A Língua que Cruzou o Oceano
O Talian como herança, resistência e identidade no Brasil
O Talian nasceu no Rio Grande do Sul do encontro de vozes que atravessaram o Atlântico com os imigrantes italianos, sobretudo a partir de 1875, quando milhares de famílias deixaram suas vilas no Vêneto, em Trento, no Friuli, na Lombardia e no Piemonte em busca de um futuro no Brasil. Esses homens e mulheres traziam nas malas pouco além da memória de suas aldeias, da fé que os sustentava, dos costumes herdados e dos dialetos que moldavam seu cotidiano. Foi na Serra Gaúcha, em localidades como Caxias do Sul, Garibaldi e Bento Gonçalves, que essas falas diversas começaram a se entrelaçar.
Embora o veneto tenha se imposto como base principal dessa comunicação, outros dialetos logo se misturaram a ele, formando uma fala híbrida que também recebeu a marca do português. Assim surgiu um idioma novo, profundamente ligado à Itália, mas já enraizado no Brasil, chamado de forma carinhosa e popular de Talian.
Essa língua floresceu entre roçados e parreirais, nas cozinhas aquecidas pelos fogões a lenha, nos bancos das igrejas e nas feiras comunitárias. Durante muitas décadas foi a primeira língua das crianças descendentes de imigrantes italianos: a língua das cantigas improvisadas no trabalho, das rezas ao entardecer e das histórias contadas de avós para netos.
O caminho do Talian, no entanto, não esteve livre de provações. No período do Estado Novo, entre 1937 e 1945, quando o governo de Getúlio Vargas buscava impor a uniformidade cultural pelo uso exclusivo do português, falar o Talian em público passou a ser motivo de sanções severas, inclusive motivo para prisão do infrator. Ainda assim, a língua sobreviveu. Dentro das casas, atrás de portas fechadas, continuava a ser transmitida como gesto de afeto e como resistência à homogeneização cultural.
A persistência dessas comunidades acabou sendo oficialmente reconhecida no século XXI. Em 2009, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional declarou o Talian patrimônio cultural do Brasil. Poucos anos depois, em 2014, o município de Serafina Corrêa, no Rio Grande do Sul, deu um passo simbólico ao adotá-lo como língua cooficial. Desde então, placas, documentos e iniciativas culturais passaram a refletir essa herança que não pertence apenas ao passado, mas que se projeta como parte viva da identidade atual.
Hoje, o Talian ainda ecoa em mais de uma centena de municípios, não apenas no Rio Grande do Sul, mas também em Santa Catarina, Paraná, e até em regiões distantes. Ele se manifesta em missas celebradas na língua, em programas de rádio que preservam a sonoridade dos antepassados, em grupos de dança, canto e teatro que mantêm vivo o imaginário da imigração. Com gramática própria já consolidada, o Talian conta hoje com diversas publicações, entre elas dicionários, obras didáticas e centenas de outros livros e artigos que reforçam sua vitalidade como língua.
Mais do que um simples dialeto de origem italiana, o Talian é uma língua de memória e pertencimento. É o eco das colinas vênetas transportado para as montanhas do Sul do Brasil, a voz dos que lavraram a terra vermelha com as próprias mãos e nela encontraram uma nova pátria. Ele revela que a língua é mais que instrumento de comunicação: é um território afetivo, onde se preservam raízes e se constroem horizontes de uma identidade mestiça, ao mesmo tempo italiana e brasileira.
De modo geral, os vênetos na Itália costumam afirmar que o Talian nada mais é do que uma variação de seu próprio dialeto — em outras palavras, que o Talian seria o próprio vêneto transplantado. Em parte, têm razão: como a maioria dos imigrantes italianos instalados no Rio Grande do Sul era de origem vêneta, é natural que o veneto se tornasse a base predominante desse idioma. Ainda assim, o Talian não se limita a uma mera reprodução. Recebeu contribuições de outros dialetos trazidos por imigrantes de regiões vizinhas, embora em número menor. No essencial, é quase todo ele de origem veneta, mas enriquecido por essas sutis influências. O resultado é que tanto os falantes do veneto na Itália quanto os do Talian no Brasil se compreendem sem dificuldade, pois as duas formas de falar se aproximam e se complementam.
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