Colheita do Café
Giovanni Scarsea, a esposa Maria Augusta e seus três filhos menores de idade, Francesco, Sofia e Luca, habitavam em uma vila no pequeno município de Alano di Piave, localizado na província de Belluno, região do Vêneto, na Itália. Giovanni, como todos os seus antepassados homens, trabalhava como carpinteiro e marceneiro, profissão que tradicionalmente era passada de pai para filho há gerações. Nos períodos do ano em que a procura pelos seus trabalhos diminuía na sua oficina, se aventurava como trabalhador rural diarista, nas pequenas e também pobres propriedades agrícolas da vizinhança. Maria por sua vez estava sempre atarefada, além do trabalho doméstico, criava os três filhos do casal que ainda eram menores de idade. Eles habitavam uma casa bastante antiga, com pouco terreno à volta, viviam uma vida bastante simples, sempre lutando para sobreviver, especialmente após a morte do pai de Giovanni, há pouco mais de um ano, vítima da pelagra, o que deixou a família com muitas dívidas e quase sem recursos.
Em um domingo, logo após a missa matinal, que o casal não costumava faltar, na pequena praça defronte a igreja, apareceu um homem desconhecido das pessoas do lugar. Portava alguns cartazes e falava em voz alta. Era um tipo bem vestido, e de longe já se via que era de cidade grande, aparentando ter entorno de 50 anos de idade. Muito comunicativo, bem falante, logo uma pequena multidão curiosa se acercou do estranho para ouvir o que ele dizia. Explicou que trabalhava para uma agência de viagens de Gênova, filiada a uma grande companhia de navegação italiana com sede naquele porto. Viajava pelo interior do país em busca de candidatos dispostos a emigrar para o Brasil junto com as suas famílias. Descrevia o grande país sul americano como um paraíso, um verdadeiro El Dorado, onde qualquer um podia ficar rico sem muito esforço e, o principal para aquela pobre gente acostumada a ser mandada a vida inteira, que em pouco tempo podia ser dono da sua própria terra. O sonho da propriedade, ser o senhor da sua vida era a isca final. Explicou à todos que o governo do império brasileiro estava fornecendo passagens de graça até o local onde seriam assentados no país, para todos aqueles que quisessem emigrar para lá. As únicas exigências que faziam era que os candidatos partissem acompanhados pelas suas famílias, fossem jovens e sadios. Explicou que iriam trabalhar como agricultores, em fazendas de café, no interior do estado de São Paulo e assinariam os respectivos contratos ainda na Itália, para terem o direito da passagem gratuita. Aproveitou para ler algumas cartas, talvez a maioria delas, o se não todas, inventadas por ele mesmo, para assim aumentar a curiosidade e o interesse daquela pobre gente. Eram supostas cartas de pessoas de vários locais da Itália, que já tinham emigrado algum tempo antes, contando para seus parentes e amigos das suas antigas paróquias, as maravilhas sobre o grande país. Disse também que a próxima partida do navio com um grande grupo de emigrantes estava marcada para dali dois meses. O assunto emigração para o Brasil, ou para a América como diziam na época, não era uma novidade para ninguém, estava sempre presente, obrigatoriamente, nas rodas de conversa nas praças, bares e até mesmo nas igrejas onde, no sermão os padres aconselhavam seus paroquianos à emigrare para fugir da pobreza e conseguir melhorar de vida. De toda a Itália alguns milhares de pobres camponeses, pequenos proprietários rurais e pobres artesãos já tinham deixado definitivamente o país e essas notícias corriam de boca a boca por todo o país como um rastilho de pólvora aumentando o interesse de todos.
Giovanni e Maria ficaram empolgados, até mesmo entusiasmados com a possibilidade de emigrar, de deixar tudo para trás, sem ter que pagar pelas passagens, que eram muito caras. Estavam cronicamente sem dinheiro e aquela oferta vinha cair perfeitamente nos planos do casal que, de tempo já vinha pensando em deixar o país. A situação econômica da Itália estava se agravando cada vez mais e não viam boas perspectivas para o futuro. O desemprego no campo era muito grande e nas pequenas praças frente as igrejas grupos de homens ficavam o dia inteiro esperando, quase sempre sem sucesso, que alguém viesse contratar os seus serviços. Quando tinham sorte de arrumar algum trabalho o pagamento recebido era pouco para sustentar a família. A fome já rondava muitas casas na vila onde moravam e eles mesmos estavam em precária situação, com as refeições racionadas. Muitas vezes os adultos não faziam uma refeição completa para deixar alguma coisa para os filhos pequenos.
Depois desse encontro com aquele tipo estranho, foi que Giovanni e Maria decidiram definitivamente em emigrar para o Brasil, em busca de uma vida melhor para eles e para os filhos. Eles já tinham ouvido falar de oportunidades de trabalho em grandes plantações de café no interior de São Paulo, e agora decidiram arriscar tudo e tentar a sorte no novo país. Giovanni foi até a prefeitura local obter os passaportes para todos o membros da família. Depois procurou pelo agente de viagem para assinar o contrato de trabalho e dar os seus nomes para o embarque. Eles rapidamente fizeram uma única grande mala com os poucos pertences que possuíam, se despediram de seus amigos e familiares, e um dia antes da data de partida do navio deixaram a sua pequena vila para nunca mais voltarem, embarcando em uma longa jornada rumo ao desconhecido.
A partida da família foi emocionante e difícil, com muitas despedidas e lágrimas. Alguns outros amigos e vizinhos também estavam naquele pequeno grupo que partia. Tinham tomado coragem e resolvido abandonar o país. Enquanto deixavam a pequena vila, ouviram pela última vez o sino principal do campanário da igreja local, que em tom grave e triste, aquele mesmo timbre que habitualmente anunciava os falecimentos de pessoas do lugar. Era a última saudação do velho padre para aqueles seus queridos paroquianos que partiam para tão longe e com certeza não os veria mais. Foram levados de carroça até a estação de trem mais próxima, onde embarcaram em um trem que os levou até o porto de Gênova, onde o navio a vapor Giulio Mazzini já estava aguardando ancorado junto ao cais. O comboio era lento, fazia inúmeras paradas durante todo o trajeto, se firmando por alguns minutos em cada pequena estação do caminho, onde novos emigrantes como eles entravam e seguiam o mesmo destino. A viagem de trem tinha sido longa e bastante cansativa, durou perto de doze horas, com todo o grupo sem poder dormir durante toda a noite, ficaram felizes quando finalmente chegaram ao porto.
Eles encontraram uma pequena multidão perto do cais, com centenas de outros emigrantes italianos como eles, que também estavam prestes a embarcar no mesmo navio. Por toda a parte se podia ver dezenas de carregadores do porto e da companhia de navegação, transportando malas e grande caixas que eram rapidamente levadas para dentro do navio. Os marinheiros por sua vez, agitados e gritando ordens, corriam pelo convés do grande barco ultimando os preparativos para o embarque dos passageiros. Três curtos apitos de tom grave foram ouvidos partindo da embarcação anunciando o início do recebimento dos passageiros a bordo, que em fila iam subindo, os homens carregando sacos e caixas com seus pertences nas costas, alguns deles com os bilhetes ou passaporte presos entre os lábios por falta de braços desocupados. As mulheres com os filhos pequenos nos braços, muitos deles chorando assustados com todo aquele movimento desconhecido. Subiam resignadamente pela alta escada inclinada colocada ao lado do navio. Uma vez a bordo receberam a ordem de separação das famílias nas acomodações coletivas: os homens e os meninos maiores de oito anos deveriam ficar juntos, em um grande alojamento e as mulheres, com as meninas e as crianças menores em outro também bastante grande. Essas acomodações de terceira classe eram grandes salões comunitários, localizados nos porões da grande embarcação, na estiva do navio, com pouca ventilação e iluminação precária, situados bem abaixo da linha da água. O ar naqueles salões era fétido, e cheirava a fumaça expelida pelos chaminés da embarcação. Era um ar pesado para respirar e quente por falta de ventilação. Os passageiros deviam se acomodar em precários catres tipo beliche, dispostos em filas e fixados firmemente ao piso. Não havia instalações sanitárias e nem água potável suficiente para banhos para todos aqueles mais de mil passageiros que o navio iria transportar, um número sempre muito acima daquele permitido pelas autoridades do porto, mas, que por algumas liras eram liberados e ninguém mais falava sobre isso. No fim de cada fila de beliches estavam colocados grandes baldes de madeira com tampa, para servirem de latrina para todos esses passageiros usarem sem qualquer privacidade. O cheiro fétido que exalava desses porões, após alguns dias de viagem, era insuportável, uma mistura de fumaça, de corpos suados mal lavados com o odor dos dejectos desse grande número de passageiros. A higiene a bordo era por vezes muito precária e a troca desses baldes nem sempre frequentes como seria necessário.
A bordo, a família de Giovanni teve que se adaptar às condições precárias e apertadas do navio, que estava lotado de pessoas de todas as idades, provenientes da região norte da Itália. A comida era escassa e a higiene era precária, mas os imigrantes se uniram para conseguir superar essas dificuldades. Como ainda não havia frigoríficos a bordo, as aves e o gado eram levados vivos, em um curral fechado, e abatidos durante a viagem para fornecer carne para os passageiros.
Com um longo apito o navio começou a se afastar do cais e a grande aventura tinha então começado. Do convés os emigrantes viam a Itália ficando cada vez mais para trás. Muitos choravam de tristeza pelos familiares que lá tinham deixado. Outros mantinham-se calmos e até mesmo alegres por deixarem aquele país que não tinha tido condições de oferecer-lhes o mínimo necessário: um trabalho digno para manterem suas famílias. Deixavam a Itália agradecendo a Deus por reservar-lhes um futuro melhor com liberdade. Outros amargurados, mas contentes, imprecavam frases e cantavam pequenos versos maldizendo os seus antigos patrões, antevendo com alegria o fato de que agora, com as suas saídas, os senhores das terras teriam que trabalhar. No primeiro momento até acharam o navio espaçoso, porém não sabiam que passados mais dois dias atracariam no porto de Nápoles, no sul da Itália, em uma parada anteriormente programada, mas não muito divulgada, onde embarcariam mais de 500 passageiros, pobres emigrantes como eles, provenientes das províncias mais meridionais do país. Quando esse novo grande grupo embarcou era uma profusão de gritos, choros, imprecações e palavras em vários dialetos, todos desconhecidos e não compreendidos pelos passageiros que embarcaram no porto de Gênova. Parecia até que estavam em um outro país e não na própria Itália. Aos poucos todos foram se acomodando, se bem que não havia muito dialogo entre eles, pois, com algumas poucas excessões, não falavam italiano e sim os seus próprios dialetos regionais. A convivência deles nem sempre era pacífica e algumas rusgas logo surgiram nos primeiros dias por disputa de lugares ou pela distribuição das refeições. Algumas delas até precisaram de intervenção da tripulação para apaziguar os ânimos.
A viagem que durou trinta dias foi longa e cansativa, mas a família de Giovanni encontrou conforto em conhecer outros imigrantes e na medida do possível compartilhar histórias e culturas diferentes. A viagem foi marcada pelo aparecimento de alguns casos de doenças a bordo, principalmente entre as crianças, causadas pelas precárias condições de higiene do navio, o confinamento forçado e também o excesso de lotação, mas eles superaram tudo e chegaram ao porto do Rio de Janeiro com sucesso sem ter que lamentar por mortes a bordo.
A chegada no porto do Rio de Janeiro foi uma experiência totalmente nova para todos aqueles pobres imigrantes que pouco ou nada conheciam além das suas pequenas vilas. A maioria não tinha nunca viajado de trem. Eles foram recebidos por um clima tropical quente e úmido, e uma cultura muito diferente da que estavam acostumados. Eles ficaram maravilhados com as praias de areia branca e as montanhas cobertas de vegetação exuberante. Os antigos escravos, pela cor da sua pele, se constituíram em uma grande novidade para eles pois, nunca tinham visto um. Depois de desembarcarem foram levados para a Hospedaria dos Imigrantes onde foram examinados por médicos, alimentados e acomodados em alojamentos limpos e organizados. Uma parte dos passageiros tinha como destino São Paulo, tal como a família de Giovanni e os seus amigos, assim tiveram que ficar hospedados por mais três dias na hospedaria, esperando chegar um outro navio de menor calado, que os levaria até o porto de Santos, já no estado de São Paulo.
Eles embarcaram em um navio menor para seguir viagem até Santos, onde finalmente chegaram após dois dias de viagem. A chegada em Santos foi emocionante e estressante ao mesmo tempo. Eles foram recebidos por um agente de imigração que os ajudou na transferência de Santos para São Paulo até a Hospedaria de Imigrantes dessa cidade onde foram hospedados por um dia e ficaram esperando pelo encontro com os empregados e representantes dos fazendeiros. De lá, eles foram transferidos para as fazendas onde trabalhariam com o cultivo de café. Para algumas cidades não havia trem e seguiram em carroças, outros foram de trem até próximos da fazenda. Giovanni e os demais do seu grupo estavam entre esses mais privilegiados. A fazenda que tinha contratado Giovani e seus amigos era grande e bonita, cercada por colinas e campos verdes que se estendiam a perder de vista. A família Giovanni ficou impressionada com a beleza do lugar e também com a quantidade de trabalho que teriam pela frente. Eles foram recebidos pelo administrador da fazenda, um homem chamado Antônio, que os levou para conhecer as instalações e as áreas onde eles trabalhariam.
A primeira tarefa da família era manter limpo de ervas daninhas e cuidar de mil pés de café. Também na safra deveriam ajudar na colheita de café. Eles trabalhavam das primeiras horas da manhã até o pôr do sol, e o trabalho era muito cansativo e difícil. No entanto, eles eram gratos por terem encontrado um emprego e uma casa para morar mas ainda preocupados com o futuro, pois este trabalho no cafezal jamais os levaria a serem proprietários de sua própria terra.
A fazenda era um lugar bastante isolado e tranquilo, longe da da cidade mais próxima. A família de Giovanni foi se adaptando lentamente à nova vida, aprendendo a língua, as tradições e a cultura local. Eles conheceram outros imigrantes italianos que também trabalhavam na fazenda, e formaram laços fortes de amizade com eles. Quando os administradores da fazenda tomaram conhecimento das habilidades de Giovanni como carpinteiro e ótimo marceneiro, ele não fez outra coisa do que trabalhar na construção e reparos de casas dentro da área da fazenda e fabricar móveis até para a casa do proprietário rural para o qual trabalhavam. Maria também era muito hábil com a horta e animais que podiam criar entorno da sua casa, herança dos seus antepassados agricultores. Colhia ovos e vendia galinhas, assim como fazia sabão, que negociava com outros colonos e até com a casa do patrão. Maria era muito econômica e prendada, com a filha Sofia faziam bolos e outros doces que vendiam no âmbito da fazenda e até mesmo na cidade mais próxima quando podiam ir até lá. Esse dinheiro que o casal e filhos ganhavam eram guardados com os salários do trabalho de cuidados do pés de café e colheita, com a finalidade de um dia poderem adquirir um terreno na cidade e montar uma oficina de marcenaria e carpintaria.
A família também passou por momentos difíceis, como quando Francesco, o filho mais velho, ficou doente e precisou ser levado à cidade para receber tratamento médico. Eles não tinham dinheiro suficiente para pagar pelo tratamento, mas o dono da fazenda ajudou-os, cobrindo todas as despesas em forma de empréstimo, que deveria ser pago nos próximos acertos de conta.
Passados alguns anos de trabalho árduo na fazenda, a família de Giovanni decidiu que já era hora de seguir em frente e comprar a sua própria propriedade. Já se tinham passados oito anos desde que a tinham chegado ao Brasil. Depois de acertar as contas com o proprietário da fazenda, condição contratual indispensável para poder deixar a fazenda, pagaram todas as dívidas que tinham contraído durante todo esse tempo e abandonaram definitivamente o emprego na plantação de café. Com o dinheiro que tinham economizado, há pouco mais de um ano, já haviam comprado um terreno com casa localizado em um bairro próximo do centro da pequena cidade, que ficava não muito longe da sede da fazenda. Era um lugar simples, mas suficiente para eles morar e trabalhar. Na cidade, Maria e Sofia, já tinham alguns clientes fiéis para os doces que faziam e continuaram trabalhando com esse ramo de atividade.
No quintal, ao lado da casa, Giovanni construiu uma oficina de marcenaria e carpintaria. Seus trabalhos eram elogiados e muito solicitados pelos habitantes do lugar. Os filhos Francesco e Luca, já grandes, trabalhavam ajudando o pai no seu trabalho e aprendendo a profissão de família, mantendo assim a antiga tradição dos Scarsella. A família estava feliz por estar trabalhando em seu próprio negócio e criando algo para suas futuras gerações. Eles se dedicaram ao trabalho com amor e paciência, sabendo que o sucesso viria com o tempo e a perseverança. Com o passar dos anos a pequena oficina de Giovanni se transformou em uma grande fábrica de móveis em sociedade com os filhos a qual deram o nome de Fábrica de Móveis Piave, de Giovanni Scarsella e Filhos. Ainda continuaram com a carpintaria, mas em outro terreno, mais amplo, que tinham adquirido, que com o tempo se transformou em uma concorrida construtora, tendo sido necessário contratar diversos empregados, que se encarregavam do trabalho de construção e reparação de casas. Maria e a filha Sofia abriram um negócio de venda de pães e doces que com o tempo se transformou em uma grande confeitaria, com várias empregadas. Os filhos foram se casando, chegaram os netos mas, continuaram unidos entorno aos pais, fazendo parte dos negócios da família que eles haviam ajudado criar.
A família nunca se esqueceu de suas raízes italianas, mas também se sentiam em casa no Brasil. Eles amavam a terra, as pessoas e as tradições locais, e estavam gratos por terem encontrado uma nova vida em um lugar tão bonito e acolhedor.
A família se tornou uma das mais respeitadas e abastadas da cidade, participando ativamente das festividades paroquiais e dos movimentos sociais da localidade. Mesmo com o sucesso, a família nunca esqueceu suas raízes e sempre se lembrava de sua jornada desde a pequena vila no Vêneto até a grande propriedade onde estavam agora. Eles se sentiam gratos por terem encontrado um lugar para chamar de lar no Brasil e por terem tido a oportunidade de construir sua própria vida.
Conto de
Dr. Luiz Carlos B. Piazzetta
Erechim RS
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