sábado, 22 de novembro de 2025

O Fogão que Guardava as Vozes de Três Gerações


O Fogão que Guardava as Vozes de Três Gerações 


O fogão de lenha permanecia imóvel no canto da velha cozinha, como um guardião silencioso de décadas que ninguém mais se lembrava de contar. Enferrujado nas bordas, com a pintura descascada e a chaminé torta pelo uso incansável, ele era um daqueles objetos que pareciam ter alma — alma feita de fumaça, de calor e de histórias que sobrevivem mesmo quando todos os outros já se calaram. O fogão de lenha permanecia no canto mais antigo da cozinha como um monumento silencioso à história da família. Três gerações de imigrantes italianos tinham vivido e trabalhado ao seu redor, e cada marca de fuligem parecia guardar um vestígio do esforço que, década após década, sustentara aquela casa erguida em meio às matas do interior brasileiro. A madeira antiga do telhado, impregnada pelo cheiro da fumaça, parecia respirar junto com as paredes, como se o passado ainda estivesse vivo ali dentro.

Para Maria Augusta, descendente direta dos primeiros colonos que haviam chegado da Itália setenta anos antes, o fogão era mais do que um objeto. Era a espinha dorsal da memória familiar. Sua avó, que atravessara o oceano em um navio lotado de esperanças e misérias, havia cozinhado ali as primeiras refeições que mantiveram a família de pé nos tempos de fome. Mais tarde, sua mãe usara o mesmo fogo para aquecer as longas noites de inverno e alimentar os filhos que cresciam no compasso incerto da roça. E agora, viúva e com os filhos vivendo nas cidades grandes, Maria Augusta era a guardiã solitária daquele relicário de ferro.

O fogão reunia tudo: a força dos que haviam chegado com as mãos vazias, a persistência dos que lutaram contra a mata bruta, e a teimosia dos que acreditaram que um novo mundo podia ser construído com suor, fé e madeira seca. Cada lasca de lenha representava uma resistência silenciosa. Cada chama reacendida era uma afirmação de continuidade.

Mas o tempo, sempre decidido a apagar as marcas humanas, começava a se impor. A casa antiga, construída às pressas pelos antepassados, já não suportava mais as chuvas e o peso dos anos. Uma reforma seria inevitável. O fogão, considerado obsoleto pelos técnicos que analisavam a estrutura, fora incluído entre os itens a serem retirados. A justificativa era simples: segurança, modernização, novos padrões de ventilação. Mas para Maria Augusta, isso significava algo muito mais profundo — o desmantelamento de um elo que unia vivos e mortos em um mesmo ciclo de calor.

Numa manhã fria, enquanto o sol ainda hesitava atrás das araucárias, ela caminhou pela cozinha silenciosa e parou diante do fogão. A superfície de ferro, fria como pedra, parecia esperar por ela. Nada ali falava, mas tudo ali dizia. As marcas de uso denunciavam as mãos que mexeram panelas, os braços que amassaram pão, os dias de fartura e os dias de escassez. O fogão era testemunha de vidas que haviam se apoiado umas nas outras, construindo um legado que nenhum documento oficial seria capaz de registrar.

Maria Augusta recolheu lenha do depósito — pedaços escolhidos com o mesmo cuidado que sua avó tivera ao selecionar gravetos na beira do mato, há tantos anos. Acendeu o fogo lentamente, observando com atenção a hesitante ascensão da chama. Por um momento, pareceu que o fogão resistiria, recusando-se a reacender após tantos meses de abandono. Mas a brasa enfim tomou forma, e a chama se ergueu com a delicadeza de um gesto antigo, quase ritualístico.

O calor se espalhou pela cozinha, e com ele veio um desfile de memórias: a avó preparando polenta grossa para os trabalhadores; a mãe amassando massa fresca enquanto cantava baixinho; o pai chegando da roça coberto de barro, deixando um rastro úmido pelo chão; os irmãos correndo ao redor da mesa, rindo como se a vida fosse infinita. E ela mesma, ainda menina, observando tudo com os olhos grandes de quem aprende que família é feita tanto de alimento quanto de coragem.

A chama parecia compreender seu propósito final. Era a última vez que iluminava aquela cozinha. A fumaça subia pela velha chaminé, carregando consigo invisíveis fragmentos da história da família, como se cada faísca fosse uma lembrança se desprendendo aos céus. Maria Augusta permaneceu ali, imóvel, permitindo que o calor lhe atravessasse a pele e alcançasse os lugares que o luto e a solidão haviam tornado áridos.

Quando o fogo começou a diminuir, ela ainda não se movia. Sentia que acompanhava um funeral silencioso — o encerramento de um ciclo iniciado muito antes do seu nascimento. Ao fim, restavam apenas brasas incandescentes, pequenas e vigorosas, como se ainda tentassem lutar contra o inevitável.

Quando a última brasa se apagou, a cozinha mergulhou em um frio profundo. Maria Augusta entendeu então que nada poderia impedir a modernização da casa, nem o avanço impessoal das reformas. Mas também compreendeu que o fogão, mesmo retirado, viveria em outro lugar: nos sabores que ainda sabia preparar, nas histórias que contaria aos netos, na memória incansável que continuaria acesa dentro dela.

O fogão seria removido. Mas o que ele representou jamais seria destruído. Algumas estruturas pertencem ao mundo físico; outras pertencem à alma. E aquelas que pertencem à alma nenhum tempo, nenhuma reforma e nenhuma distância é capaz de apagar.

Nota do Autor

Este texto se inspira na trajetória de três gerações de imigrantes italianos que construíram sua história no Brasil por meio do trabalho silencioso, da persistência e dos afetos transmitidos de forma quase invisível entre pais e filhos. O velho fogão de lenha, presente desde a chegada dos primeiros colonos, funciona aqui como símbolo desse legado. Ele representa o centro emocional da família, o ponto onde memória, esforço e esperança se encontram. Ao narrar a despedida da personagem de seu fogão ancestral, busco revelar como objetos simples, marcados pelo uso cotidiano, podem guardar mais humanidade e história do que qualquer registro escrito — mostrando que, mesmo quando o tempo apaga as estruturas físicas, a chama da memória continua acesa dentro de cada descendente.

Dr. Luiz Carlos B. Piazzetta


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