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quinta-feira, 21 de agosto de 2025

Sob o Céu Ardente do Espírito Santo

 


Sob o Céu Ardente do Espírito Santo

Da Lombardia às florestas do Brasil, a saga de uma família pioneira


Em 1841, no coração da província de Mântua, nasceu Lorenzo Bellani, filho de agricultores que conheciam a terra como se fosse uma extensão de suas próprias mãos. Cresceu entre o perfume do trigo recém-ceifado e o frio cortante dos invernos lombardos, num mundo onde cada estação trazia promessas e ameaças na mesma medida. Ainda jovem, aprendeu que a terra só retribuía com fartura àqueles dispostos a sacrificar o corpo e o espírito.

No ano de 1862, uniu-se a Emilia Carpi, mulher de força serena, capaz de transformar escassez em sustento e silêncio em firmeza. O casamento lhes trouxe não apenas companhia, mas um pacto de resistência diante da dureza da vida. Vieram cinco filhos — Vittore, Lucia, Rosa, Zelinda e Cesare — e, com eles, a certeza de que a luta pela sobrevivência se intensificaria.

A década de 1870 foi marcada por colheitas incertas, terras cada vez mais disputadas e impostos sufocantes. A unificação da Itália não trouxe alívio imediato às famílias camponesas; pelo contrário, a pressão sobre os pequenos agricultores aumentou. Rumores vindos do outro lado do oceano falavam de terras vastas e generosas no Brasil, de um governo que oferecia passagem e abrigo aos que aceitassem povoar regiões quase intocadas. A decisão amadureceu lentamente, até que, no início de 1877, Lorenzo vendeu o pouco que possuíam e reuniu recursos para a travessia.

O embarque em Gênova foi uma ferida aberta no coração da família. A cidade fervilhava com o som das marés, dos pregões e do ranger das cordas nos mastros. O porto era um teatro de emoções: crianças chorando, mães abraçando os filhos como se quisessem gravar-lhes o cheiro, homens trocando apertos de mão que carregavam promessas impossíveis de cumprir. A bordo, os Bellani se instalaram no porão destinado aos imigrantes — um espaço onde a madeira transpirava umidade e o ar misturava sal, suor e esperança.

Durante quarenta dias, o Atlântico foi tanto caminho quanto provação. Nos primeiros dias, a brisa fresca e o balanço suave pareciam quase agradáveis. Mas logo vieram as tempestades: ventos que urravam como animais famintos, ondas que se erguiam como muralhas líquidas, e o casco do navio gemendo sob o impacto. A vida a bordo era marcada por comida racionada — caldo ralo, pão endurecido, arroz ou macarrão cozido demais — e por noites em que o sono era interrompido pelo rangido das estruturas e pelo choro de crianças assustadas. O enjoo se tornou companheiro constante, e doenças como escorbuto e febres eram ameaça diária.

Quando a silhueta da baía de Guanabara surgiu no horizonte, as emoções explodiram. Montanhas cobertas de verde, águas cintilantes e um calor úmido que envolvia o corpo como um manto. Mas a beleza escondia uma nova dureza. Em Niterói, na Hospedaria da Ilha das Flores, receberam abrigo e comida, mas também a consciência de que estavam apenas no início de uma segunda travessia — aquela pela terra.

De Niterói, seguiram para Vitória, onde foram acolhidos na Hospedaria da Pedra d’Água. Dali, a jornada tornou-se mais íntima e mais selvagem. Em canoas estreitas de até dezesseis metros, cortaram rios que serpenteavam por uma mata densa, com o sol filtrando-se em feixes dourados pelas copas altas. Mosquitos zuniam incessantemente, e a umidade impregnava roupas e pele. Em cada parada, precisavam acender fogueiras para afugentar animais e aquecer a comida.

Em Cachoeiro de Santa Leopoldina, a terra firme trouxe alívio e novos desafios. As trilhas até Santa Teresa eram ladeadas por vegetação cerrada, e o calor constante exauria forças. Finalmente, em Santa Joana, quinze famílias italianas — incluindo os Bellani — escolheram o ponto onde fincariam raízes. Árvores centenárias caíram sob machados e serras, clareiras foram abertas e as primeiras casas de madeira erguidas. O solo fértil prometia colheitas, mas também exigia um trabalho diário que começava antes do nascer do sol e terminava sob a luz das lamparinas.

Vittore, o primogênito, amadureceu rapidamente naquele cenário. Aos vinte e cinco anos, uniu-se a Angela Betti e se estabeleceu em Bananal, alternando entre a agricultura e o comércio de terras. Comprava e revendia lotes, sempre na esperança de consolidar um patrimônio que protegesse sua família de tempos ruins.

Mas o comércio sobre lombos de asno tornou-se sua marca. Saía em pequenas caravanas carregadas de sacas, muitas repletas de pimenta — produto que os imigrantes raramente usavam, mas que os brasileiros valorizavam. A estrada até Vitória era longa e exigente, cruzando pontes improvisadas, subindo serras e enfrentando chuvas que transformavam o chão em lama profunda.

Suas rotas mais ousadas levavam-no até Taquaral, onde era preciso atravessar territórios indígenas. Vittore levava consigo facas de aço, tecidos coloridos, espelhos pequenos e outros presentes simples, mas valiosos, que entregava como sinal de respeito. Esses gestos garantiam que a viagem prosseguisse sem violência, um pacto silencioso firmado à sombra das árvores.

Os anos avançaram, e o sonho de regressar à Itália permaneceu aceso. Mas a cada safra perdida, a cada imprevisto, as economias evaporavam. Angela lhe deu doze filhos, e cada um deles cresceu respirando o ar quente e denso do Espírito Santo, aprendendo a trabalhar a terra e a enfrentar a vida com a mesma tenacidade do pai.

Em 1952, já com o corpo gasto e a voz fraca, Vittore partiu sem jamais ter revisto os campos dourados da Lombardia. Seu retorno nunca aconteceu, mas a sua história — e a de Lorenzo — ficou inscrita nas colinas e vales que ajudaram a desbravar. As raízes que plantaram cresceram fundo, sustentando gerações sob o céu ardente do Espírito Santo.


Nota do Autor

Esta história é uma reconstituição de vida e coragem daqueles que, deixando sua terra distante, trouxeram no coração as lembranças, a língua e os costumes da família. Foi escrita para manter viva a memória dos que atravessaram o mar e a mata, e que, com seu trabalho e sua fé, lançaram novas raízes em solo brasileiro. Cada nome, cada acontecimento, é uma forma de agradecer a quem nunca se esqueceu de onde veio e deixou para nós uma história de suor, perda e esperança.

Dr. Piazzetta





terça-feira, 27 de fevereiro de 2024

Legado de Esperança: 150 Anos da Imigração Italiana nas Terras Brasileiras


 

A história da imigração italiana no Brasil revela um marco significativo que remonta ao desembarque, em 17 de fevereiro de 1874, do navio "La Sofia" no porto de Vitória. A bordo, 388 imigrantes italianos, recrutados pelo empresário italiano Pietro Tabacchi, desembarcaram para se integrar ao empreendimento da fazenda "Monte das Palmas", localizada em Santa Cruz. Parecia uma grande oportunidade para eles, que deixavam para trás um país recém unificado, repleto de problemas, onde o desemprego e até a fome rondava os lares nas zonas rurais. Contudo, as expectativas do grupo de uma vida melhor e prosperidade rapidamente desvaneceram, dando lugar a descontentamentos e insurgências. Diante disso, uma parte desses italianos optou por migrar para as colônias oficiais na Região Sul, enquanto outros acolheram a oferta do Governo do Espírito Santo para estabelecer-se na "Colônia Imperial de Santa Leopoldina", direcionados ao Núcleo de Timbuhy, hoje situado no município de Santa Teresa.

Nos registros do Arquivo Público do Estado do Espírito Santo, encontra-se uma grande quantidade de documentos que atestam este notável evento histórico. Entre estes documentos, destaca-se um ofício datado de outubro de 1874, assinalando a presença de imigrantes na área. Neste contexto, emerge um apelo por indenização apresentado por Francesco Merlo, colono que, em 28 de outubro de 1874, dirigiu-se ao Presidente da Província reivindicando o reembolso das despesas incorridas durante a jornada da Itália à Colônia de Nova Trento, totalizando 122 Fiorins, montante não ressarcido pelo contratante. Este episódio catalisou a promulgação da Lei nº 13.617, oficializando Santa Teresa como o berço da imigração italiana no Brasil.

A primeira grande leva de italianos que desembarcou no Espírito Santo foi batizada em homenagem ao empresário responsável, Pietro Tabacchi. Ele já residia na província desde os albores da década de 1850, comerciante astuto soube do interesse do governo imperial em trazer mão de obra da Europa. Ele concebeu a oferta de terras aos imigrantes, em troca do direito de explorar 3,5 mil jacarandás para exportação.

Após intensas negociações, o Ministério da Agricultura consentiu ao contrato com Tabacchi, que então enviou emissários ao Trentino, então sob domínio do império austro hungaro, para angariar famílias dispostas a emigrarem. Assim, em 3 de janeiro, às 15 horas, o navio "La Sofia" zarpou do porto de Gênova. Em 1º de março, a embarcação atracou no porto de Santa Cruz, em direção à propriedade de Tabacchi. Esta expedição marcou o início da migração em massa de camponeses italianos para o Espírito Santo, uma jornada que, porém, revelou-se repleta de decepções, com terras inexistentes e condições de alojamento precárias.

A Expedição Tabacchi inaugurou um fluxo migratório que reverberou além-fronteiras. Agora, os olhares dos agentes migratórios se voltavam para a península itálica, especialmente suas regiões norte e nordeste, de onde multidões partiram rumo a diversos destinos globais, incluindo o Brasil em números consideráveis. A recém unificada Itália deparava-se com desafios monumentais, caracterizada por altas taxas de crescimento populacional, déficit na produção agrícola, criação de novos impostos o que causou perdas de empregos no campo e uma volumosa massa de desempregados. Neste cenário, muitos não tiveram outra escolha do que arranjar uma forma de sair da Itália, tomando rumo em direção aos novos e ricos países do outro lado do oceano carentes de mão de obra. A partir de 1875, as partidas dos transatlânticos de Gênova e de outros portos europeus tornaram-se uma rotina estabelecida e milhões de italianos de norte ao sul abandonavam suas vilas em busca do pão de cada dia que a Itália não conseguia fornecer. Estas ondas de emigrantes atingiram proporções nunca antes vistas, um verdadeiro êxodo, que Deliso Villa em seu livro Storia Dimenticata, compara com a grande fuga dos judeus do Egito relatadas na bíblia.