O dia, já não me recordo bem, mas seguramente foi algumas semanas após a minha chegada em Barão de Cotegipe, em 30 de setembro de 1969. Tudo nesse local era diferente e muito estranho para mim. Ainda não conhecia quase ninguém, os costumes locais e principalmente os modos de falar das pessoas, as suas gírias, muito diferentes dos paranaenses. Era uma noite fria de fim de inverno; estávamos na primavera, mas ainda fazia muito frio e chovia muito há vários dias, como acontece frequentemente por estas bandas durante este período. O rio Uruguai, que não ficava muito longe, já estava cheio, transbordando muitos metros acima das margens. O vento era forte, e o minuano ainda teimava em se fazer ouvir pelas frestas da janela do pequeno apartamento, situado na parte de trás da bonita capela do hospital São Vicente de Paulo, local onde então eu morava quando solteiro. Era perto das 23 horas, e eu já me preparava para deitar, pois o dia seguinte seria de muito trabalho; eu deveria acordar cedo para começar uma cirurgia programada às seis horas. Foi quando ouvi distante, insistentes toques na campainha do hospital, seguidos de fortes batidas na porta de ferro da entrada, um barulho que eu estava começando a me acostumar e que ainda deveria ouvir por muitos anos. O barulho era misturado com batidas de palmas e gritos de ao menos duas vozes masculinas, chamando: "doutor! doutor!" Esse tipo agitado de despertar, a qualquer hora da noite, foi se tornando rotina para mim, e aos poucos fui me acostumando. Os dois homens que chegaram tinham vindo numa camioneta rural Willys, veículo muito em moda nas cidades do interior naqueles anos. Estava toda coberta de barro, com os vidros laterais e traseiros totalmente escurecidos pela lama. Quando fui chamado pela enfermeira de plantão, já estava me preparando para ir ver o que estava acontecendo. Após se identificarem, os dois homens, demonstrando muita ansiedade, explicaram quase juntos o motivo daquela visita. Fiquei então sabendo que um deles era o pai de uma criança acidentada naquela mesma tarde, quando, junto com a mãe, estavam levando a forragem para a criação, no potreiro, que ficava logo atrás da casa da família. Mesmo com toda aquela chuva e frio, era necessário providenciar o sustento para os poucos animais que criavam, especialmente para a valiosa e tão necessária junta de bois, que os ajudava nos trabalhos pesados da lavoura. O outro recém-chegado, que eu também ainda não conhecia, era o dono da casa de comércio da localidade onde aquela família morava e que, como possuía veículo próprio, sempre fazia corridas para ajudar os vizinhos, como se fosse um táxi, pois, esses ainda não existiam na cidade. Contou o pai que a sua filha caçula tinha sofrido um acidente e morrido esmagada, após ter sido atingida por “alguns paus de lenha”. Queria o atestado de óbito para poder enterrá-la no cemitério da localidade, já naquela manhã. Eu ainda não conhecia as pessoas e os costumes locais, fiquei muito desconfiado daquele acidente. Como ainda fazia pouco tempo que eu estava morando em Cotegipe, não conhecia muito bem os termos gaúchos e modos de falar dos locais, uma mistura de palavras em português, espanhol e dialeto vêneto. Não podia eu acreditar que "alguns paus de lenha" pudessem causar a morte de uma criança. Até então eu só conhecia paus de lenha cortados para fogão! Assim, rapidamente me aprontei para ir com eles fazer a verificação do óbito, passando antes na casa do delegado da cidade, para pedir que viesse junto comigo. Vindo de uma cidade bem maior, com mais malandragem, eu era muito desconfiado. Acreditava que naquele caso pudesse ter havido alguma forma de maus tratos a menores ou poderia mesmo estar ocorrendo a ocultação da real causa da morte daquela criança. Após mais de uma hora de cansativa viagem, por estradas cada vez mais estreitas, escuras e tortuosas, muito enlameadas e escorregadias, repletas de buracos, chegamos à casa da família enlutada. Estava tudo muito escuro, devido à noite de chuva e pela total falta de luz elétrica, uma comodidade que, naqueles tempos, somente a sede do município contava. Atravessada a porteira, mesmo ao longe da porta de entrada da pequena e muito pobre casa de colônia, já se ouviam os rumores tristes das orações e dos cânticos de encomendação, cantados em idioma polonês, e em voz alta recitados pelos presentes. Ao entrar na pequena sala, nos deparamos com uma cena muito difícil de esquecer e que me acompanha até os dias de hoje, apesar de mais de cinquenta anos já terem se passado.
A casa era toda construída com tábuas largas de madeira de pinho, sem pintura, e espalhadas pelas paredes do principal cômodo, estavam dispostas algumas imagens de santos e duas ou três fotografias antigas de família, coloridas à mão, colocadas em armações também muito antigas e já um pouco desgastadas pelo tempo. A única luz naquele aposento provinha de um pequeno lampião à querosene, que ao queimar, além da fumaça negra, também deixava no ar um cheiro penetrante e característico. Em cima de uma mesa retangular de madeira, certamente a mesma que usavam para fazer as refeições diárias, estava colocado um pequeno e rude caixão de madeira. Creio que tenha sido confeccionado por eles mesmos, muito tosco e todo pintado de branco, circundado por flores naturais de vários tipos e cores. Quatro pequenas velas acesas, colocadas nos quatro cantos daquele pequeno caixão, compunham aquela triste cena. Dentro deste caixãozinho branco, cercada de tecido branco e pétalas de flores amarelas, estava deitada a criança falecida. Muito branca, pálida e com algumas manchas escuras, muito evidentes, na face e no pescoço, apesar da pouca luz do ambiente.
Era uma garotinha loira, magrinha, muito bonita, com apenas três ou quatro anos de idade. Ao seu redor se amontoavam algumas crianças, de várias idades e tamanhos, todas descalças, que choravam muito. Eram todas loirinhas como a pequena Elisabete, este era o seu nome. Eram os irmãos e irmãs da pequena falecida, os quais, com muita dor, se despediam da irmãzinha que se foi.
A mãe, os avós maternos, junto com um grupo de vizinhos, compunham um lúgubre e desafinado coro que entoava aquelas ladainhas fúnebres, todos colocados em torno daquela pequena mesa mal iluminada. A cena era realmente muito comovente, nos deixando com os olhos marejados. Depois de examinar a pequena vítima, ainda dentro do seu pequeno caixão, que lembrava mais um berço, ouvimos as explicações do ocorrido do pai, da mãe e de outros familiares. Pedimos então para ver o local do acidente e logo fomos conduzidos para a parte posterior da casa, no pequeno e lamacento potreiro, perto do estábulo. Ali, com as lanternas de pilhas que tínhamos trazido, pudemos logo identificar um amontoado de compridas e grossas toras de madeira, espalhadas em várias direções, que tinham deslizado de uma formação maior, que antes formava uma alta pilha. Aqueles "paus de lenha", como eles diziam, estavam estocados e já tinham sido vendidos para uma serraria. Apenas estavam aguardando o cessar das chuvas, para serem transportados para a sede de Cotegipe. Se as causas do desmoronamento foram as chuvas dos últimos dias, que encharcaram o solo e também as toras ou, talvez, porque a pilha não tenha sido bem feita, faltando um escoramento mais firme, não sabemos. Não estávamos ali para encontrar possíveis culpados, os quais, se existiram, já tinham sido demasiadamente punidos com a morte daquela criança. Não preciso dizer que o nosso retorno foi muito triste, todos calados, melancólicos, pensando nas cenas de dor daquela família e, principalmente, naquela linda garotinha deitadinha, como se ainda estivesse dormindo, no seu caixãozinho branco. Muito triste mesmo.
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