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domingo, 1 de outubro de 2023

A Jornada de Padre Luigi Marzano na Colônia de Urussanga



O sonho da terra e de ser seu proprietário, fugindo assim da parceria - mezzadria, chamou a atenção dos italianos. A possibilidade de se libertar dos latifundiários, das precárias condições de trabalho, da fome e das doenças foi a ideia propagada pelo governo do Brasil através dos seus órgãos de imigração. 

Primeiro o governo do império brasileiro e depois o da república promoveram a introdução de imigrantes que, deviam ser agricultores e acompanhados de suas famílias, que desejassem se estabelecer no país como proprietários territoriais, nos lotes das colônias criadas para esse fim, ou em outras terras em condições de atender às exigências deste decreto. Mas infelizmente, não foi bem assim, conforme os relatos dos imigrantes que chegaram ao Brasil no final do século XIX. 

O padre Luigi Marzano deixou a Itália em 15 de novembro de 1899, embarcou no navio Minas, e segundo seus apontamentos "um grande navio, não muito rápido, sem luxo, mas de uma força incomum, de cem metros de comprimento por doze de largura".

Ele desembarcou no porto do Rio de Janeiro em 6 de dezembro de 1899, na companhia de seu amigo, também missionário, Pe. Pizzio. Depois de alguns dias no Rio, embarcou para Paranaguá, “porto seguro do Estado do Paraná, cuja capital Curitiba, ao qual se chega por um trecho de ferrovia, subindo progressivamente, entre montanhas, passando vales sobre pontes em ferro até chegar ao planalto da capital, que goza de um encantador clima de perpétua primavera. Em Curitiba, existe um bispado”

A viagem continuou em direção à Desterro - atual Florianópolis, e desta o Padre Luigi tomou o vapor  Laguna, com destino à cidade de mesmo nome. Ele conheceu esta cidade e pois tinha sido a terra natal de Anita Garibaldi, “de cujos feitos, como os de seu marido, a memória ainda hoje permanece”. 

A exuberância do Brasil, de suas matas virgens povoadas de "selvagens que não têm alma como a nossa; talvez matar esses nossos irmãos não seja um assassinato culpado. Deixemos tudo nas mãos da Providência Divina e chegará o tempo em que adquiriremos muitas almas nas selvas da floresta para a civilização e para o Paraíso”

Essa diversidade não poderia deixar de surpreender o europeu. Padre Marzano ficou ainda mais impressionado porque morava em Turim, a metrópole da Belle Époche italiana e um importante centro europeu. Apesar de ter seguido sua vocação, os contrastes entre Turim e Urussanga eram muito grandes.

Porém, quando fala sobre os hábitos alimentares dos imigrantes italianos no Brasil, ainda que superficialmente, sempre destaca as diferenças entre a nova terra e sua pátria. Entre outras coisas, Torino sempre gozou de uma reputação de gosto gastronômico refinado, desde os dias do grande chef da corte, Messisburgo. Arroz com feijão era uma combinação muito estranha para ele. Sem falar na batata-doce e nas frutas exóticas.

Sabe-se agora que as condições socioeconômicas do Vêneto, por exemplo, foram problemáticas nas últimas décadas do século XIX. A tradição oral e escrita não nos nega: no Vêneto a fome era uma realidade e alguns alimentos, como o pão branco, o pão de trigo, eram reservados apenas para os doentes ou às classes abastadas.

Padre Marzano também encontrou esse conceito no Brasil. Aqui o pão branco era um alimento caro e medicinal. Mas mesmo na Itália, para muitos pertencentes às classes mais desfavorecidas das várias províncias, o pão de trigo sempre foi uma espécie de miragem, um sonho realizado algumas vezes no curso da vida. 

Nas palavra do padre “Então, para conseguir um pouco de pão de farinha você tem que ir ao negociante. Este último importa farinha da Argentina a um preço bastante alto, e na maioria das vezes esta farinha está alterada ou um tanto deteriorada, de modo que há colonos que passam anos sem provar o pão, exceto os que sofrem de doenças. Por outro lado, os vênetos e os friulianos não sentem necessidade de pão, pois na Itália raramente o comem. De fato, uma vez, tendo perguntado a um velho se ele já tinha adoecido, ele respondeu: - "Tenho 87 anos e graças a Deus ainda não provei um pão - o que significa que ele nunca esteve doente, colocando o pão entre os remédios. No entanto, ele estava saudável e alegre, o que foi um prazer vê-lo”

“Chi pane mi dà mi è padrone” diz o antigo provérbio camponês. O pão é o elemento cultural, a pedra angular de todas as dietas tradicionais. Que o pão é um elemento caracterizador da vida e das culturas do sul, das ilhas e de outras partes do Mediterrâneo é atestado pelos estudos do passado e dos nossos tempos dedicados aos cereais e ao pão por arqueólogos, historiadores, antropólogos, folcloristas, escritores e nutricionistas.

Muitos estudiosos têm se dedicado exclusivamente aos problemas do trigo, mas poucos são os que se dedicam ao estudo do consumo do milho, seu grande substituto. Sabe-se também que as classes populares recorriam aos "grãos", cereais menores, leguminosas, tremoços, castanhas, milho e, em tempos de crise grave, ervas silvestres para panificação, por exemplo.

O milho, cuja tradição remonta à primeira metade do século XVIII, "misturado" com outros cereais, leguminosas e, às vezes, ervas, fazia pães, pães achatados, panquecas cozidas na gordura, focaccia, 'pizzas' e polenta , já entrou, à custa do trigo e de outros cereais, especialmente cevada, centeio, aveia e espelta, nas dietas populares. 

No início do século XX, apesar de algumas melhorias no consumo de alimentos, o pão de trigo continua sendo uma exceção para os trabalhadores da terra, que usam o milho e várias "misturas" de cereais e leguminosas para fazer pão". E é precisamente ao milho que padre Marzano dedica algumas páginas de seu relatório:

“Tendo assim preparado o terreno para o fogo, quais são as plantações? O principal e mais gratificante é a semeadura do milho. Ele não é plantado como é costume na Itália, mas em muitos pequenos buracos no confuso, a maioria distante um do outro no comprimento do cabo da enxada. Nesses buracos, colocam quatro ou cinco grãos de milho, dos quais vêm tantas plantas luxuriantes com mais de quatro metros de altura; cada planta também produz 40 ou 50 socas da colheita. A época útil para a semeadura vai do início de outubro ao início de fevereiro, e em três meses a colheita chega à maturidade".

Continua o padre: "Não há um tempo determinado para a colheita, pois quando a planta está seca, os colonos a dobram as "panocchie", e aí permanecem como em um celeiro seguro, o ano todo sem se deteriorar. Quando é necessária a colheita para preparar o terreno para outra semeadura, as "panocchie" são retiradas e, assim inteiras, são levadas para cabanas especiais onde são deixadas até que haja necessidade. As folhas protegem a panocchie dos insetos e da umidade, só então se desfazem e se debulham em grãos, que um dia ficam ao sol para secar melhor. O milho é o alimento diário dos colonos, que fazem polenta até três vezes ao dia: o que sobra é usado para engordar os porcos ou forragem para os cavalos. A exportação de milho é feita em pequenas proporções, não porque falte, mas porque os custos de exportação superam o preço do mesmo. Por exemplo, se você vender pelo preço de 3.000 réis (pouco mais de 3 liras) por quintal, quando chegar ao Rio de Janeiro o custo será de mais 3.000 réis, então quem pode se aventurar neste negócio? O colono, portanto, em vez de fazer grandes plantações de milho, o que seria fácil, limita-se à necessidade da casa e dos animais ”.

Posteriormente ele comenta: "Como disse no capítulo anterior, o trigo não dá resultado, a vida seca, portanto não há pão e vinho para a necessidade. Com apenas polenta e água, o resultado é o esgotamento das forças e a anemia, doença que pode ser considerada geral, embora benigna”. O que quis dizer o Pe Marzano com "benigna? Talvez fazendo comparação com a pelagra? Esta doença, como lembra Sorcinelli, "se as populações da Lombardia, Piemonte, Emilia e também de certas áreas do Vêneto tiverem alcançado níveis relativamente mais satisfatórios de nutrição, fazendo parceria com províncias do centro da Itália como Perugia, Macerata, Pesaro-Urbino, por outro lado, parece ter dado um passo para trás e no final do século conhecem os maiores níveis de disseminação da endemia ligada ao uso da polenta ".

Outros estudiosos, como Gherardi, afirmam que “a grande maioria, tanto do campo quanto do campo, se alimenta de vegetais e, excepcionalmente, de carne. Essa dieta é composta para todos os agricultores e para a maioria dos aldeões, com farinha de trigo turco embalada em pães ou triturada, à qual os menos pobres acrescentam um aroma de ervas colhidas no campo, mal temperadas". 

"Os mais pobres só comem pão ou pão achatado e os miseráveis ​​juntam a fava ao fubá: é compreensível que este alimento muito pesado para o estômago tenha a vantagem econômica de se satisfazer rapidamente, mas tem um valor nutricional muito pobre, pelo que raramente é dado ver constituições robustas e rostos rosados, enquanto prevalecem os temperamentos linfáticos, isto é, constituições anêmicas e escrofulosas ”.

A diferença, portanto, entre o Brasil e algumas partes da Itália rural estava na forma como o milho era consumido. A polenta, sem dúvida, ainda dominava as mesas dos colonos, mas não mais sem guarnições. As ervas raras colhidas no campo e a carne inexistente na Itália não eram verdade no Brasil.

O primeiro cuidado dos vênetos foi semear os famosos radicchie, que são a comida do dia a dia, a ponto de, se faltarem o radicchie para a salada que comem com a polentina, dizem que são de não haver ceiado”, sublinha padre Marzano. “Todos os animais que ajudaram o homem, o acompanham e contribuem para o seu bem-estar, também estão no Brasil. Assim que os colonos se viram em condições de comprar e manter um animal, logo conseguiram uma vaca, para dar leite aos filhos, e queijo, a comida preferida dos venêtos, para a família. [...] o porco é o animal que mais paga pelo cansaço; cada colono guarda muitos, engorda e depois vende a banha. [...] Galinhas, gansos, patos, perús e galinhas-de-angola povoam o galinheiro tanto no Brasil quanto na Itália, e todos esses animais têm os mesmos instintos".

Os agricultores tiveram a oportunidade de saciar a fome e colorir um pouco a mesa, também símbolo de fartura e riqueza porque, segundo Teti, “a outra grande alimentação e oposição social, que parece corresponder - mesmo que não mecanicamente - um contraste cromático, 'e aquele entre os pobres, comedores de ervas verdes, e os ricos, comedores de carne vermelha ou branca". Aqui esta distinção foi desfeita e todos poderiam ser considerados 'cavalheiros', porque a mesa deles era colorida e abundante. 

Padre Marzano permanece, portanto, muito superficial no que diz respeito à descrição dos alimentos na colônia. Ele apenas os listou, mas não foi além, tentando entender, por exemplo, seu significado.

A ideia do italiano poupar na alimentação não só pela escassa disponibilidade de meios e recursos, mas, como tendem a apontar fontes, "também por hábito", foi alimentada justamente pelo clima de angústia e perene precariedade e insegurança em que ele viveu habitualmente. Essa ideia foi posta de lado, mesmo à custa de renúncias severas pelo resto do ano, apenas em ocasiões "solenes" como banquetes de casamento, por exemplo. 

Depois a polenta de milho, as leguminosas, a fava, o vinho, o pão preto, a banha conservada no sal deu lugar à carne de carneiro, tagliolini com linguiça, banha e tomate, bife cozido, frango assado , ao vinho bom e precioso. Mas essa ideia de dia solene foi, de certa forma, derrubada aqui no Brasil. 

Obviamente, o imigrante nunca foi um perdulário, mas se permitiu consumir alimentos antes considerados raros e de dias festivos até mesmo em dias úteis. O imigrante italiano pode ter levado uma vida simples de privação aqui, mas ele não se incomodava mais com a ideia da fome, aquele fantasma que tirava seu sono e suas forças na Itália.

Podemos então considerar a colônia de Urussanga uma espécie de "terra da Cucagna", um lugar onde a fome, a ideia de magros e alimentos com cores "pobres" foram substituídos por alimentos com cores intensas e ricas e mesa farta de gordura.

Conclui o padre “Agora me parece que já falei bastante sobre esta terceira parte: as coisas terão se confundido um pouco, mas acredito que o leitor benevolente terá formado um juízo, mesquinho sim, mas certo, tanto do Brasil quanto do modo como vivem os nossos colonos".


Texto é resumo da monografia de Fabio  Della Bona