quarta-feira, 10 de setembro de 2025

O Caminho das Estações: A Vida de uma Cròmera


 

O Caminho das Estações: A Vida de uma Cròmera

Maria Santina nasceu em 1835, em uma encantadora localidade de Valle di Cadore, um dos recantos mais pitorescos da província de Beluno, no norte da Itália. O vale, aninhado sob a sombra das majestosas Dolomitas, parecia um quadro vivo, com montanhas cujos cumes de tons avermelhados no fim da tarde, se fundiam ao céu e cujos bosques mudavam de cor conforme o ritmo das estações. Era uma terra de beleza austera, mas também de desafios implacáveis. Ali, o som cristalino dos riachos que cortavam os prados misturava-se ao canto dos pássaros, enquanto o cheiro da terra revolvida trazia a promessa — nem sempre cumprida — de fartura.

Filha de camponeses, Maria cresceu em uma rotina onde cada amanhecer trazia a dura realidade do trabalho. Suas mãos pequenas logo se habituaram ao toque áspero do solo e às ferramentas de madeira que, embora simples, eram essenciais para a sobrevivência. A incerteza das colheitas, ameaçadas por chuvas repentinas com avalanches ou secas prolongadas, moldavam o espírito resiliente dos habitantes do vale. No inverno, quando a neve cobria os campos e as montanhas assumiam uma imponência quase inacessível, a aldeia tornava-se um reduto de resistência, com famílias unidas em torno do fogo, tentando driblar o frio intenso que parecia eterno. Maria, mesmo jovem, absorvia esse espírito de luta e adaptação, aprendendo que a simplicidade da vida exigia tanto força quanto sabedoria.

Naquela época, toda a região do Cadore fazia parte do vasto Império Austro-Húngaro, uma realidade que influenciava profundamente a vida dos cadorinos. Sob o domínio imperial, as terras eram administradas por uma burocracia distante, que pouco se importava com as dificuldades enfrentadas pelas comunidades montanhesas. A identidade italiana dos habitantes do vale convivia com as imposições culturais e políticas do império, gerando um sentimento de pertencimento dividido.

As decisões tomadas em Viena pareciam tão distantes quanto as montanhas que cercavam o vale, e os camponeses precisavam lutar com determinação para preservar suas tradições, idioma e modo de vida. Mesmo assim, a dureza das condições econômicas e a falta de oportunidades ultrapassavam qualquer questão de lealdade política. A necessidade de sobreviver obrigava famílias inteiras a buscar alternativas fora da terra natal, muitas vezes desafiando as fronteiras do império em busca de sustento.

Esse cenário moldou o espírito resiliente de Maria Santina e de tantos outros que, embora submetidos às restrições impostas pelo domínio austro-húngaro, mantinham viva a chama de suas raízes italianas e a esperança de um futuro melhor.

A vida no Valle di Cadore era uma constante luta contra as adversidades. Muitos cadorinos enfrentavam a dura realidade de que o trabalho no campo, por mais árduo que fosse, raramente era suficiente para garantir o sustento de suas famílias. As terras, ainda que férteis em algumas partes, eram limitadas e nem sempre generosas. As colheitas dependiam do humor instável das estações, e os invernos rigorosos frequentemente deixavam os celeiros vazios, obrigando os moradores a buscar alternativas para sobreviver.

Os homens cadorinos, em sua maioria, desde o início do século XIX já migravam sazonalmente, no período de menor atividade nas suas propriedades, para trabalhar como vendedores ambulantes, operários nas pedreiras, carpinteiros em florestas distantes ou trabalhadores braçais e prestadores de serviços em vilarejos vizinhos de países confinantes. Durante esse êxodo temporário, que durava alguns meses, porém, deixava as mulheres com a responsabilidade de cuidar da terra, da casa e dos filhos. Ainda assim, muitas delas não se limitavam ao lar. Corajosas e resilientes, as mulheres cadorinas encontravam na emigração sazonal com a venda ambulante uma forma de sustentar suas famílias e preservar a dignidade diante das dificuldades. Maria, observando essas mulheres, inspirou-se na determinação delas em ajudar na manutenção da família e decidiu seguir o mesmo caminho. Tornou-se uma cròmera, uma vendedora ambulante que carregava às costas não apenas mercadorias, mas também a alma de sua terra natal. Ela começou a cruzar as trilhas sinuosas das montanhas, atravessando fronteiras para levar os tesouros do Cadore a outras paragens. Lenços delicadamente bordados, ervas aromáticas, espelhos, vidros, pequenas esculturas de madeira e outros produtos que refletiam o talento artesanal de sua aldeia tornaram-se os instrumentos de seu trabalho. Essas vendedoras também comercializavam estampas com motivos variados, inclusive calendários e imagens de santos católicos, coloridas em cromo, provenientes de uma famosa estamparia do Veneto. Para Maria, cada peça vendida era mais do que uma simples transação; era uma maneira de compartilhar a história e a essência do povo cadorino, enquanto construía, passo a passo, um futuro melhor para os seus.

A estrada era longa e solitária, uma travessia que colocava à prova tanto o corpo quanto o espírito. Maria caminhava por dias inteiros, com os pés protegidos apenas por sapatos de couro que, às vezes, não resistiam bem às pedras afiadas das estradas montanhosas. Enfrentava chuvas repentinas que encharcavam suas roupas e tornavam os caminhos cheios de lama, e o frio cortante da primavera, que parecia entrar até nos ossos. Mas ela seguia em frente, guiada pela determinação que a vida entre as Dolomitas lhe ensinara desde pequena: a sobrevivência era uma luta, mas a luta valia a pena.

Quando cruzava a fronteira da Áustria e chegava ao primeiro vilarejo, sentia o coração bater mais forte. As paisagens conhecidas davam lugar a algo diferente: casas robustas de pedra com telhados inclinados, ruas bem arrumadas que pareciam feitas para resistir ao rigor do inverno e pessoas de rostos reservados, mas curiosas. Era uma terra nova, mas Maria não se intimidava.

A cada porta que batia, oferecia não só suas mercadorias, mas também um sorriso caloroso que parecia dissipar toda a desconfiança. Com a voz firme, falava de sua aldeia, descrevendo as montanhas, os riachos e a vida simples, mas cheia de significado. Apresentava os lençóis como se fossem pedaços da paisagem que deixara para trás, os artefatos de madeira como representações do trabalho habilidoso de seu povo e as ervas aromáticas como uma promessa de saúde e bem-estar. Cada venda não era apenas uma transação comercial; era uma troca de cultura, um momento em que Maria compartilhava um pedaço de sua história e, em troca, aprendia sobre o mundo além das fronteiras do Vale de Cadore.

As noites talvez fossem a parte mais difícil. Depois de um dia inteiro de caminhada e negociações, ela procurava abrigo onde podia: estábulos, casas de famílias generosas ou, às vezes, sob o céu estrelado, envolta em um grosso cobertor para espantar o frio. Mesmo nos momentos de solidão, sentia o calor de sua missão. Para ela, cada passo era um avanço em direção a um futuro mais promissor, e cada encontro com austríacos e suíços era uma oportunidade de mostrar o valor de sua terra e de seu trabalho.

Maria logo descobriu que a vida de uma cròmera exigia mais do que força física. Cada dia era um teste de resistência e astúcia. A habilidade para negociar era essencial; ela precisava avaliar rapidamente o interesse de seus clientes e ajustar suas estratégias. Às vezes, isso significava oferecer um desconto sutil, contar uma história sobre as origens dos produtos ou simplesmente ouvir com paciência as reclamações daqueles que não tinham intenção de comprar. A paciência era sua maior aliada, especialmente diante das recusas. Nem todos abriam suas portas para uma estrangeira, e os olhares desconfiados frequentemente a seguiam pelas ruas. Mas Maria carregava consigo um espírito resiliente que parecia crescer diante das adversidades.

O que a sustentava era a ideia de que cada moeda obtida representava mais do que um ganho material; era um passo rumo a um futuro melhor para sua família. Cada centavo acumulado era uma promessa de que Angelina, sua filha, teria uma vida mais confortável, e que Pietro, seu marido, poderia cultivar suas terras sem as preocupações incessantes da subsistência. Era essa visão que a fazia continuar, mesmo quando seus pés doíam de tanto caminhar ou quando o peso da sacola parecia insuportável.

Ao longo dos anos, Maria retornava sempre na mesma época, tornando-se uma presença familiar e querida nos vilarejos que visitava. Seu sotaque italiano, marcado pela cadência suave dos cadorinos, era cativante, e sua voz melodiosa muitas vezes transformava uma simples interação comercial em um momento de conexão humana. As crianças a seguiam pelas ruas como se ela fosse uma espécie de fada viajante, fascinadas pelos pequenos brinquedos de madeira que ela habilmente exibia. Para os adultos, Maria era uma mulher forte, determinada e bondosa. Os agricultores a admiravam por sua coragem e trabalho árduo, enquanto as donas de casa viam nela uma amiga com quem podiam compartilhar confidências e risos.

Foi no cantão de Schaffhausen, próximo a fronteira com a Alemanha, com suas colinas suaves e vinhedos impecavelmente alinhados, que Maria encontrou uma espécie de segunda casa. Lá, ela se hospedava com Maddalena, uma prima que com o casamento havia emigrado anos antes e que a acolheu com os braços abertos. As duas tinham a mesma idade e se correspondiam com frequência. Durante as noites frias, as duas mulheres, unidas por suas histórias de resistência, sentavam-se perto do fogo e compartilhavam memórias da juventude. Maddalena contava sobre as dificuldades dos primeiros anos na Suíça, enquanto Maria falava das saudades da família e das paisagens de Valle di Cadore. Entre risos e lágrimas, elas encontravam consolo uma na outra.

Depois dessas noites de conversa, Maria organizava sua caixa com cuidado quase cerimonial, dobrando os lenços bordados e verificando se os artefatos de madeira estavam intactos. Cada peça representava horas de trabalho e esperança. Apesar da rotina árdua, Maria nunca deixava de escrever cartas para Pietro, relatando seus progressos e perguntando sobre a evolução da plantação, e para Angelina, enchendo as páginas de ternura e promessas de que voltaria com histórias para contar e presentes para dividir. Essas cartas, enviadas religiosamente, eram sua forma de permanecer conectada à terra que deixara para trás e ao futuro pelo qual lutava com tanta determinação.

Quando Pietro adoeceu gravemente, Maria compreendeu que sua vida tomaria um novo rumo. Sem hesitar, quando retornou ao vale para cuidar do marido, o que encontrou foi uma terra ainda mais castigada pela pobreza. As colheitas continuavam escassas, os invernos pareciam mais rigorosos, e o desespero estava estampado nos rostos de seus vizinhos. Diante desse cenário, a ideia de emigrar para o Brasil, que circulava nas conversas sussurradas ao redor da lareira, começou a tomar forma como uma possibilidade real. A promessa do governo brasileiro de terras férteis, onde o trabalho duro poderia finalmente trazer frutos, soava como um chamado, embora carregasse consigo o medo do desconhecido e a dor de deixar para trás tudo o que conheciam.

Em 1879, com 44 anos e o coração dividido entre a esperança de um futuro melhor e o pesar da despedida, Maria, Pietro e a jovem Angelina embarcaram no porto de Gênova em direção a um destino desconhecido e incerto. A travessia marítima se revelou uma verdadeira odisseia. Nos porões do navio, dezenas de famílias se espremiam em espaços apertados, e o cheiro de sal e óleo impregnava o ar. As condições eram precárias: a água potável era racionada, o alimento, escasso e monótono, e doenças se espalhavam rapidamente entre os passageiros, com uma velocidade alarmante.

Maria, no entanto, se recusava a ceder ao desespero. Sua determinação era uma chama que mantinha aceso o espírito daqueles ao seu redor. Nos momentos mais difíceis, ela recorria ao que sabia fazer de melhor: cuidar. Com seu estoque de ervas e remédios caseiros cuidadosamente guardados, preparava infusões para acalmar os doentes e aliviar as dores. Dividia o pouco que tinha, sempre com palavras de conforto e um sorriso que parecia desafiar a adversidade. Enquanto muitos sucumbiam ao cansaço e à tristeza, Maria mostrava que a solidariedade poderia transformar até os dias mais sombrios em lampejos de esperança.

Assim, ao longo das semanas de viagem, ela não apenas cuidou de sua família, mas também se tornou uma espécie de guardiã improvisada para muitos no navio. Crianças corriam até ela em busca de atenção, mães exaustas encontravam nela uma confidente, e homens preocupados com o futuro viam em sua força um lembrete de que o esforço valia a pena. Embora a travessia fosse extenuante, Maria sabia que, do outro lado do oceano, uma nova página os aguardava — e isso era suficiente para mantê-la firme, dia após dia.

Quando finalmente desembarcaram no Brasil, foram enviados para a colônia Azambuja, no interior de Santa Catarina. A floresta parecia infinita e intransponível, e os desafios eram assustadores. Era preciso abrir clareiras, construir uma casa e começar o cultivo em terras desconhecidas. Maria não se deixou intimidar. A experiência como cròmera a havia ensinado a resistir e a encontrar soluções criativas para os problemas. Em pouco tempo, ela organizou uma pequena rede de trocas entre os vizinhos, oferecendo artesanato e ervas em troca de sementes e ferramentas. Aos poucos, a comunidade começou a prosperar.

Maria viveu até os 68 anos, quatro a mais que o seu marido Pietro, tempo suficiente para ver Angelina casar-se e construir uma família no Brasil. Mesmo em seus últimos anos, era lembrada por sua força e generosidade. As histórias de suas viagens como cròmera tornaram-se lendas entre os netos, que ouviam com fascinação sobre os caminhos percorridos e as pessoas que ela conheceu.

No interior de Santa Catarina, Maria Santina deixou um legado de perseverança e fé. Seu exemplo inspirou gerações a acreditarem na possibilidade de recomeços, mesmo diante das maiores adversidades. Assim, a mulher que atravessou montanhas e oceanos encontrou seu lugar em um novo mundo, onde as sementes de seu trabalho e coragem floresceram para sempre.


Nota do Autor

O romance O Caminho das Estações: A Vida de uma Cròmera é uma obra que busca capturar a essência de um tempo e de um povo cujas histórias, muitas vezes, permanecem esquecidas nas dobras do passado. Embora fictícia, a narrativa foi profundamente inspirada por fatos históricos e relatos que o autor teve a oportunidade de conhecer, sejam eles registros escritos ou memórias transmitidas oralmente por descendentes de famílias que viveram na região do Cadore e em suas adjacências.

A trajetória de Maria Santina é, ao mesmo tempo, uma homenagem e um tributo às mulheres cadorinas que, com coragem e resiliência, enfrentaram os desafios de uma vida de sacrifícios e, ainda assim, encontraram força para preservar sua identidade, sua cultura e seu legado. Essas mulheres, representadas na figura de Maria, personificam o espírito de luta, adaptação e esperança que transcendem gerações e fronteiras.

Este livro, portanto, é mais do que uma narrativa fictícia; é uma janela para o mundo daquelas que cruzaram montanhas não apenas para sustentar suas famílias, mas também para levar consigo a alma de sua terra. Que esta história inspire em cada leitor a mesma admiração e respeito que motivaram sua criação.

Com gratidão,

Dr. Piazzetta


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