A Peste Negra em Veneza: Epidemias, Mortes e o Nascimento da Saúde Pública (séculos XIV–XVII)
A Peste Negra, também chamada de peste bubônica, foi uma doença infecciosa causada pela bactéria Yersinia pestis, transmitida principalmente por pulgas que infestavam ratos. Quando ocorria uma grande mortandade desses roedores, as pulgas passavam a picar humanos, espalhando rapidamente a doença. Caracterizava-se por febre alta, feridas dolorosas (bubões) e, muitas vezes, morte em poucos dias. Ao longo da história, essa doença de rápida propagação causou várias pandemias devastadoras.
Veneza, uma das principais cidades comerciais da Europa e um grande porto mediterrânico, foi particularmente vulnerável às epidemias de peste por causa do intenso trânsito de navios e mercadorias, que facilitava a entrada de ratos e pulgas infectadas. Assim, apesar de um sistema avançado de controle sanitário para a época, a cidade foi atingida por peste múltiplas vezes ao longo dos séculos — estima-se que mais de 69 epidemias tenham ocorrido entre 954 e 1793. emigrazioneveneta.blogspot.com
1. A Peste Negra no século XIV
O primeiro surto maciço de peste a atingir Veneza foi durante a pandemia conhecida como Peste Negra (1347–1353), que devastou a Europa e matou milhões de pessoas, incluindo uma parte significativa dos venezianos. Estima-se que entre 40.000 e 70.000 pessoas tenham morrido em Veneza, uma cidade com cerca de 100.000 habitantes na época, enquanto a doença chegou a matar um terço da população europeia em geral.
Foi nesse período que Veneza começou a desenvolver medidas inéditas de saúde pública: além de organizar o transporte dos mortos para ilhas afastadas, as autoridades criaram rapidamente postos de quarentena em ilhas da lagoa, isolando viajantes e mercadorias por 40 dias antes de permitir o acesso à cidade — prática que originou a palavra quarentena(quarenta dias).
2. A Peste de 1575–1577
Apesar dos controles sanitários que se seguiram à Peste Negra, a peste voltou a assolar Veneza no século XVI, com um dos surtos mais letais da sua história. Entre 1575 e 1577, a epidemia atingiu duramente a população: de uma estimativa de cerca de 195.000 habitantes, a cidade viu sua população cair para cerca de 135.000, com aproximadamente 60.000 mortes registradas. emigrazioneveneta.blogspot.com
Durante esse período, as autoridades tentaram aplicar medidas de quarentena e isolamento, inclusive internando os doentes em ilhas como o Lazzaretto e fiscalizando a entrada de pessoas e mercadorias. No auge da epidemia, surgiram modalidades de quarentena ainda mais rigorosas, incluindo sistemas improvisados de confinamento que envolveram até barcos encalhados como espaços de isolamento.
Em agradecimento pelo fim da peste, o Senado veneziano votou a construção da Chiesa del Redentore — a Igreja do Redentor — cujo projeto começou em 1577 sob a direção de Andrea Palladio. Essa igreja tornou-se um símbolo de devoção e da esperança recuperada após um período de sofrimento coletivo. emigrazioneveneta.blogspot.com
3. A Peste de 1630–1631
No século XVII, outra grande onda de peste voltou a devastar a cidade. Durante a chamada Peste Italiana (1629–1631), que assolou o norte da Itália durante a Guerra dos Trinta Anos, Veneza foi novamente um dos centros mais atingidos pela doença. Registros históricos apontam que, de cerca de 142.000 habitantes em 1624, a população caiu para aproximadamente 100.000 em 1633, com cerca de 43.000 mortes atribuídas à peste entre 1630 e 1631.
Como na epidemia anterior, o sofrimento coletivo reforçou a fé e o voto de construir um monumento de gratidão: o Senado veneziano decretou a edificação da Basílica de Santa Maria della Salute, dedicada à Virgem Maria como protetora da República, como sinal de agradecimento pela libertação do mal pestilento. A construção começou ainda durante a epidemia, refletindo a importância religiosa e social desse gesto.
Medidas sanitárias e legado
Em todos esses séculos, Veneza foi um dos principais laboratórios europeus de controle sanitário. Suas práticas pioneiras, como a criação de lazzaretti (postos de quarentena), a elaboração de um Magistrato alla Sanità (autoridade de saúde pública) e normas rigorosas de isolamento, influenciaram outras cidades e reinos na luta contra as epidemias. Essas medidas foram aperfeiçoadas ao longo dos anos, mas mesmo assim não impediram surtos repetidos até a eventual declinação da peste na Europa no século XVIII.
Conclusão
O estudo dos surtos de peste que atingiram Veneza entre os séculos XIV, XVI e XVII revela não apenas a dimensão trágica das epidemias, mas também a capacidade humana de organização, adaptação e resposta diante de crises sanitárias recorrentes. A Peste Negra e suas reincidências moldaram profundamente a demografia, a economia, a religiosidade e a própria estrutura urbana da Sereníssima República, dando origem a políticas pioneiras de saúde pública, como a quarentena, os lazzaretti e a institucionalização do controle sanitário estatal. Ao analisar esses episódios históricos, compreende-se que as grandes epidemias não são eventos isolados, mas fenômenos estruturais que influenciam sociedades por séculos. Assim, o legado veneziano permanece atual, oferecendo lições valiosas sobre prevenção, responsabilidade coletiva e resiliência social frente às crises sanitárias que continuam a desafiar a humanidade.
Nota do Autor
Abordar um tema aparentemente distante no tempo, como a Peste Negra e os surtos de peste em Veneza, não é um exercício de nostalgia histórica, mas um ato de reflexão consciente sobre os fundamentos da sociedade moderna. As respostas sanitárias, administrativas e culturais desenvolvidas entre os séculos XIV e XVII lançaram as bases de conceitos ainda vigentes, como isolamento, quarentena e saúde pública organizada. Revisitar essas experiências permite compreender como o medo, a fé, a ciência incipiente e o poder político se entrelaçaram em momentos de extrema vulnerabilidade humana. Em tempos contemporâneos, marcados por novas pandemias e desafios globais, o passado torna-se uma ferramenta indispensável para interpretar o presente e projetar o futuro com maior responsabilidade histórica e consciência coletiva.
Dr. Luiz Carlos B. Piazzetta
Nenhum comentário:
Postar um comentário