sábado, 2 de junho de 2018

Os Reservatórios de Água Potável na Veneza da Sereníssima



  

Ao visitarem a cidade de Veneza, um fato interessante que chama a atençao daqueles mais observadores, mas, que poucos turistas se dão conta, é a maneira como faziam os antigos venezianos para obter água potável, se os locais onde viviam, as ilhas, estão cercadas pela água salgada do mar? Perfurar poços, mesmo aqueles profundos, estava fora de cogitação, uma vez que seriam rapidamente preenchidos e contaminados pela água salgada. A solução encontrada foi a construção de um engenhoso sistema de captação da água das chuvas, em grandes cisternas de pedra, então chamadas de poços ou “pozzi”, espalhados pelos vários campos da cidade. Em Veneza, o termo “campo” tem uma conotação bem diferente daquela que conhecemos, refere-se a aqueles espaços públicos, maiores ou menores, localizados entre as contruções e prédios, locais muito semelhantes às praças. Na maioria deles, ainda hoje, podemos  encontrar alguns ainda conservados, pequenas construções de pedra bem trabalhada, que muito se parecem com um nosso antigo poço de água. Estes nada mais são do que a parte visível de uma grande cisterna de pedra construída logo embaixo da calçada, para a captação da água das chuvas. 
Veneza é uma cidade construída sobre as águas e paradoxalmente não tinha água potável para os seus habitantes.  Os “pozzi” de Veneza se distinguiam daqueles de outras partes do mundo porque a água não era obtida de uma vertente profunda e sim, do acúmulo da água da chuva, que era recolhida e filtrada. 
O aprisionamento da água das chuvas foi a solução encontrada para satisfazer as necessidades hídricas dos seus habitantes. A construção de uma cisterna era um processo um tanto complexo. Primeiro era necessário dispor de uma superfície de recolhimento suficientemente ampla em volta da cisterna para fazer convergir a água da chuva. Por esse motivo eram construídas quase que exclusivamente nos “campi”  e naqueles pátios mais amplos.
Essa água que escorria dos telhados ou de plataformas profundas, construídas especialmente para esse fim, era acumulada nas cisternas depois de passar por grandes filtros de areia, necessários para separar as impurezas e torná-la potável. 
Devido a importância dessas contruções para toda a cidade, que deviam ser perfeitas, elas eram afidadas à uma só confraternidade conhecida como dos Pozzieri, filiada a dos pedreiros. Era uma profissão que passava de pai para filho e os inscritos deviam trabalhar exclusivamente na construção das cisternas para uso de Veneza. A construção de uma cisterna era economicamente muito cara, pela complexidade do procedimento, pela quantidade de material utilizado e por dificuldades da própria escavação. Escavar cinco ou seis metros de profundidade em Veneza é dizer trabalhar sob o nível da água da laguna, uma tarefa que requeria, e queainda hoje requerem estruturas especiais de contenção e impermeabilização. 
Esses pozzieram controlados por diversas autoridades do governo da Sereníssima a fim de mantê-los sempre em perfeitas condições e coibir os possíveis abusos no seu uso da parte dos habitantes. Essas autoridades controlavam a construção e a conservação dessas cisternas, assim como a qualidade do precioso liquido. 
Os chamados capi contrada, um tipo de chefe de bairro, custodiavam as chaves das cisternas, as quais somente eram abertas ao público uma ou duas vezes ao dia. Para avisar a abertura faziam soar os sinos dos poços, as chamadas campane dei pozzi
Os “poços”eram de extrema utilidade pública e muitas famílias nobres ou de ricos comerciantes construiam com recursos próprios e fazia a doação para a comunidade. Essa atitude era considerada um ato de benemerência e fortemente estimulada pela Sereníssima. Esta é a razão que em muitos desses poços ainda podemos ver inscrições dos brasões das famílias doadoras.
A parte superior dessas estruturas, que tem a forma de um pequeno poço como conhecemos aqui no Brasil e que vedam o acesso são as chamadas “vera da pozzo”, ou anel de poço, geralmente feitas de pedra de Ístria e sculpidas com decorações e baixo relevos. Elas serviam para tampar perfeitamente toda a estrutura evitando a sua contaminação pela água da chuva que corria nas ruas. Essas construções ainda podemos encontrar pelos “campi” de Veneza e chamam a nossa atençao pela beleza e o rico trabalho de escultura em pedra nelas realizados, muitas vezes trabalho de famosos escultores da época.
Os “poços” nasceram de uma necessidade básica da comunidade e estavam intimamente ligados à vida do dia a dia do cidadão comum de Veneza. As família mais abastadas tinham as suas próprias cisternas na parte interior das suas propriedades, como também o tinham os conventos, todos obrigados por lei da Sereríssima a abrirem algumas horas ao dia para toda a população, pois os poços eram um benefício comum. 
Pela beleza das suas “vere”, essas tampas de cisternas, também serviam como mais um  belo enfeite para a cidade. 

Dr. Luiz Carlos B. Piazzetta
Erechim RS