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terça-feira, 10 de setembro de 2024

Os Últimos Dias de San Martino




Era o ano de 1880, e as colinas da pequena vila de San Martino, no coração do Vêneto, estavam mais secas do que nunca. O cheiro acre da terra ressequida invadia o ar, e o silêncio reinava sobre os campos que, outrora, eram verdes e férteis. Os camponeses, antes orgulhosos de suas colheitas, agora observavam, impotentes, as terras que não mais lhes pertenciam, e o céu, que parecia cada vez mais distante de seus pedidos por chuva.
Luigi Bortolatti, um homem de olhos cansados e costas curvadas pelo peso da vida no campo, levantou-se cedo naquela manhã, como fazia todos os dias. O frio do outono penetrava suas roupas gastas, e ele sabia que, em breve, o inverno implacável chegaria para trazer ainda mais dificuldades. Ao lado de sua esposa, Teresa, e de seus dois filhos pequenos, Luigi observava as sombras da fome se aproximarem como lobos famintos, rondando sua casa, onde o pão era cada vez mais raro e os olhares mais desesperados.
O Vêneto, uma região outrora próspera sob o domínio da Sereníssima República de Veneza, tinha sido transformado pela violência das guerras, pela tirania dos novos senhores e pela ganância dos reis. Com a anexação ao recém-formado Reino da Itália, sob a Casa de Savoia, as promessas de prosperidade se dissiparam como a névoa das manhãs de inverno. "Com a Sereníssima, almoçávamos e jantávamos," murmurava Luigi, repetindo o dito popular que circulava entre os camponeses, "com Cesco Bepi, só almoçávamos, e com os Savoia, nem almoçamos nem jantamos."
San Martino, como tantas outras vilas do Vêneto, fora devastada pela fome, pelos impostos extorsivos e pela ausência de perspectivas. Os grandes proprietários de terra, outrora poderosos, agora vendiam suas propriedades aos poucos que ainda conseguiam pagar. O resto, como Luigi, vivia em terras alheias, trabalhando como diaristas ou, os mais afortunados, como meeiros, dividindo o pouco que colhiam com seus patrões. Nos últimos anos, até isso se tornara escasso, e a dignidade que antes carregavam se perdia com cada safra falida.
Naquela manhã, Luigi e Teresa reuniram os filhos ao redor da mesa, onde apenas um pedaço de pão duro servia de refeição. "Não podemos continuar assim," disse Teresa, seus olhos refletindo a angústia de uma mulher que via sua família definhar dia após dia. "Precisamos tomar uma decisão, Luigi. As crianças... elas não podem crescer assim."
Luigi sabia que sua esposa estava certa. As conversas na vila eram sempre as mesmas: todos falavam da América, das oportunidades além-mar, das promessas de terra e de trabalho. Padres no Vêneto incentivavam abertamente a partida durante os sermões, como se emigrar fosse uma missão sagrada. "A terra prometida," diziam. Mas para Luigi, deixar sua terra natal era como arrancar as próprias raízes. O Vêneto corria em suas veias, assim como corria em seus antepassados. Ir embora significava abandonar tudo o que conhecia, tudo o que era.
"Ouvi dizer que muitos padres da região estão organizando grupos para a América," disse Teresa, sua voz hesitante. "Até o padre Giovanni está indo. Ele levará metade da vila com ele."
O padre Giovanni, um homem respeitado e amado por todos, tinha visto sua própria igreja esvaziar-se nos últimos meses. As famílias que restavam na vila eram poucas, e mesmo essas pareciam fadadas a seguir o mesmo caminho. O clero, que outrora fora uma força conservadora, agora liderava o êxodo. Luigi sabia que isso não era um bom sinal.
Naquela tarde, Luigi caminhou até a praça da vila, onde encontrou outros homens na mesma situação. Seus rostos estavam marcados pela desesperança, mas também pela determinação. "Não podemos mais viver assim," disse Carlo, um dos vizinhos de Luigi. "Eu vou. América, Brasil, Argentina... Não importa. Qualquer lugar é melhor do que aqui."
Luigi observou o homem, sentindo o peso daquelas palavras. A emigração, que antes parecia uma saída extrema, agora se apresentava como a única solução. "E o que faremos com a terra?" perguntou ele, mais para si mesmo do que para os outros. "Esta terra que foi nossa por gerações?"
"Que terra, Luigi?" respondeu Carlo, amargo. "Esta terra já não nos pertence. Trabalhamos para outros. Somos escravos de um sistema que nunca nos favoreceu."
Naquela noite, Luigi voltou para casa com o coração pesado. Sentou-se à mesa, onde Teresa já o esperava, e falou com a voz baixa, como se admitisse uma derrota. "Teresa... talvez tenhamos que ir. Não há mais nada para nós aqui."
Os dias que se seguiram foram marcados por preparativos silenciosos. Luigi e Teresa reuniram o pouco que possuíam: algumas roupas, ferramentas de trabalho, e o pouco dinheiro que haviam conseguido economizar. O padre Giovanni, fiel ao seu rebanho, ajudava as famílias com os trâmites necessários, enquanto suas palavras de encorajamento ecoavam pelos campos vazios.
"Deus os guiará," dizia ele, em seus sermões dominicais. "Há uma terra onde o trabalho é recompensado, onde poderão criar seus filhos em paz, longe da fome e da miséria. Sigam com fé."
Em um dia frio de novembro, a pequena família Bortolatti, junto com outras dezenas de famílias de San Martino, subiu em carroças que os levariam até a estação de trem mais próxima e dali ao porto de Gênova. A viagem foi longa e árdua, atravessando vilas desertas, onde as casas estavam abandonadas e os campos, intocados. Era uma visão de desolação que deixava Luigi com um nó no estômago.
"Olhe," disse Teresa, apontando para uma igreja à beira da estrada. "Até os párocos se foram."
No porto de Gênova, uma multidão aguardava desordenada pelas ruas próximas ao cais. Homens, mulheres e crianças se amontoavam com suas bagagens, e os navios para a América eram poucos e sempre lotados. Luigi olhou para o vasto mar à sua frente, uma extensão que ele nunca havia visto antes. Era assustador pensar que, do outro lado daquele oceano, havia um destino incerto.
A bordo do navio, o cheiro de suor, fome e desespero misturava-se com o ar salgado do mar. As condições eram terríveis. As famílias se amontoavam em compartimentos apertados, com pouca ventilação e ainda menos comida. As crianças choravam, e os rostos dos adultos expressavam o medo de uma viagem que muitos já sabiam que poderia ser fatal. "Eles não nos querem vivos," murmurava uma mulher ao lado de Teresa, referindo-se à tripulação do navio que tratava os passageiros com indiferença.
Durante os longos dias no mar, Luigi tentava se agarrar à esperança de que, do outro lado do oceano, haveria algo melhor. Algo que justificasse o sacrifício de deixar para trás a terra de seus antepassados.
Finalmente, após semanas de travessia, o navio chegou ao Brasil. O calor tropical e o cheiro da terra eram um choque para aqueles que haviam vivido nas colinas frias e secas do Vêneto. Luigi e sua família desembarcaram com outras centenas de imigrantes, todos cansados e abatidos, mas com uma centelha de esperança nos olhos. O que os esperava ali, naquela terra distante, ainda era um mistério.
San Martino, agora, era apenas uma lembrança distante, uma sombra no horizonte da memória.