Superstições Antigas do Vêneto: Crenças, Rituais e Objetos que Guiaram a Vida no Século XIX
No Vêneto do século XIX — em seus vilarejos isolados, nas pequenas cidades muradas e até nos grandes centros comerciais como Veneza, Verona e Padova — as superstições circulavam com a mesma naturalidade que o dialeto e o cheiro do pão recém-assado. Antes da eletricidade e da medicina moderna, essas crenças davam forma ao cotidiano e ofereciam explicações para o que a ciência ainda não alcançava.antes das estradas pavimentadas e muito antes de a ciência alcançar as pequenas comunidades rurais, a vida era guiada por sinais invisíveis. Cada objeto, cada gesto e cada ruído da natureza podia carregar significados que ultrapassavam o simples cotidiano. As superstições — herança de séculos de tradição camponesa, influência cristã e resquícios de crenças pré-cristãs — moldavam a forma como as pessoas compreendiam o mundo, protegiam suas famílias e interpretavam o futuro.
Essas crenças acompanhariam também os milhares de vênetos que emigraram para a América, levando na bagagem medos, rituais, rezas e cuidados transmitidos pelas nonas. Muitos desses costumes sobreviveram por gerações e ainda hoje despertam curiosidade entre descendentes de italianos.
Objetos comuns que “falavam”: copos, facas, colheres e pentes
No imaginário popular, instrumentos de uso diário tinham alma própria. Copos e taças nunca deveriam ser usados para olhar alguém “através do vidro”, gesto visto como anúncio de desentendimento ou doença. Pior ainda quando o copo se quebrava durante um brinde: acreditava-se que aquilo era um aviso severo do destino.
As facas carregavam uma energia ambígua. Entregá-las com a ponta virada para a pessoa era sinônimo de cortar a amizade. Se caíssem da mesa, anunciavam rompimento de noivado — embora para casados nada acontecesse. Para neutralizar riscos, quem recebia uma faca de presente deveria pagar uma moeda simbólica, gesto que “comprava” o objeto e afastava qualquer mal.
As colheres também comunicavam recados. Quando uma escumadeira caía, sua posição determinava boa ou má sorte. Se uma criança a levantasse com a mão direita, reforçava o presságio positivo. As tesouras exigiam ainda mais cuidado: só deveriam ser recolhidas por outra pessoa; quando isso não fosse possível, pisava-se nelas antes de pegar, como forma de quebrar qualquer negatividade.
O pente era visto como extensão da energia pessoal. Usar o pente de um falecido era absolutamente proibido, pois poderia trazer doença ou tristeza para dentro da casa. Crianças não deveriam ser penteadas antes de perderem todos os dentes de leite, crença que misturava proteção espiritual e cuidados tradicionais.
O pão e a vassoura: símbolos sagrados do lar vêneto
O pão, alimento central na mesa camponesa, possuía significado sagrado. Associado ao Corpo de Cristo, nunca deveria ser desperdiçado ou colocado de cabeça para baixo. Virar um pão para cortá-lo era considerado ofensa grave e anúncio de doença para o chefe da família. Piores eram os pães que saíam do forno com um buraco: sinal de morte próxima. Já pequenos pedaços do pão da ceia de Natal eram guardados como remédio para emergências, usados como proteção durante tempestades, doenças repentinas ou momentos de perigo.
A vassoura — objeto simples, mas carregado de simbolismo — tinha regras próprias. Jamais se comprava uma nova no mês de maio, considerado período de má sorte. Ao mudar de casa, a vassoura velha ficava para trás, e a nova deveria permanecer três dias do lado de fora antes de entrar. Crianças que brincavam com vassouras anunciavam a chegada de visitas inoportunas. Se um homem pegasse a vassoura de uma mulher, dizia-se que perderia a virilidade. Varrer os pés de uma pessoa solteira significava condená-la a nunca se casar, ou a ter um casamento frágil e curto — superstição ainda repetida de forma bem-humorada hoje em dia.
Malocchio: o poder do olhar e as proteções contra o azar
Para combatê-lo, usavam-se amuletos populares como:
raminhos de arruda ou louro atrás da porta;
pequenas medalhas de santos protetores;
pedaços de coral vermelho;
objetos em forma de mão fechada;
ferraduras colocadas acima da entrada da casa.
Além disso, rezas, benzeduras e sinais da cruz feitos em três movimentos eram considerados suficientes para romper “a energia ruim”.
Crenças ligadas à natureza, às pedras e às bruxas do Vêneto
Muito antes do cristianismo, os povos da região acreditavam em forças naturais presentes em árvores, rochas e fontes de água. No século XIX, essas crenças persistiam disfarçadas. Árvores com galhos retorcidos nunca deveriam ser cortadas, pois eram consideradas “moradas de espíritos”. Buracos em pedras e troncos, chamados busi, eram vistos em alguns locais como portais de cura contra hérnias, raquitismo e fraquezas.
Entretanto, com a influência cristã, essa prática passou a ser vista como superstição perigosa, proibida pelos padres. A dualidade entre fé popular e doutrina oficial estava sempre presente.
A figura da strega — a bruxa — também sobrevivia na imaginação rural. Não era a bruxa maligna dos contos modernos, mas uma mulher conhecedora de ervas, parteira ou curandeira. Em muitas aldeias, acreditava-se que as vassouras deixadas viradas para cima poderiam ser usadas pelas streghe para entrar na casa à noite. Por isso, deixá-las apoiadas com as cerdas para baixo era regra obrigatória.
Dias de sorte, de azar e presságios cotidianos
No Vêneto do século XIX, o calendário era repleto de dias favoráveis e desfavoráveis. Terças-feiras e sextas-feiras eram consideradas datas arriscadas para viagens importantes ou início de obras. Já o nascer do sol em certos dias, especialmente após tempestades, era lido como sinal de abundância.
Ouvir corujas anunciava doença; o canto repentino do galo no meio da tarde previa mudança de clima; uma borboleta que entrava em casa trazia boas notícias; uma vela que tremulava sem vento avisava a presença de espíritos.
Esses detalhes guiavam decisões práticas: quando semear, quando cortar madeira, quando visitar parentes ou quando adiar qualquer mudança importante.
Conclusão
As superstições antigas do Vêneto formam uma gama fascinante de símbolos, medos e esperanças que moldaram a vida dos camponeses no século XIX. Misturando cristianismo, rituais pré-cristãos e sabedoria popular, essas crenças acompanharam os imigrantes que partiram para o Brasil e para outras regiões do mundo. Conhecê-las é preservar a memória cultural vêneta e compreender como pequenos gestos e objetos simples influenciaram profundamente a identidade de nossos antepassados.
Nota do Autor
Este texto nasce do desejo de manter viva uma herança que, aos poucos, desaparece da memória cotidiana: as superstições, crenças e rituais que moldaram o imaginário do Vêneto rural no século XIX. Muito antes da chegada da eletricidade, da medicina moderna ou das certezas do mundo contemporâneo, eram essas práticas—transmitidas por avós e comadres, renovadas a cada geração—que ofereciam proteção, esperança e sentido à vida.
Aqui, combinam-se pesquisa histórica, tradição oral e lembranças preservadas entre descendentes. O objetivo não é apenas listar costumes antigos, mas reconstruir, com profundidade e sensibilidade, a atmosfera espiritual em que viviam os camponeses vênetos que depois cruzaram o oceano. Suas crenças acompanhavam-nos nos bolsos, na fala e no coração, moldando a cultura dos imigrantes que ergueram comunidades inteiras no Brasil.
Ao registrar esse patrimônio imaterial, busco oferecer ao leitor uma compreensão mais ampla da mentalidade da época: o medo real das doenças, a reverência às forças da natureza, o peso da religião e a força do simbolismo que guiava gestos simples do dia a dia. Cada superstição, por menor que pareça, é um fragmento de identidade que merece ser preservado.
Que este trabalho sirva não apenas como consulta histórica, mas como ponte entre o passado e o presente, valorizando a memória dos que vieram antes de nós e ajudando a manter acesa a chama da cultura vêneta entre seus descendentes no Brasil.
Dr. Luiz Carlos B. Piazzetta