muito antes de sua chegada.

Os personagens deste livro são fictícios, mas suas experiências refletem com fidelidade o espírito de resiliência, fé e luta que marcou a trajetória de tantos. A figura de Tupi simboliza a ponte entre dois mundos — o europeu e o indígena —, uma reconciliação que a história real raramente permitiu com justiça.

A Colônia de Santo Antônio dos Mulli não existiu literalmente, mas é inspirada em diversas colônias reais como Nova Milano, Dona Isabel (atual Bento Gonçalves)Conde D’Eu (Garibaldi) e a Silveira Martins, conhecida com a 4ª Colônia Italiana, que ainda hoje preservam a herança linguística e cultural dos primeiros pioneiros.

Se esta obra conseguiu, ainda que por breves instantes, reconectar o leitor com a dor, a coragem e a esperança dos que vieram antes de nós, então seu propósito está cumprido.

Piazzetta