sábado, 30 de outubro de 2021

Os Navios de Lázaro

Emigrantes amontoados para o embarque

 

“Le Navi di Lazzaro”, assim eram definidos pelos jornais e opinião pública italiana, na época da grande emigração, os navios que atravessavam o oceano com sua carga de miséria e doenças, ou seja, com os milhares de emigrantes.

Após todo sofrimento, ainda em terra, desde  o momento da decisão de emigrar e o embarque no navio, a viagem transoceânica transformava-se em uma nova batalha, talvez a mais difícil, a ser vencida pelos emigrantes. 

Com a finalidade de conhecer melhor e apresentar uma descrição mais completa e precisa, e não apenas se baseando em números estatísticos de doenças e de mortalidade que ocorriam a bordo, nos valemos também da literatura disponível sobre o tema, em especial o livro Sull’Oceano, publicada em 1889 obra do escritor Edmondo De Amicis, nascido em 1846 e falecido em 1908, e amplamente utilizada por aqueles que se dedicam a historiografia da emigração.



Esse célebre livro é considerado um dos primeiros romances italianos a afrontar o tema da grande emigração. Foi escrito depois da viagem do seu autor, de Gênova à Montevidéu, no vapor Galileo, no ano de 1884. Este livro relata essa experiência vivida em primeira pessoa pelo escritor. Ele é basicamente uma espécie de diário de bordo, dedicado à viagem dos emigrantes, provenientes de muitas regiões italianas, que falavam somente os seus dialetos locais e, portanto, comunicavam-se apenas com os próprios "paesani".

No livro estão relatos de fatos ocorridos com famílias que viajavam para a América do Sul, em terceira classe, na busca de uma vida melhor, retratados pelo escritor, que lhes deu voz e mostrou suas agruras. Aqui temos um trecho: 


A situação precária dos emigrantes italianos a bordo de um navio


"Quando cheguei, ao entardecer, o embarque dos emigrantes já havia começado há uma hora, e o Galileu, junto com a descida de uma pequena ponte móvel, continuava a embarcar  miséria: uma procissão interminável de pessoas saindo em grupos do edifício do outro lado, onde um delegado de Polícia examinava os passaportes. A maioria, tendo passado uma ou duas noites ao ar livre, agachados como cães nas ruas de Gênova, estava cansada e com sono. Trabalhadores, camponeses, mulheres com bebês no peito, meninos que ainda tinham a chapa de metal do jardim de infância presa ao peito, passavam, quase todos carregando uma cadeira dobrável debaixo do braço, sacolas e malas de todos os formatos na mão ou na cabeça, braçadas de colchões e cobertores, e a passagem com o número do leito pressionado entre os lábios. Mas o espetáculo foi na terceira classe, onde a maioria dos emigrantes, apanhados pelo enjôo, deitavam-se ao acaso, atirados sobre os bancos, em posturas de doentes ou mortos, com o rosto sujo e os cabelos despenteados, no meio de um grande monte de cobertores e trapos. Vimos famílias unidas em grupos de compaixão, com aquele ar de abandono e perplexidade típica da família de sem-teto: o marido sentado e dormindo, a esposa com a cabeça apoiada em seus ombros e os filhos na mesa, que dormiam com a cabeça apoiada nos joelhos dos dois: montes de trapos, onde não se via nenhum rosto, e saía apenas o braço de uma criança ou a trança de uma mulher. (...) 

E o pior estava embaixo, no grande dormitório, cuja escotilha se abria perto do tombadilho de popa: olhando para fora, via-se na meia escuridão corpos sobre corpos, como nos navios que trazem os corpos de emigrantes chineses de volta à pátria; e dali saía um concerto de lamentos, chocalhos e tosses, como de um hospital subterrâneo, para nos tentar a desembarcar em Marselha. 

De Amicis pouco enfatizou questões delicadas como a alimentação a bordo, as condições de higiene e a mortalidade durante a viagem. Na verdade, muitos morriam devido a doenças ou a desconfortos sofridos nos navios – na maioria das vezes os mais vulneráveis: as crianças e os mais velhos. 




Exemplos dessa triste realidade não faltaram, sobretudo nos vapores que rumavam para o Brasil levando emigrantes com o bilhete subvencionado pelo governo do grande império sul-americano: em 1888, morreram de fome 36 pessoas no navio Matteo Bruzzo e 18 no Carlo Raggio; em 1889, no Frisia, 300 emigrantes adoeceram e 27 faleceram por asfixia em decorrência da proximidade entre o dormitório e a sala das máquinas.

As observações do deputado Pantano em uma sessão do Parlamento no ano de 1899 apontam claramente o motivo de tantas mortes. De acordo com o parlamentar:

"Os navios eram carcaças já muitas vezes dedicadas ao transporte de carvão, cargas de carne humana, amontoada e desprotegida, cuja passagem pelo oceano era assinalada por uma esteira de cadáveres ceifados pela morte nas fileiras dos emigrantes mais fracos e doentes, das mulheres e das crianças, extenuadas, mal de saúde devido aos alimentos insuficientes ou de má qualidade, pela inexistência de cuidados sanitários e pela falta de ar respirável na plenitude de um horizonte livre"


Emigrantes a bordo amontoados no tombadilho do navio


Em relação a esses episódios, a fase mais crítica ocorreu antes da lei de 1901. Nesse período, a tutela sanitária das massas de emigrantes, na falta de uma lei orgânica sobre emigração, era legada ao Regolamento della Marina Mercantile de 1879 e depois ao Regolamento di Sanità Marittima de 1895. 

O primeiro limitava-se ao conjunto de normas higiênicas para as embarcações adaptadas ao transporte de emigrantes; o segundo foi pioneiro na matéria sanitária, contemplando diretrizes para a tutela do emigrante – então definido como objeto jurídico específico – e delimitando, em termos gerais, uma série de funções competentes aos oficiais de porto e aos médicos de bordo.

Pesquisadores utilizaram um desses documentos, o boletim de bordo do vapor Giava, escrito pelo médico Teodoro Ansermini, para apresentar descrição minuciosa da situação higiênico-sanitária dentro do vapor da Navigazione Generale Italiana em uma das inúmeras viagens de transporte de emigrantes para a América do Sul. O navio deixou Gênova em 8 de outubro, aportou em Buenos Aires em 8 de novembro e retornou à Gênova em 4 de dezembro de 1899, passando por Santos e Rio de Janeiro.

Os problemas começaram logo na partida, quando Ansermini, o médico de bordo, solicitou o documento comprobatório da desinfecção do navio e foi prontamente lembrado de que era pago pela companhia e, portanto, não deveria criar obstáculos. Discorrendo sobre a estrutura interna do vapor, o médico acusava a falta de ventilação e de luz natural, as péssimas condições de alimentação e de alojamento, que dificultavam até mesmo o emigrante de lavar-se, além da escassez de remédios. Diante desse quadro de precária higiene, o alastramento de doenças era sua principal preocupação: 

"Se quisermos dar ao médico do navio uma certa responsabilidade em casos de epidemias, é absolutamente essencial que ele também tenha autoridade para fazer a higiene necessária a bordo: ainda não consegui obter, exceto por uma noite, que a permanência dos passageiros no convés seja prolongada, o que será preciso para tentar conter as duas invasivas epidemias de tifo e varíola, porque os porões não são suficientemente ventilados, e o pouco ar que existe, já doentio, esquenta muito e se decompõe, até se tornar irrespirável". 

Antes do início da viagem de retorno, Ansermini revelou outra preocupação com a higiene quando veio a ordem para o capitão do navio desfazer-se de grande quantidade de camas para abrir espaço ao carregamento de mercadoria. Tal fato expunha, mais uma vez, o emprego promíscuo dos vapores no transporte de emigrantes e merdorias. 

"O problema é que, depois de tantas doenças epidêmico-contagiosas a bordo (varíola, tifo, difteria, mortes), as desinfecções não podem mais ser feitas, e as mercadorias ficarão acondicionadas em instalações já habitadas por passageiros há um mês (... )". 

Finalizando os registros no boletim de bordo, o médico recuperou seu pequeno histórico de vida profissional para expressar sua indignação e perplexidade mediante a viagem que durara quase dois meses. 

"Não me lembro, no meu exercício prático de sete anos, de ter sido médico dos pobres e de seis sociedades operárias, nunca ter visto tanta sujeira e tantas vidas amontoadas em salas tão estreitas e menos adequadas ao uso pretendido ".

O testemunho do médico Teodoro Ansermini,  constituiu-se em corajosa denúncia do sistema que explorava o emigrante e uma prova do tratamento dispensado pelas autoridades competentes, mais atentas aos interesses das companhias de navegação do que aos daqueles que emigravam. 

Por conta disso, criou-se uma comissão formada por um oficial e um médico do porto de Gênova para analisar as denúncias. As medidas tomadas mostram com clareza de que lado os órgãos oficiais estavam: interpelada verbalmente, a Navigazione Generale Italiana garantiu que tais fatos jamais se repetiriam, enquanto o médico, cujos escritos foram considerados exagerados, recebeu severa censura do Ministério da Marinha, ao qual era subordinado.




Vários outros documentos oferecem testemunhos dramáticos, sobretudo no período da emigração subvencionada para a América do Sul, quando a lei de 1888 ainda não havia regulamentado as condições de viagem e permitia a utilização de navios a vela ou mistos.

Os interesses dos armadores e o conivente silêncio das autoridades marítimas somados às estratégias engendradas para enfrentar a concorrência asseguravam contratos lucrativos de introdução da imigração subvencionada, apoiados no baixo preço da rota sul- americana. 

De outra parte, o emigrante italiano era mercadoria barata, solicitada a mover-se com baixos preços do bilhete de viagem. A estatística sanitária oficial da emigração italiana começou a ser publicada apenas em 1903. Alguns estudos contemporâneos, no entanto, fornecem dados sobre as condições sanitárias das viagens transoceânicas. 

Apesar algumas incoerências, são considerados como as únicas fontes relativamente confiáveis para o período após a aprovação da lei de 1888. Pesquisadores atuais apresentaram alguns números sobre a mortalidade e morbidade nos navios de emigrantes. 

Dos 480 casos examinados por Druetti, 133 apresentaram mortes e destes, 90 diziam respeito a crianças com idade inferior a 5 anos. As altas taxas de mortalidade eram causadas por doenças infecciosas, intestinais ou do aparelho respiratório. Quanto aos adultos, a principal causa de morte era a tuberculose pulmonar.

No século XX, quando a lei de 1901 instituiu as diretrizes básicas da tutela sobre a saúde do emigrante antes do embarque e durante a viagem, estabelecendo responsabilidades e controles, começaram a ser produzidos documentos importantes. Com base nesse documentos desnuda os problemas higiênico-sanitários da travessia do Atlântico e seus desdobramentos em mortes ou doenças. 

As taxas anuais de mortalidade para o período 1903-1915 foram quantificadas de acordo com o destino no Novo Mundo e se a viagem era de ida ou volta. Essas taxas nunca ultrapassaram o índice de uma morte a cada mil embarcados, sendo que os números concernentes à América do Sul sempre foram superiores aos da América do Norte, com exceção dos anos de 1914-1915.

No movimento de retorno, as taxas aproximavam-se – ultrapassando, em alguns anos (1903, 1904 e 1907) – do índice citado acima, e os valores para a América do Norte superaram os do Sul em 1909, 1910 e 1915. A taxa de mortalidade superior na emigração para a América do Sul pode ser explicada pela prevalência de grupos familiares, ou seja, pela maior presença de crianças nos navios. Vítimas potenciais de doenças infecto-contagiosas, não por acaso elas lideravam as estatísticas dos óbitos.




As doenças mais freqüentes nos vapores que se dirigiam às Américas eram malária, sarampo e doenças bronco-pulmonares. Em relação à viagem de retorno, havia certa diferença entre o Norte e o Sul do continente americano. Entre os italianos que voltavam da América do Norte, a principal doença que os acometia era a tuberculose pulmonar, seguida pela alienação mental e o sarampo. Para aqueles que vinham da América do Sul, prevaleciam o tracoma, a tuberculose pulmonar e o sarampo.

As péssimas condições e a lotação dos vapores que transportavam emigrantes, muitas vezes navios de carga adaptados para essa função, ofereciam a combinação ideal para a disseminação de doenças. 

Outro fator importante era o mal estado de saúde daqueles que deixavam a Itália. Mas o que chama atenção é a superioridade das taxas de mortalidade e morbidade da viagem de retorno, revelando também a situação precária desses emigrantes em terras americanas e, até talvez, uma política intencional por parte desses governos para se livrarem dos considerados não aptos. 




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