A Terra que Engoliu as Promessas
Quando Giovanni Bellomondi partiu da localidade de Pullir, comune de Cesiomaggiore, no Vêneto, o sino da igreja de San Lorenzo repicava a um ritmo fúnebre. Era um dia 2 de fevereiro, mas a neve ainda se amontoava nos beirais das casas, e o sopro cortante dos Alpes parecia uma despedida cruel. Deixava para trás uma esposa cansada, dois filhos pequenos e um pequeno campo que já não mais produzia, só dívidas.
Na Argentina, disseram-lhe, havia terras imensas e sol o ano inteiro. Disse-lhe o cônsul, disseram-lhe os agentes de viagem, repetiram os padres. Não diziam, porém, que o sol ali ardia até ferver a pele, e que os campos se abriam como bocas de poeira, onde promessas afundavam sem deixar rastro.
Desembarcou em Rosario de Santa Fé no início de abril. A cidade parecia um amontoado de madeira e barro à beira do rio Paraná. Os dias eram secos, as noites, frias. Encontrou abrigo num rancho partilhado com outro vêneto, Battista Polanio, natural de Pedavena, e desde então não se separaram mais. Dormiam ao relento quando havia trabalho no campo e se revezavam no preparo de uma sopa rala de milho e feijão-preto. A moeda de papel da Argentina, diziam, não valia mais do que folhas secas — e Giovanni logo percebeu que tudo o que tocava parecia escorrer entre os dedos.
Naquele inverno de 1878, escreveu uma longa carta à esposa, Maddalena, com a caligrafia trêmula de quem já perdera as ilusões. Pedia que cuidasse da filha doente como se fosse filha dela, temendo que a febre da menina fosse reflexo do abandono de um pai ausente. Suplicava que não deixasse a pequena nos campos, e que poupasse o pouco da colheita para o sustento da família. Recomendava cuidado com os vizinhos, com os falsos amigos, com as bocas que perguntavam demais. Os olhos do mundo, dizia ele, não eram mais confiáveis.
Giovanni descrevia os dias com precisão militar. Falava das nuvens de gafanhotos que surgiam como uma cortina negra sobre o céu, eclipsando o sol como se o apocalipse estivesse próximo. Depois da sombra, vinham os ovos. E depois dos ovos, milhões de novas bocas famintas que destruíam tudo no chão: feijão, milho, mandioca, esperanças. Dizia que os camponeses já não semeavam com fé — semeavam por hábito, como quem acende uma vela num túmulo.
O trabalho escasseava. No verão, as tarefas nos campos duravam dois ou três meses e depois vinham meses de espera e silêncio. Dormiam ao ar livre, como animais. "As bestas na Itália", escrevia, "estão melhor acomodadas que os cristãos nesta América." Os dias em Santa Fé tinham cheiro de suor velho e urina de cavalo. E mesmo assim, muitos ainda chegavam, seduzidos por mentiras estampadas em panfletos e promessas de intermediários gananciosos.
Pensava em seguir para Montevidéu, onde ouvira dizer que a moeda era mais forte. Se não desse certo, seguiria para o Brasil, onde ao menos pagavam com dinheiro de verdade. Mas não sabia quando, nem como. A miséria lhe prendia os tornozelos.
Apesar de tudo, havia ternura naquelas linhas. Giovanni pedia que Maddalena não alimentasse esperanças de seguir seus passos. Alertava a cunhada Domenica para que não viesse, e rogava que cuidasse da própria casa e dos filhos — que se esquecesse da América, essa terra que engolia mais sonhos do que grãos de trigo.
Na última parte da carta, falava de amigos de sua região, homens de Seren del Grappa e de Mel, que haviam embarcado cheios de fé e agora imploravam por voltar. Falava também do sofrimento dos que não podiam: os que venderam tudo e agora não tinham sequer o dinheiro da volta. Giovanni terminava com uma promessa contida: se conseguisse juntar algo, ajudaria. Mas por ora, não havia futuro, só poeira.
Na sua despedida, o tom endurecia. "Diga a todos que não venham. Que fiquem com sua fome em casa, que ao menos têm um lar onde morrer. Aqui a fome tem cheiro de abandono e o frio tem gosto de desespero."
Parte II – Os que Ficaram para Sempre
Os anos seguintes àquela carta correram como a água turva do rio Paraná: lentos, pesados, indiferentes às dores humanas. Giovanni Bellomondi permaneceu em Santa Fé, embora já não escrevesse mais à esposa. As palavras, como as colheitas, haviam se tornado escassas.
Em 1880, Giovanni ainda fazia biscates nas estâncias próximas. Preparava a terra, carregava fardos, varria as cocheiras. Era um corpo forte em declínio, mas ainda útil. Ganhava em papel, como todos, e às vezes recebia em farinha, mais estável que a moeda argentina. Dormia sob o telhado de um galpão, entre ratos e sonhos velhos. Nos domingos, caminhava até a beira do rio, onde alguns italianos se reuniam para cantar as canções da terra natal — mas ele raramente abria a boca. A saudade, dizia, já não lhe cabia nas canções.
Com o tempo, foi se afastando dos demais. Tornou-se conhecido entre os colonos como "el Veneto Muto" — o vêneto calado. Passava seus dias cavando sulcos ou entalhando pedaços de madeira que ninguém sabia se eram colheres, cruzes ou só rabiscos da memória.
No inverno de 1882, adoeceu de vez. Um resfriado simples, agravado por noites úmidas e alimentação ruim, logo se tornou febre. Battista tentou levá-lo ao hospital de caridade mantido por franciscanos italianos, mas não havia camas. Aplicaram-lhe um cataplasma de eucalipto e rezaram uma prece. O resto, disseram, dependia de Deus.
Giovanni passou seus últimos dias num galpão ao lado da olaria de don Pedro Aguirre, um espanhol viúvo que lhe dava restos de sopa. Em sua cabeceira, mantinha uma pedra lisa, onde gravara com um prego enferrujado os nomes de Maddalena, Lucia e Giulio — a esposa e os dois filhos que jamais voltara a ver.
Na manhã do dia 7 de agosto de 1882, o sol nasceu vermelho sobre as margens do Paraná. Giovanni Bellomondi morreu em silêncio, com os olhos abertos voltados para o teto de barro, como se ainda esperasse o sino de San Lorenzo repicar entre as nuvens. Não deixou testamento, nem posses. Seu corpo foi enterrado numa cova rasa, entre outros tantos “desaparecidos da colônia”, numa vala comum do cemitério velho de Santa Fé.
Battista Polonio escreveu uma carta à Itália, avisando à família Bellomondi da morte do amigo. Mas ninguém sabe se a carta chegou. Ou se alguém ainda estava lá para recebê-la.
O nome de Giovanni não consta em nenhum memorial. Apenas um caderno em couro, encontrado entre seus poucos pertences, continha suas cartas não enviadas, suas orações mal escritas e os esboços de uma vida que jamais se cumpriu.
Carta Nunca Enviada – Santa Fé, Inverno de 1882
A mia cara moglie Maddalena,
Se esta carta um dia te alcançar, será sinal de que ao menos as palavras cruzaram o oceano que me impediu de voltar.
Escrevo com as forças que me restam, deitado num canto escuro onde a noite entra antes da hora e o frio morde os ossos como fera faminta. Aqui, Maddalena, os dias são todos iguais: secos, longos e vazios. Mas esta noite — talvez por ser a última — o céu parece mais perto, e sinto tua voz como se me chamasses lá de Cesiomaggiore, entre as colinas que ainda guardo no peito.
Perdoa-me por não ter voltado. Perdoa por cada colheita que não ajudei, por cada lágrima que caiu sem meu ombro para amparar. Partir foi um ato de esperança, mas a América, minha querida, foi feita de promessas que só duram até a primeira fome. Aqui não há terras de leite e mel, apenas pó e ausência.
Pensei em ti todos os dias. Quando o sol queimava minha nuca, era o teu pano que eu desejava no rosto. Quando as dores vinham, eu chamava por ti como um menino perdido. E à noite, quando o silêncio se assentava como neve sobre os campos, eu falava com as estrelas como se fossem teus olhos.
Não vi nossos filhos crescerem. Não soube da primeira palavra de Lucia, nem do primeiro passo de Giulio. Imagino que já sejam grandes, fortes como tu. Que te ajudem, que te amem, que não me odeiem.
Maddalena, não chores por mim. Eu fui morrendo aos poucos nestes campos — não de doença, mas de saudade. A pior fome foi a de ti. A pior solidão foi estar longe dos teus olhos.
Enterrar-me-ão aqui, entre outros tantos sem nome, homens bons que sonharam alto demais. Não haverá cruz, nem pedra. Mas se um dia tu ou nossos filhos passarem por esta terra, procurem pelo canto onde crescem as flores bravas. Talvez lá o vento ainda saiba meu nome.
Cuida de ti. Cuida dos nossos. E vive, Maddalena. Vive também por mim.