Achille Scapinetto – Entre Dois Mundos e Duas Guerras
Entre a terra que o viu nascer e a que lhe deu abrigo, ele aprendeu que o verdadeiro campo de batalha é o coração.
O cheiro da terra vermelha e quente da região de Piracicaba nunca abandonou Achille Scapinetto, mesmo décadas depois de ter deixado o Brasil. Ele nascera ali, num pedaço de chão que não pertencia à sua família, sob o sol inclemente que queimava tanto a pele quanto as esperanças. Seu pai, Vittorio Scapinetto, e sua mãe, Luigia Sacaron, tinham atravessado o Atlântico em 1890, vindos de Rozzampia, no comune de Thiene, província de Vicenza.
Não vieram sozinhos. Trouxeram a filha mais velha, Santina, e o segundo filho, Giacomo, ambos ainda pequenos. No Brasil, nasceriam os outros: Francesco, Mansuetto, Umberto, Vittoria e, por último, Achille. A promessa que os trouxera da Itália era sedutora: trabalho remunerado, vida melhor, futuro para os filhos. Mas as promessas, tão abundantes no cais de Gênova, evaporaram no calor dos cafezais paulistas.
O latifundiário que os contratara ainda na Itália tinha as próprias dívidas e, com o café em queda no mercado, não havia generosidade para com os colonos. O pagamento vinha minguado, corroído por débitos constantes: a compra de mantimentos, as ferramentas de trabalho, a doença de Santina que, durante um parto difícil, precisou de uma cesariana no hospital de Piracicaba — tudo pago pelo patrão e cobrado, com juros, no acerto.
As dívidas eram uma prisão invisível. Fugir não era opção; a liberdade só viria com a quitação total, e isso parecia inalcançável. Os anos se arrastaram em meio ao calor sufocante, aos gritos de comando nos cafezais e à rotina exaustiva.
Quando finalmente retornaram a Rozzampia, em 1920, estavam um pouco menos pobres que antes, mas muito mais velhos do que a idade sugeria. Vittorio, obstinado, apesar da idade, investiu as economias de três décadas de suor na abertura de uma pequena casa de comércio, onde vendia mantimentos além de tabaco e licores. O comércio, situado em uma das esquinas mais movimentadas de Thiene, tornou-se ponto de encontro e sobrevivência para a família.
Mas a Itália não ofereceria tranquilidade por muito tempo. O avanço do regime fascista instalou-se como uma sombra espessa sobre as ruas, as praças e até sobre as conversas familiares. Cartazes de propaganda, desfiles militares e discursos inflamados tentavam disfarçar a crescente falta de liberdade. Nas casas, a prudência passou a ser lei: portas fechadas, janelas semiabertas, olhares desconfiados para cada passo na calçada. O silêncio tornou-se refúgio, pois qualquer palavra mal interpretada poderia atrair vigilância, interrogatórios e humilhações.
O clima era sufocante, como se o ar estivesse carregado de chumbo. Pequenos gestos — uma carta recebida do exterior, um comentário sussurrado no mercado, um livro escondido no fundo do armário — podiam se tornar perigosos. A incerteza pairava como neblina que não se dissipa.
Quando a Segunda Guerra Mundial explodiu, a tensão atingiu o ponto máximo. O som distante das rádios transmitindo notícias do front parecia ecoar dentro das paredes, misturando-se ao peso de um medo que não ousava se mostrar em voz alta. Foi então que a casa de Vittorio mergulhou no silêncio mais denso de sua história. As conversas rarearam, as refeições tornaram-se breves, e os olhares evitavam se encontrar, como se a troca de sentimentos fosse abrir fissuras por onde o pavor pudesse escapar.
A convocação chegou como um golpe seco, sem espaço para apelos ou despedidas prolongadas. Três de seus filhos — Mansuetto, Umberto e Achille — receberam a ordem de apresentar-se. As mãos de Vittorio tremeram ao segurar aquelas cartas oficiais, seladas com o brasão do Estado, pois sabia que não eram apenas folhas de papel: eram bilhetes de entrada para um destino incerto, talvez sem volta.
A guerra não teve piedade. Mansuetto encontrou a morte a cinquenta graus abaixo de zero, congelado nas trincheiras da Rússia, em Nikolayevka, no Oblast de Belgorod. Umberto tombou sob um sol implacável, a cinquenta graus acima de zero, nos desertos do norte da África. E Achille, o mais jovem dos três combatentes, foi ferido na Grécia.
Capturado numa manhã cinzenta, quando o frio parecia morder até os ossos, Achille foi empurrado para dentro de um vagão de carga. O ar era denso, carregado do cheiro agridoce de suor, palha úmida e medo. Amontoado entre homens que tremiam mais pela incerteza do que pela temperatura, não sabia se o destino seria o trabalho forçado ou um campo de extermínio.
O Lager onde foi confinado parecia ter sido erguido para apagar lentamente qualquer vestígio de humanidade. Barracões de madeira mal vedados, chão de terra batida, e um vento gelado que atravessava cada fresta, arrancando o calor dos corpos como se quisesse lembrar que até o ar estava sob domínio dos guardas.
A comida chegava em formas quase irônicas: uma tigela de caldo ralo com um fiapo de repolho, um pão escuro e duro como pedra, algumas cascas de batata que, se não fossem devoradas, serviriam de alimento para os ratos. Beber água significava abaixar-se sobre um barril onde a superfície estava coberta por um fino véu de sujeira. A fome não era apenas física — era um peso constante na mente, que tornava cada pensamento mais lento, cada movimento mais custoso.
Ainda assim, Achille se agarrou a algo que nenhum regime ou campo de prisioneiros podia confiscar: a esperança. À noite, deitado sobre a palha infestada de piolhos, fechava os olhos e se transportava para Thiene. Sentia o calor de um forno aceso, o cheiro do pão recém-assado, o som ritmado de passos conhecidos na rua de pedra. Na penumbra, recordava o rosto da mãe como quem segura uma fotografia desbotada — frágil, mas indispensável para sobreviver.
Meses se arrastaram. Dias e noites misturavam-se, e a contagem do tempo era feita não pelo calendário, mas pelo número de companheiros que não resistiam. Alguns partiam sem um som, apenas fechando os olhos e entregando o corpo ao frio.
Quando a guerra finalmente afrouxou suas garras e Achille foi libertado, ele já não era o mesmo homem. Caminhou durante dias até reconhecer, no horizonte, os contornos familiares das montanhas que cercavam Thiene. A cada passo, a paisagem despertava lembranças adormecidas: o sino da igreja que ecoava ao longe, o cheiro de terra molhada após a chuva, a curva da estrada onde, em tempos de paz, ele brincava quando menino.
Parou diante do portão da casa. O ferro estava frio ao toque, e por um momento, Achille temeu que ninguém abrisse. Quando finalmente a porta se escancarou, ele ficou imóvel. Carregava no corpo as marcas profundas das balas — cicatrizes que riscavam a pele como mapas de batalhas que ninguém queria recordar — e, na alma, feridas invisíveis. Trazia nos olhos a memória de um abismo que não devorou apenas homens, mas também futuros inteiros.
Achille viveu ainda longas décadas, resistindo como um velho tronco de oliveira que, retorcido e marcado pelo tempo, permanece de pé apesar das tempestades que lhe arrancaram galhos e folhas. Os anos não lhe pouparam o corpo — os passos tornaram-se lentos, as mãos carregavam o tremor discreto da idade, e os olhos, antes vivos como brasas, agora guardavam um brilho calmo, quase crepuscular.
Chegou aos noventa anos como quem atravessa um continente inteiro: com o cansaço estampado no rosto, mas com a dignidade intacta. Dentro de si, conservava dois mundos que se misturavam como águas de rios diferentes. Havia o Brasil ardente da infância — os dias de sol que queimava a pele, o cheiro doce da terra molhada após as chuvas tropicais, o riso fácil das gentes que acolhem com braços abertos. E havia a Itália sofrida da maturidade — o frio cortante dos invernos, o som dos sinos ecoando entre as colinas, as ruas estreitas onde a vida corria devagar, mas onde a guerra deixou marcas que o tempo jamais apagou.
Carregava também a lembrança de duas guerras, que haviam moldado não apenas o seu destino, mas o de toda a sua família. Foram guerras que roubaram amigos, dispersaram parentes e transformaram sonhos em silêncio. E, no entanto, ele também guardava memórias de coragem — dos que se ergueram apesar da fome, dos que partilharam o pouco que tinham, dos que mantiveram acesa a chama de um futuro melhor mesmo quando tudo parecia perdido.
Nos últimos anos, gostava de se sentar à sombra da velha oliveira no quintal. Passava horas ali, olhando para o horizonte como se ainda pudesse ver, ao mesmo tempo, o céu claro do Brasil e o entardecer dourado da Itália. Talvez soubesse que, quando chegasse a sua hora, levaria consigo não apenas as lembranças, mas o peso e o orgulho de ter vivido entre dois mundos e sobrevivido a duas guerras — uma herança invisível, destinada a permanecer no sangue e na memória de todos que vieram depois dele.
Nota do Autor
O que o leitor encontrará nestas páginas não é pura ficção, mas a recriação de uma história real, preservada ao longo de décadas por memórias familiares, relatos orais e fragmentos de registros históricos. Por respeito à privacidade dos descendentes e para preservar a liberdade narrativa, todos os nomes e alguns detalhes geográficos foram modificados.
Achille Scapinetto é, portanto, um nome escolhido. Mas por trás dele viveu um homem de carne e osso, que atravessou a vida dividido entre dois países, dois idiomas, dois afetos — e que carregou no corpo e na alma as marcas de duas guerras. Ele não foi herói perfeito nem mártir imaculado: foi humano, e justamente por isso sua história fala tão fundo ao coração.
Escrevi este livro como quem recolhe e costura retalhos de um manto antigo: cada linha busca unir as tramas da dor e da esperança, da coragem e da renúncia, para que não se perca a lembrança daqueles que construíram nossas raízes longe de sua terra natal. Não é apenas o retrato de um homem. É o eco da jornada de milhares de imigrantes que viveram na encruzilhada entre a saudade e o recomeço, entre o dever e o sonho.
Que estas páginas sejam, para o leitor, um abraço através do tempo — e um tributo àqueles que viveram entre dois mundos e sobreviveram a duas guerras.
Dr. Piazzetta
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