A Longa Espera dos Rozzo
No inverno de 1878, quando as geadas já haviam queimado as últimas folhas das parreiras e o vento atravessava os vales do Vêneto com um frio cortante, a família Rozzo tomou a decisão que mudaria para sempre a sua história. Pequenos agricultores na encosta pedregosa próxima a Vicenza, viviam de terras emprestadas, onde a colheita mal bastava para pagar o arrendamento e alimentar os nove filhos. A miséria não chegava como uma tragédia súbita, mas como uma visita constante, feita de invernos compridos, verões exaustivos e mesas onde a polenta cozida com algumas ervas era o único alimento disponível e ainda assim dividida em pedaços cada vez menores.
A notícia da emigração corria pelas aldeias como uma esperança silenciosa. Falava-se de terras distantes e desconhecidas, além do oceano, onde o governo brasileiro prometia lotes e liberdade aos colonos. As passagens, subsidiadas pelas autoridades, eram a única possibilidade para famílias como a dos Rozzo, que não possuíam sequer moedas de prata para comprar a farinha do mês. Na primavera seguinte, uma parte da família, o filho Giovanni com a mulher e um filho pequeno embarcaram em Gênova rumo ao desconhecido, com um velho baú de madeira, um crucifixo, algumas sementes e a fé de que a terra nova pudesse oferecer um futuro diferente.
Após a travessia extenuante que durou bem mais de trinta dias, desembarcaram no Rio Grande do Sul, sendo destinados à recém-formada colônia Dona Isabel. A terra era bruta, a mata densa e o isolamento quase absoluto. As casas, erguidas com toras verdes, abrigavam mais frio do que calor. A floresta, embora fértil, não perdoava: exigia anos de trabalho para ceder espaço às lavouras. O esforço consumia os dias, e o calendário se media mais pelo corte das árvores do que pelas datas do almanaque.
Enquanto isso, dois irmãos mais novos de Giovanni Rozzo — Matteo e Pietro — também haviam deixado o Vêneto, mas seu destino fora diferente. Embarcaram no ano seguinte, rumando para o interior da província de São Paulo, onde foram contratados como trabalhadores braçais em uma grande fazenda de café nas proximidades de Campinas. Ali, viviam sob condições árduas, confinados à realidade fechada da fazenda. O único comércio disponível era o pequeno armazém da própria fazenda, onde os preços eram quase o triplo daqueles praticados em Campinas. Essa diferença não era fruto do acaso, mas parte de um mecanismo que garantia ao patrão lucros extras sobre a pobreza de seus empregados. As compras — farinha, sal, querosene, um pedaço de toucinho — eram registradas em cadernos amarelados, e o acerto de contas acontecia apenas na época do pagamento, quando o saldo, quase sempre, ficava no vermelho.
A comunicação com outras localidades existia, as distancias entre as cidades menores, mas ainda era bastante precária. Havia, de fato, um acesso um pouco melhor aos correios do que nas colônias isoladas do sul, mas o sistema era frágil e permeado por desonestidade. Muitas cartas, sobretudo as que carregavam pequenas quantias de dinheiro, desapareciam no caminho e jamais chegavam ao destino. As notícias, quando vinham, já traziam o sabor amargo da demora, misturando-se à incerteza e ao silêncio que separava famílias por anos a fio.O Brasil, contudo, era imenso, e a distância entre as duas realidades era mais do que geográfica: era também um abismo de informação.
Os primeiros anos em Dona Isabel foram mergulhados num silêncio denso, quase mineral. O mundo parecia terminar nas bordas da mata fechada, e qualquer sinal vindo de fora era raro como ouro. As cartas, quando existiam, precisavam ser levadas a pé até a sede da colônia, a vários quilômetros de distância, por trilhas enlameadas no inverno e cobertas de pó no verão. Mesmo quando finalmente alcançavam o correio, não havia garantia de chegada: muitas se perdiam no caminho, extraviadas por descuido ou simplesmente esquecidas em algum depósito improvisado.
O isolamento não era apenas geográfico, mas também humano. Giovanni desconhecia completamente que Matteo e Pietro estavam nas terras paulistas. As estações se sucediam como páginas de um mesmo livro sem novidades: a primavera chegava com suas promessas, o verão com seu calor opressor, o outono com o aroma das uvas esmagadas, e o inverno com sua resignação silenciosa — mas nenhuma carta trazia notícias.
A vida naquela região isolada era um esforço contínuo contra a solidão e a natureza bruta. Os vizinhos mais próximos viviam quase um quilômetro de distância, e no início cada encontro era um acontecimento.Os filós e as festas religiosas, realizadas em capelas simples de madeira, eram mais do que momentos de fé: tornavam-se o único elo social, ocasiões para partilhar bênçãos e murmúrios. Nelas, os nomes de parentes e conhecidos distantes eram sussurrados como quem tenta chamar de volta vozes desaparecidas, mas nenhum deles trazia notícias concretas.
O tempo passava pesado, medido não pelo calendário, mas pela abertura de clareiras, pela colheita das primeiras videiras e pelo crescimento lento dos filhos. No fundo das arcas, junto aos poucos objetos trazidos da Itália, permanecia a esperança de um envelope, de um pedaço de papel que rompesse aquele silêncio imenso e dissesse que, em algum lugar, os Rozzo ainda eram lembrados.
Anos depois, uma reviravolta inesperada aconteceu. Maria Rozzo, irmã mais velha, que havia emigrado para os Estados Unidos com o marido, estabeleceu-se em uma comunidade ítalo-americana em Illinois. Lá, o acesso às comunicações era melhor, e por intermédio de outros conterrâneos que mantinham vínculos com brasileiros e argentinos, chegou aos seus ouvidos a existência de Matteo e Pietro, vivos e estabelecidos em Campinas.
Maria iniciou um esforço incansável para restabelecer o contato. Cartas atravessaram oceanos e fronteiras, demorando meses para ir e voltar. No entanto, quando finalmente a notícia chegou às mãos de Giovanni, já em Bento Gonçalves, mais de uma década havia se passado desde a separação. O reencontro físico nunca se realizou, pois as distâncias, a idade e as dificuldades econômicas tornavam a viagem impossível.
Ainda assim, a troca de cartas e alguma fotografia esparsa reacendeu o elo familiar. Os Rozzo de Bento Gonçalves passaram a saber das colheitas de café em São Paulo; os Rozzo paulistas ouviam falar das videiras que finalmente davam fruto no sul. Maria, nos Estados Unidos, tornou-se o ponto de ligação invisível, o fio frágil que unia três mundos separados pelo Atlântico e pela vastidão do Brasil.
A história dos Rozzo foi uma de milhares de famílias italianas: partidas marcadas pela esperança, desencontros selados pelo isolamento, e reencontros possíveis apenas pela palavra escrita. No silêncio das cartas que ainda sobrevivem, guardadas em arcas antigas, permanecem a saudade e a certeza de que a emigração, mais do que mudar destinos, moldou gerações inteiras com a marca indelével da distância.
Nota do Autor
Escrever A Longa Espera dos Rozzo foi mais do que reconstruir uma narrativa histórica — foi um exercício de escuta. Escuta das vozes que, há mais de um século, partiram das aldeias silenciosas do Vêneto com a coragem de quem se despede sem saber se haverá reencontro. Escuta das cartas que atravessaram oceanos e fronteiras, carregando, em poucas linhas, todo o peso da saudade e da esperança. Escuta, enfim, dos silêncios — esses que se estendem entre uma notícia e outra, entre uma despedida e uma resposta que talvez nunca chegue.
A história dos Rozzo é fictícia, mas é também real em cada detalhe. Ela ecoa o que tantas famílias viveram: irmãos separados por milhares de quilômetros, pais que envelheceram sonhando com um abraço que nunca veio, mães que esperaram notícias até o último dia. É a história de todos os que deixaram para trás uma terra pobre, mas carregada de afetos, e encontraram no Brasil e em outras partes do mundo um novo lar — nunca totalmente separado do antigo.
Dedico esta história aos descendentes dos imigrantes italianos, que herdaram não apenas sobrenomes, mas também memórias feitas de distâncias. Que esta narrativa seja, para cada um, uma ponte imaginária que une de novo os Rozzo dispersos — e, junto deles, tantas outras famílias que o tempo separou, mas que a história insiste em reunir.
Dr. Luiz C. B. Piazzetta
Nenhum comentário:
Postar um comentário