terça-feira, 23 de dezembro de 2025

O Último Adeus de Pietro Zanetti


O Último Adeus de Pietro Zanetti

Albignasego, Vêneto — 1886

Era uma manhã enevoada de março quando Pietro Zanetti deixou a pequena aldeia de Albignasego, no baixo Padovano. O frio ainda morava entre as colinas, e o orvalho da noite pendia das videiras como pequenas lágrimas congeladas. O ar tinha o gosto úmido da terra recém-remexida e o perfume de lenha queimada vindo das chaminés, onde as famílias aqueciam o magro desjejum antes do trabalho nos campos.

Pietro caminhava devagar pela estrada de cascalho, o corpo inclinado sob o peso da sacola de linho que levava às costas — meia dúzia de roupas gastas, um rosário de contas escurecidas e uma fotografia desbotada da mãe, tirada num dia de festa muito antes de a miséria lhes tomar o sorriso. Os sapatos, remendados pelo próprio pai, rangiam sobre o chão molhado, e o som seco dos passos parecia marcar o ritmo de uma despedida sem retorno.

Atrás dele, o sino da igreja soou cinco vezes, espalhando-se pelo vale como um lamento. Àquela hora, todos os que ainda dormiam despertaram, e os que já estavam de pé sabiam: outro filho da terra partia rumo ao desconhecido.

Na soleira da casa, sua mãe, envolta num xale preto, assistia ao afastamento do filho com os olhos marejados e as mãos trêmulas apertando o terço. Ao lado dela, o irmão mais novo observava em silêncio, sem compreender por que a mãe chorava tanto se o irmão “ia ficar rico na América”.

Pietro não teve coragem de olhar para trás. Sabia que bastaria um único olhar para desfazer toda a coragem que levara meses para juntar. O coração, comprimido no peito, batia como se quisesse gritar. A cada passo, sentia o peso das promessas que fizera — a promessa de voltar, de comprar um pedaço de terra, de erguer uma casa com janelas de vidro e telhas novas. Mas no fundo, uma voz silenciosa lhe dizia que talvez aquele adeus fosse definitivo.

A Itália, unificada há pouco, era um país pobre, dividido e cansado. Os camponeses do Vêneto sobreviviam de arrendamentos injustos, e a terra, exaurida por séculos de cultivo, já não alimentava as famílias. O trigo mal cobria as sementes, e o milho crescia mirrado, como se a própria terra estivesse desistindo de lutar.

Nas tavernas, sob o rumor do vinho barato, falava-se cada vez mais da América. Era um nome que parecia conter o milagre — uma palavra sussurrada com devoção, como se fosse o nome de um santo. Lá, diziam, havia terras livres, pão farto, trabalho pago em moeda e não em promessas. Lá, o homem podia ser dono de si.

Pietro ouvira essas histórias nas noites de inverno, ao redor da fogueira, quando os homens voltavam da lavoura e falavam de navios enormes e mares sem fim. No início, ele ria. Achava que era conversa de bêbado. Mas quando o arrendador dobrou o preço do arrendo e a última colheita mal pagou a farinha, a América deixou de ser lenda e virou destino.

Naquele amanhecer, enquanto o nevoeiro se dissolvia sobre os campos e o som distante do sino se apagava no vento, Pietro sentiu que algo dentro dele também se desfazia — uma parte da infância, talvez, ou a ilusão de que tudo voltaria a ser como antes.

Seguiu adiante, com o rosto frio e os olhos fixos no horizonte. À sua frente, a estrada era longa e desconhecida, mas ao menos levava para longe da fome e do desespero. Atrás dele, a aldeia de Albignasego acordava lentamente, sem saber que aquele jovem de passos firmes jamais voltaria a cruzar o portão da velha igreja.

E assim começou a travessia de Pietro Zanetti — não apenas entre dois continentes, mas entre o que ele fora e o que ainda seria.

A Travessia

O porto de Gênova fervilhava de vozes, gritos e choros. Era o som de um país que se despedia de si mesmo. Milhares de homens e mulheres acotovelavam-se entre malas, cestos e caixas, cada um carregando o pouco que restava de sua vida. No meio daquela confusão, Pietro Zanetti sentia-se menor do que nunca. O vapor Principe di Napoli, com sua chaminé negra cuspindo fumaça, parecia uma criatura viva — um monstro de ferro pronto para devorar esperanças e vomitar destinos.

Enquanto esperava na fila para o embarque, Pietro apertava a folha do passaporte amassado que trazia no bolso e o rosário da mãe. Ouviu o apito do navio e sentiu um arrepio percorrer-lhe a espinha. A multidão avançava como um rebanho empurrado pela necessidade. Não havia retorno. Quando finalmente pisou na rampa de madeira que levava ao convés, teve a nítida sensação de que deixava para trás não apenas a Itália, mas a própria alma.

A viagem duraria quase trinta dias, e logo os sonhos se misturaram ao cheiro acre do porão. A terceira classe era um labirinto abafado e escuro, onde famílias inteiras se amontoavam em beliches de madeira úmida. O ar era pesado de suor, vômito e esperança. As crianças choravam, os velhos tossiam, e o balanço do mar fazia o estômago de muitos se revoltar. A comida — pão duro, caldo ralo e, às vezes, um pedaço de carne salgada — parecia zombar da fome que traziam.

Nas primeiras noites, o mar permaneceu calmo, e o murmúrio das ondas embalava os pensamentos. Mas, quando a tempestade chegou, mostrou sua verdadeira face. O navio gemia sob a força dos ventos, as madeiras estalavam como se prestes a se romper. Muitos rezavam em voz alta, outros gritavam os nomes dos filhos. Pietro, encharcado e com os joelhos fincados no chão, segurava o crucifixo e pedia apenas para acordar vivo quando o sol voltasse a nascer.

Foi nesse calvário que conheceu a família Bertolin, de Treviso — Giovanni, o pai, um homem de olhar sereno e mãos calejadas; Maria, a esposa, de semblante doce e fé inabalável; e as três crianças pequenas, cujas risadas frágeis pareciam desafiar a miséria ao redor. Dividiam o pão e a esperança. Em meio ao cheiro de maresia e carvão, nasceram laços que só a adversidade é capaz de tecer. Pietro e Giovanni passavam as tardes falando da Itália — das vinhas do Piave, dos sinos de Treviso e do rumor do vento entre os campos de trigo. À noite, Maria contava histórias às crianças, e, por instantes, o porão deixava de ser uma prisão e virava uma casa.

Mas o mar, sempre caprichoso, lembrava-os de que a felicidade era breve. Quando a tempestade voltou, os beliches se transformaram em covas de medo. Um dia, um menino da terceira fileira morreu de febre, e o corpo, embrulhado em um lençol, foi lançado ao oceano. O som da água se fechando sobre ele permaneceu por horas no silêncio coletivo.

Quando finalmente avistaram a costa do Brasil, os passageiros caíram de joelhos. Alguns beijaram o convés, outros apenas choraram. O sol tropical refletia no mar como uma bênção, e a cor azul intensa feriu os olhos acostumados ao cinza do Adriático. Ainda faltava o último ritual: o exame médico obrigatório para todos os que desembarcavam.

Um médico, enviado pelo governo imperial brasileiro, passou por fileiras intermináveis de homens, mulheres e crianças, examinando com rapidez mecânica. Pietro foi o último. Sentiu a picada da vacina e um calafrio, mas o braço não reagiu. No dia seguinte, enquanto todos embarcavam em outras embarcações de menor calado rumo ao porto de Santos, seu nome foi chamado em voz alta. Ele devido a febre pós vacina deveria permanecer em observação. Foi separado do grupo, sem sequer poder se despedir dos Bertolin. Da amurada, viu-os acenando de longe — Maria com o lenço branco, Giovanni segurando o filho no colo. Pietro levantou o braço em resposta, sem saber que aquele seria o último gesto entre eles. Nunca mais soube o destino deles.

A Ilha das Flores, na baía do Rio de Janeiro, era um lugar que cheirava a doença e solidão. Barracões de madeira da grande hospedaria, camas de ferro e o choro incessante dos que haviam perdido tudo. Ali, entre gritos e desespero, Pietro entendeu que a travessia não terminava no mar. Era apenas o começo de uma outra jornada — mais silenciosa e cruel — a de quem precisa sobreviver para recomeçar sozinho em uma terra onde ninguém o espera. Quando, dez dias depois, lhe deram a liberdade e uma passagem para São Paulo, ele já não era o mesmo homem que deixara Albignasego. O mar o havia esvaziado. E, dentro desse vazio, nascia algo novo — uma coragem feita de dor e silêncio.

O Destino em Araraquara

Quando Pietro Zanetti finalmente chegou a São Paulo, trazia nos olhos o cansaço do oceano e nas mãos a fragilidade de um sonho quase gasto. A cidade, naquele ano de 1886, fervilhava de vida e desordem: carroças, negros libertos à procura de trabalho, italianos recém-chegados falando dialetos incompreensíveis, e senhores de paletó branco que olhavam tudo de cima, como se aquele tumulto fosse apenas o preço da riqueza.
Pietro não sabia ler nem escrever. Carregava apenas um papel amassado, sujo de suor e sal, com o nome de um homem que ele jamais vira: Coronel João Barba, proprietário da Fazenda Monte Alegre, no município de Araraquara, “quatrocentos quilômetros no mato adentro”, como lhe disseram.
No escritório de imigração, um salão abafado de paredes úmidas e cheiro de tinta e papel, o coronel aguardava impaciente. Era um homem corpulento, de bigodes grossos e olhar acostumado a mandar. Esperava famílias inteiras — maridos, esposas e filhos — mas fora informado que os seus contratados tinham se atrasado devido problemas com o trem que os trazia até Genova e não chegaram a tempo de embarcar. Quando viu Pietro, magro, queimado de sol, o chapéu amassado nas mãos, hesitou por um instante. Depois, resmungou:
— Se é o que tem... que venha esse mesmo.
Não querendo voltar de mãos vazias, levou consigo o único imigrante ainda disponível que estava sem emprego.
A viagem até a fazenda foi longa e penosa. Primeiro, o trem — um monstro de ferro e fumaça que serpenteava lentamente pelos campos paulistas, tossindo carvão e cuspindo faíscas. Pietro, sentado ao lado de sacos de mantimentos e galinhas vivas, via pela janela o mundo se transformar. Os casarões brancos da capital davam lugar a colinas vermelhas, a cafezais jovens, e, mais adiante, ao verde denso e impenetrável da mata.
Quando os trilhos acabaram, o coronel ordenou que subissem num carro de boi. O ranger das rodas misturava-se ao mugido dos animais e ao zumbido insistente dos insetos. O sol caía pesado sobre as costas de Pietro, e o ar parecia mais espesso a cada quilômetro. No final do dia, avistaram um descampado e, ao fundo, uma casa grande de alvenaria, erguida sobre um outeiro. Era a Fazenda Monte Alegre.
“Araraquara”, pensou Pietro, repetindo o nome como quem tenta compreender uma palavra sagrada e ameaçadora. Ali terminava o mundo conhecido — dali para frente, era mato virgem, calor e solidão.
O coronel o apresentou aos capatazes e mandou que lhe arranjassem um canto para dormir. O alojamento era um barracão de tábuas, o mesmo onde antes viviam os escravizados libertos. O ar era quente e pesado, o chão de barro batido cheirava a suor antigo e fumaça. Pietro deitou-se sobre uma esteira gasta e, pela primeira vez, compreendeu o peso da palavra “América”.
Durante o dia, ajudava a limpar o mato, abrir picadas, levantar cercas e preparar a terra para o plantio do café. O trabalho era árduo, quase desumano. O sol castigava, e o corpo doía como se cada músculo tivesse de aprender uma nova língua. À noite, comia feijão ralo e farinha junto dos negros libertos, homens que olhavam o chão quando falavam e que traziam nos olhos uma tristeza antiga.
Nos primeiros meses, Pietro foi o único imigrante italiano em Monte Alegre. Era o estrangeiro entre os estrangeiros, o homem sem palavra, sem família, sem língua. As cartas prometidas pelo governo imperial, os lotes de terra, o “futuro dourado” que ouvira nas tavernas de Padova, tudo aquilo parecia agora uma fábula contada a crianças.
Certa noite, sentado na soleira do barracão, ouviu ao longe o canto de um sabiá-laranjeira. A melodia era simples e melancólica, e fez Pietro pensar nas colinas de sua infância, no som dos sinos de Albignasego ao amanhecer, na voz da mãe chamando-o para o jantar. O peito apertou. Ele não chorou — os homens da roça aprendem cedo que lágrimas não alimentam ninguém —, mas algo dentro dele cedeu.
Naquela noite, olhou para o céu estrelado do Brasil e compreendeu que não havia caminho de volta.
Ali, onde o mato ainda guardava o cheiro da escravidão, ele começaria de novo.
E, sem saber, inaugurava a longa história de um povo que, entre suor e saudade, faria florescer nas terras vermelhas do interior paulista o sangue e a esperança da Itália.

O Amor e o Enraizamento

Dois anos depois, começaram a chegar novas famílias italianas, sobretudo de Venegazzù, Montello e Piave. Entre elas, veio Lucia Paolon, uma jovem de vinte anos, de olhos verdes e mãos calejadas, filha de pequenos lavradores de Treviso.
Pietro e Lucia se conheceram durante a colheita do café. Ela cantava baixinho uma canção vêneta, e ele, mesmo sem escutar bem as palavras, sentiu nelas o cheiro da sua terra distante. Casaram-se sob um altar improvisado na capela de barro da fazenda.

Daquele amor nasceram oito filhos — quatro homens e quatro mulheres. O primogênito, Antonio, veio ao mundo em 1891, sob um sol de rachar e o tilintar dos carros de boi. Nenhum deles conheceria a Itália, mas todos herdariam o sotaque, as canções e o modo de gesticular das mãos.

As Cartas e o Silêncio

Durante décadas, Pietro manteve correspondência com a mãe e os irmãos que ficaram em Albignasego.
As cartas, escritas por um vizinho alfabetizado, viajavam meses em navios lentos. Falavam de colheitas, nascimentos e saudades. Depois de 1910, as respostas começaram a rarear. A Europa mergulhava nas sombras da guerra, e as letras de casa cessaram.

Mesmo assim, Pietro guardava no baú todas as cartas antigas, como quem preserva um fio de voz do outro lado do oceano. Às vezes, à noite, chamava o filho mais velho para ler em voz alta as páginas amareladas, e seus olhos marejavam diante de nomes que o tempo havia levado.

O Último Verão

Em 1938, aos setenta e cinco anos, Pietro ainda caminhava entre os cafezais de Monte Alegre. O corpo estava curvado, mas o espírito permanecia firme. No alpendre da casa, ao entardecer, olhava para o horizonte e dizia, em dialeto vêneto:

“La tera càmbia, ma el cuor no se sposta.”
(“A terra muda, mas o coração não se move.”)

Morreu numa tarde de dezembro, enquanto o sol queimava os campos de café. Foi enterrado sob uma cruz simples de madeira, com uma pequena inscrição:

“Pietro Zanetti – 1863-1938 – Dalla terra del Veneto alla speranza del Brasile.

Seus netos e bisnetos, muitos dos quais jamais pisaram na Itália, ainda hoje guardam o sobrenome com orgulho e emoção.
E quando o vento sopra sobre os cafezais antigos, parece trazer consigo o eco distante daquele último adeus de 1886 — o dia em que um jovem lavrador deixou tudo para trás, e, sem saber, plantou raízes eternas no coração do Brasil.

Nota do Autor

Esta história nasceu do silêncio das cartas antigas, das lembranças sussurradas nas cozinhas e dos olhos marejados de quem ainda sente o peso e o orgulho de ser descendente de quem partiu.
Os fatos aqui narrados são verdadeiros — apenas os nomes foram mudados, a pedido dos descendentes, que guardam com respeito e emoção as memórias de seus antepassados. A história de Pietro Zanetti é, na verdade, a história de muitos: homens e mulheres que deixaram a terra natal com uma mala de linho, uma fé teimosa e o sonho de recomeçar do outro lado do oceano.
As palavras que compõem este livro foram tecidas a partir de cartas, depoimentos e fragmentos de memória preservados por gerações. O que nelas pulsa não é apenas a trajetória de um emigrante, mas o eco de um tempo em que o sacrifício era sinônimo de esperança — e em que cada lágrima derramada no porto de partida se transformava em raiz no solo desconhecido do Brasil.
Esta obra é, portanto, uma homenagem silenciosa àqueles que, com coragem e dor, construíram o alicerce das nossas histórias. Porque, em cada um de nós, ainda bate o coração daqueles que um dia disseram o último adeus.

Dr. Luiz Carlos B. Piazzetta




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