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quarta-feira, 31 de dezembro de 2025

Fome e Miséria na Itália do Século XIX: A Verdade Sobre a Vida Rural que Impulsionou a Emigração




Fome e Miséria na Itália do Século XIX: A Verdade Sobre a Vida Rural que Impulsionou a Emigração




Introdução

A Itália que nossos antepassados deixaram para trás

A emigração italiana — especialmente entre 1870 e 1914 — não nasceu do acaso. Atrás das malas improvisadas, das longas travessias e das despedidas sem retorno havia uma força muito maior: a fome estrutural e a miséria rural que devastavam a península. No final do século XIX, a recém-unificada Itália era um país profundamente desigual, marcado por doenças, nutrição deficiente, campesinato empobrecido e mortalidade infantil assustadoramente alta.
A mais completa fotografia desse cenário veio da Investigação Agrária Jacini, iniciada em 1880, documento que revelou em detalhes o sofrimento cotidiano de milhões de pequenos agricultores italianos. Ao compreender essa realidade, entendemos não apenas como viviam nossos antepassados — mas por que tantos deles decidiram partir em busca de uma vida possível nas Américas.
Casebres, animais e seres humanos: um único espaço para sobreviver
O relatório Jacini é contundente: nos vales alpinos, nos Apeninos, nas planícies do Mezzogiorno e até em províncias agrícolas do norte, milhares de famílias viviam em um único aposento, sem janelas, sem circulação de ar e sem higiene adequada.
Homens, mulheres, crianças, cabras, porcos e galinhas dividiam o mesmo ambiente — uma imagem que pode parecer grotesca, mas que era extremamente comum. O documento menciona que esses casebres, muitas vezes enegrecidos pela fumaça e pela umidade, somavam talvez centenas de milhares em toda a Itália.
Essa promiscuidade não era apenas um sinal de pobreza; era uma necessidade de sobrevivência. O calor corporal e o cheiro forte dos animais eram tolerados porque qualquer fonte de calor era preciosa nos longos invernos italianos.
A “estrebaria”: sala, quarto, cozinha e santuário familiar
Segundo a investigação, para o pequeno agricultor, a estrebaria (estábulo) era o verdadeiro centro da vida. 
Ali:
  • se dormia,
  • se comia,
  • se recebia visitas,
  • se trabalhava,
  • e se passavam os meses gelados.
As mulheres costuravam, fiavam e remendavam; os homens jogavam cartas, afiavam ferramentas e contavam histórias antigas. Tudo acontecia ali — no mesmo espaço onde ruminavam vacas e cabras.
Essa realidade demonstra uma Itália rural aprisionada no tempo, com estruturas sociais medievais persistentes mesmo em pleno século XIX.
Polenta e pelagra: quando a comida é insuficiente para viver
Se a moradia era precária, a alimentação era ainda pior. A dieta do camponês italiano era quase exclusivamente polenta, feita com farinha de milho pobre em nutrientes. Em média, cada pessoa consumia cerca de 33 kg por ano — embora em muitas regiões esse número fosse maior.
Essa monotonia alimentar desencadeou a terrível pelagra, doença conhecida como “a doença dos 3D”: dermatite, diarreia e demência.
O maior pelagrosário do país ficava em Mogliano Veneto, na província de Treviso, onde a doença devastava comunidades inteiras.
Para tentar “dar sabor” à polenta, famílias passavam o alimento sobre um único pedaço de arenque defumado, compartilhado por todos — uma prática reveladora da escassez absoluta.
O vinho como alimento: crianças italianas e o alcoolismo rural
Onde havia vinhas, especialmente no Vêneto e na Lombardia, o vinho era parte essencial da dieta — não por prazer, mas por necessidade. Dizia-se: “O vinho faz sangue!”
Uma pesquisa envolvendo 12 mil estudantes primários revelou um dado chocante:
  • Apenas 3 mil não consumiam álcool.
  • 5 mil bebiam bebidas de alta graduação.
  • 9 mil bebiam vinho regularmente — e metade abusava.
O alcoolismo rural era consequência direta da miséria alimentar, não um hábito festivo como se romantiza hoje.
Órfãos abandonados e amas de leite: quando a pobreza molda laços familiares
Marco Porcella, em La Fatica e la Merica, explica que muitas famílias sobreviviam graças ao sacrifício das mulheres, que atuavam como amas de leite para órfãos abandonados.
Os chamados “filhos da culpa” eram colocados:
  • nas Rodas dos orfanatos,
  • nos degraus de igrejas,
  • nas portas de párocos,
  • ou nas mãos de parteiras.
Desnutridos e frágeis, muitos morriam antes de completar uma semana. Mesmo em anos sem epidemias, a mortalidade infantil chegava a 33%.
As amas de leite frequentemente devolviam as crianças por medo de transmitirem doenças às próprias famílias — especialmente sífilis, erroneamente vista como inevitável nesses casos.
Após um ano, esses órfãos deixavam de ser “crianças de leite” e se tornavam “crianças de pão”, podendo ser criados até cerca de doze anos, quando terminava a responsabilidade do hospital ou orfanato.
A vida vale menos que a de um boi: prioridades de uma sociedade faminta
Os relatos do médico Luigi Alpago Novello, que atuava na província de Treviso na segunda metade do século XIX, mostram como a miséria deformava a lógica afetiva das famílias.
Para muitos camponeses:
a doença ou morte de uma criança, idoso ou inválido era recebida com resignação,
enquanto a doença de uma vaca, boi ou cabra gerava desespero.
Os animais eram o sustento da família — leite, carne, trabalho.
Uma criança doente, sem capacidade produtiva, raramente justificava os custos de um médico. É duro, mas historicamente verdadeiro.
Medicina, higiene e mudança demográfica: avanços lentos, desigualdades persistentes
Com a chegada das campanhas de higiene e dos avanços médicos, sobretudo durante a administração austríaca no Vêneto, a expectativa de vida começou a melhorar.
Em 1911, a idade média dos óbitos subiu de 6,5 anos para 30 anos.
Ainda assim, a situação era dramática: naquele ano, crianças abaixo de cinco anos representavam 38% de todas as mortes no país.
A Itália caminhava lentamente rumo à modernidade, mas a herança da fome e da miséria ainda marcava profundamente a sociedade.

Conclusão: por que milhões fugiram dessa Itália

Todo esse sofrimento — fome, pelagra, alcoolismo infantil, abandono de órfãos, moradias indignas e mortalidade assustadora — compôs a realidade que milhões de italianos enfrentaram.
Essa realidade explica, com clareza brutal, por que tantos partiram:
  • não foi aventura,
  • não foi turismo,
  • não foi romantismo.
  • Foi sobrevivência.
Foi a busca por um destino possível, longe da miséria que a Itália do século XIX lhes impunha.
Entender esse passado é compreender a origem de milhões de famílias italianas espalhadas pelo Brasil e pelas Américas — e reconhecer a força e a dor que moldaram nossa própria história.

Dr. Luiz Carlos B. Piazzetta