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sábado, 13 de dezembro de 2025

Sobrenomes de Crianças Enjeitadas: A História Oculta dos Abandonados na Itália



Sobrenomes de Crianças Enjeitadas: A História Oculta dos Abandonados na Itália

O contexto social do abandono infantil

Ao longo dos séculos XVII, XVIII e XIX, o abandono infantil não era um fenômeno isolado, mas parte dolorosa da estrutura social europeia. A pobreza extrema, a orfandade causada por epidemias, as uniões ilegítimas e a ausência de políticas de amparo empurravam milhares de mães a depositar seus recém-nascidos nas rodas dos expostos, esperando que ali encontrassem ao menos uma chance de sobrevivência. Muitas dessas mulheres não deixavam qualquer indício de identidade, seja por vergonha, seja por medo de punição moral ou religiosa. Assim, ao chegarem às instituições, esses bebês precisavam de algo básico, porém fundamental: um nome que lhes permitisse existir perante o mundo. Nascia então a prática de atribuir sobrenomes artificiais, criados pelos administradores, religiosos ou escrivães responsáveis.

A lógica por trás dos sobrenomes inventados

Esses sobrenomes inventados não eram aleatórios; carregavam significados que refletiam a condição da criança, a rotina da instituição ou até um simbolismo religioso. Termos como Esposito, Innocenti, Proietti ou Della Casa serviam tanto para registrar quanto para estigmatizar, marcando para sempre a origem dolorosa da criança. Em muitos casos, o sobrenome funcionava como um código interno para indicar em qual roda de expostos o bebê havia sido encontrado ou qual religioso estava de plantão no momento do registro. Outras vezes, eram sobrenomes que expressavam esperança — como Fortunato, Providenza ou Felice — numa tentativa de oferecer um sopro de destino melhor àquele recém-nascido que chegava ao mundo sem amparo familiar.

A trajetória desses sobrenomes no Brasil

Com a imigração italiana para o Brasil entre os séculos XIX e XX, milhares desses sobrenomes criados artificialmente atravessaram o oceano e se enraizaram definitivamente em terras brasileiras. Nas colônias agrícolas do Sul, em São Paulo e até no Espírito Santo, muitos descendentes carregam até hoje sobrenomes cuja origem está ligada a antigas casas de acolhimento italianas — sem que suas famílias conheçam essa história. Essa migração fez com que sobrenomes antes restritos às instituições europeias se misturassem à sociedade brasileira, perdendo a marca de abandono, mas preservando o valor histórico. Hoje, compreender essa tradição é resgatar uma parte silenciosa da formação de diversas famílias ítalo-brasileiras, dando voz aos que um dia foram registrados como “ninguém” e que, graças a um sobrenome inventado, puderam reescrever seu destino.

A criação de sobrenomes nas instituições de acolhimento

Durante séculos, milhares de crianças nascidas sem reconhecimento familiar foram registradas com nomes e sobrenomes criados especialmente para elas. Em vez de refletirem a herança de um clã, esses sobrenomes carregavam a memória de um abandono e, ao mesmo tempo, a tentativa de lhes oferecer uma identidade mínima. No mundo latino, a ideia de “encontrar” uma criança — em francês l’enfant trouvé e em italiano i trovatelli — suavizava a dura realidade do abandono, ainda que os registros oficiais costumassem indicar “pais desconhecidos”, “filho natural” ou expressões semelhantes.

A prática era comum em diversos países europeus, especialmente na Itália. Muitas crianças eram deixadas em portas de igrejas, hospitais ou instituições de caridade. Outras eram depositadas nas tradicionais Rodas dos Expostos, mecanismos instalados em orfanatos que permitiam deixar o bebê anonimamente. Quem registrava a criança — administradores, religiosos ou o próprio tabelião — ficava responsável por criar um sobrenome que a distinguisse e, ao mesmo tempo, a identificasse como pertencente àquela condição.

Significados e categorias dos sobrenomes inventados

Diversos sobrenomes surgiram a partir desse sistema. Alguns eram inspirados no local onde o bebê foi encontrado; outros evocavam sentimentos de esperança, proteção divina ou até referências moralizantes. Havia também sobrenomes carregados de significados duros, como Abbandonati, Ignoti, Incerti, Bastardi, Trovatelli, entre outros — embora progressivamente desestimulados no século XIX. Certos nomes tornaram-se tão recorrentes que ultrapassaram fronteiras e chegaram ao Brasil com os imigrantes italianos.

Entre os sobrenomes inventados mais comuns estavam:

Benedetti e variantes, ligados a “abençoado”, expressão de bom augúrio.

Benigni, associado à bondade e benevolência.

Casagrande, que podia indicar tanto um edifício imponente quanto a “Casa Grande” das instituições de acolhimento.

Colombo, ligado à pureza da pomba, muito usado na Lombardia, onde os pequenos abandonados eram chamados colombit.

Innocenti, um dos mais emblemáticos, especialmente em Florença, ligado ao histórico hospital dos Inocentes.

Omoboni, mesclando origem pessoal e desejo de virtudes futuras.

Proietti, que remete ao ato de ser “lançado” ou “posto fora”.

Trovato e Trovatelli, diretamente derivados da ideia de criança encontrada.

A mudança de sensibilidade no século XIX

Essa prática passou por profundas transformações ao longo do século XIX. À medida que novos debates sobre dignidade humana surgiam, tornou-se evidente que certos sobrenomes condenavam seus portadores a um estigma perpétuo. Em regiões como Nápoles, tornou-se proibido registrar bebês com cognomes que denunciassem explicitamente sua origem.

A partir desse novo olhar, sobrenomes passaram a ser criados de maneira mais criativa e menos discriminatória. Muitos refletiam o imaginário da época:

objetos cotidianos: Quaderni, Mestoli, Tetti

plantas e flores: Pioppi, Susini, Limoni, Rosai

ofícios: Tintori, Merciai

nomes próprios de cantores e políticos famosos da época nou lugares: Puccini, Mantovani, Tamigi

datas e festividades religiosas

sentimentos e virtudes: Fortunati, Benarrivati, Bonaventuri

elementos moralizantes: Giusti, Placidi, Pietosi

Esses sobrenomes criados artificialmente se tornaram parte da identidade de milhares de famílias e, com o tempo, foram naturalizados nas comunidades.

Da Itália ao Brasil: herança, memória e identidade

No Brasil, especialmente nas regiões de imigração italiana, muitos desses sobrenomes foram mantidos, transmitidos e incorporados à cultura local. Hoje, uma simples assinatura pode carregar séculos de história — não apenas de origem geográfica, mas de sobrevivência, anonimato e reinvenção.

Compreender a origem desses sobrenomes significa revisitar práticas históricas ligadas ao abandono infantil, às instituições de assistência e aos sistemas de acolhimento que moldaram identidades familiares inteiras. É uma história de dor, sobrevivência e estigma — mas também de esperança, reconstrução e novos começos. 

Conclusão 

Os sobrenomes atribuídos às crianças enjeitadas revelam uma parte pouco conhecida da história italiana e ajudam a compreender a formação de muitas famílias que hoje buscam suas raízes. Esses nomes, criados entre a dor do abandono e o desejo de oferecer uma nova chance, cruzaram oceanos e passaram a fazer parte da herança de milhares de brasileiros. Entender sua origem amplia o conhecimento genealógico, resgata identidades e fortalece a memória dos antepassados que, apesar das adversidades, deram início a novas linhagens.

Nota do Autor 

Escrevo sobre esse tema porque, em tempos recentes, milhares de descendentes de imigrantes italianos têm buscado reconstruir suas histórias familiares e compreender o significado de seus sobrenomes. Muitos se surpreendem ao descobrir que determinadas denominações nasceram em orfanatos, casas de caridade ou rodas dos expostos. Minha intenção é oferecer clareza e contexto sobre esse fenômeno histórico, ajudando cada leitor a encontrar, em seu próprio sobrenome, uma parte da trajetória de seus antepassados.

Dr. Luiz Carlos B. Piazzetta