As crianças enjeitadas eram conhecidas na França pela expressão "l’enfant trouvé", literalmente, a criança encontrada, que designava um recém nascido de filiação desconhecida. Na Itália, a palavra usada com esse mesmo sentido era "trovatelli", literalmente, quero dizer "encontradinhos". Enquanto, nos países de língua portuguesa, conhecemos simplesmente por crianças abandonadas, expostas ou enjeitadas. No registro civil desses países, no entanto constava a expressão filho ou filha de pais incógnitos ou desconhecidos, ou filho natural ou ainda mais antigamente a expressão filho bastardo. Era, assim, um estigma que acompanharia essas crianças por toda a vida e, o sobrenome inventado e imposto passava para os seus herdeiros. Esses sobrenome traziam por toda a vida à memória “as condições de seu nascimento”. No começo eram sobrenomes fáceis de serem reconhecidos. como o nome de santo. Outros sobrenomes tinham caráter genérico, como Champi (encontrado num terreno) ou Trouvé (Encontrado), por exemplo. Nos nomes dados a crianças enjeitadas, alguns chegavam a ser chocantes, constituindo para os descendentes uma herança penosa.
Bilhete com fita em Portugal
Na Itália, não foi muito diferente. As crianças abandonadas, de modo geral, eram deixadas nas ruas, nas portas de igrejas ou de casas de famílias, nas entradas de Institutos de Caridade, em portas de hospitais, nas rodas de expostos dos orfanatos, igrejas ou ordens religiosas. Os nomes eram escolhidos pelas pessoas prepostas às funções de administração dessas casas ou, algumas vezes, eram determinados e impostos pelo próprio tabelião no momento de efetuar o registro de nascimento. As crianças enjeitadas frequentemente eram colocadas na Ruota degli Esposti ou Ruota dei Trovatelli. Essa Roda giratória existente nos orfanatos e em certos edifícios de ordens religiosos era destinada a receber anonimamente as crianças abandonadas. Muitos desses sobrenomes impostos foram preservados e chegaram até o Brasil com a imigração italiana. Eles hoje são uma dor de cabeça para aqueles que estão buscando o reconhecimento da cidadania italiana ou organizando a própria árvore genealógica, pois, com frequência não encontram os documentos exigidos.
Muitas vezes as crianças abandonadas pela mãe traziam junto algum bilhete solicitando um nome específico ou o batismo para a criança, como no bilhetes acima. Em outras ocasiões deixavam como identificação, junto ao bebê, uma metade de uma moeda, de uma imagem ou mesmo de uma fotografia, para poderem mais tarde serem encontradas confrontando as duas metades. Em muitas ocasiões, nos casos de pais ou mães de famílias de maior poder aquisitivo, as crianças vinham acompanhadas de uma jóia com brasão de família, ou uma jóia quebrada na metade, além de um rico enxoval. Em todos os orfanatos os objetos e elementos indicativos que vinham com o bebê eram rigorosamente catalogados e guardados em arquivos construídos para esse fim. Muitos foram os expostos que mais tarde puderam encontrar a sua família legítima. Todos as crianças que não traziam indicação de terem sido batizadas, principalmente aquelas mais fracas e debilitadas, eram batizadas de imediato, para evitar que alguma falecesse sem receber este sacramento. Na certidão de batismo constava a data de batismo, a igreja onde foi batizada, o nome que lhe foi dado e quem foram os padrinhos. Sendo desconhecida a família natural, o batismo também permitia aos expostos receber uma outra “família”: os padrinhos.
Em muitos orfanatos à todos os expostos era atribuído um número. Este e outros elementos identificativos essenciais eram gravados numa chapa de chumbo que ficaria suspensa ao pescoço da criança. Esta chapa era designada de colar. De acordo com o referido regulamento, haveria em cada orfanato, bem como em órgãos municipais, um alicate próprio, geralmente timbrado em alto relevo para apertar e imprimir os selos nos colares das crianças. Estes selos ou lacres eram a garantia para evitar a possível troca de crianças. Todos os expostos tinham um livreto e eram matriculados. Da matrícula constavam dados como a data em que foi apresentada a matrícula, sexo da criança, descrição dos sinais, hora, dia e mês em que foi encontrada, nome e local de moradia de quem a encontrou, descrição dos objetos que vieram com ela, número do selo que lhe foi colocado ao pescoço, a data em que foi batizada, nome dos padrinhos, nome que foi dado à criança, nome da ama definitiva, número de registro da ama e moradia, número do livreto e por vezes a data de falecimento.
A sobrevivência dos recém-nascidos abandonados, encontrados com vida, dependia da disponibilidade nem sempre fácil de amas de leite que os amamentassem. Entre as muitas obrigações impostas às amas estavam: ter de lhes dar um bom tratamento, fazê-los vacinar; apresentá-los ao médico, sempre que os mesmos adoecessem, fazerem-se acompanhar dos expostos quando viessem receber os salários e apresentá-los nas revistas gerais ou, em casos de força maior, como alternativa, devia trazer um atestado assinado pelo pároco, declarando que estavam vivos e bem criados, sob pena de lhe serem recusados os respetivos pagamentos; mandá-los à escola caso completassem 7 anos e em caso de falecimento, apresentar a criança ao médico para passar o respectivo atestado de óbito. Às amas era também atribuído um livreto, onde para além de outras informações, eram registados os seus vencimentos.
Para os expostos que tinham a sorte de sobreviver após serem admitidos no orfanato eram entregues à amas de leite, e depois da criação pela referida ama, as crianças passariam para a ama seca até fazerem 7 anos. A partir desta idade passariam para os cuidados outros órgãos públicos municipais, federais ou instituições religiosas até completarem os 18 anos. Durante esse período eram devidamente alfabetizados e aprendiam uma profissão ou um ofício, os meninos mais fortes passavam a trabalhar como aprendizes em diversas oficinas de artesãos, que ofereciam vagas para ajudar o trabalho das ordens religiosas. As meninas e os meninos mais franzinos ou doentes aprendiam trabalhos manuais e muitos deles encaminhados para seguir a vida religiosa. Tanto os meninos como as meninas que tinham dom para as artes, como a música e o canto, eram matriculados para fazer estágios com compositores e maestros famosos para a sua devida preparação artística. Em muitos orfanatos, como por exemplo em Veneza, essas crianças que tinham pendor artístico, depois de serem devidamente educadas e preparadas, se apresentavam publicamente em recitais e o lucro da venda dos bilhetes destinada à manutenção do orfanato que os tinham adotados.
Na Itália do século XVIII, era comum que os sobrenomes dados às crianças encontradas fossem genéricos e compartilhados com outras crianças na mesma situação. No entanto, em algumas regiões da Itália, havia sobrenomes que eram exclusivos para crianças encontradas ou abandonadas. Aqui estão alguns exemplos:
Trovato - "encontrado"
Esposito - "exposto"
Proietti - "lançado"
Sgariglia - "andarilho"
Troiano - "troiano" (referência a Troia)
Egidi - "filho de Giles"
Voltaggio - "volta à estrada"
Oliva - "azeitona"
Pace - "paz"
De Santis - "do santo"
Diotallevi - "Deus nos ajude"
Acquaroli - "pequena água"
Corazza - "armadura"
De Carolis - "do Carlos"
Dragoni - "dragões"
Genovesi - "de Gênova"
Leone - "leão"
Marcantoni - "Marcos Antônio"
Paci - "paciência"
Pirozzi - "pimenta"
É importante lembrar que esses sobrenomes exclusivos não eram universais na Itália e podem ter sido limitados a certas regiões ou instituições que cuidavam de crianças encontradas. Além disso, muitas vezes esses sobrenomes eram alterados posteriormente à medida que informações adicionais sobre a origem da criança se tornavam conhecidas.
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