domingo, 8 de novembro de 2020

Dramáticos Relatos dos Emigrantes Italianos




Nos últimos anos do século XIX e até perto da primeira guerra no século XX, quando a grande emigração de italianos ocupava as manchetes dos jornais da Itália, a maioria a bordo daqueles precários navios era constituída principalmente de agricultores e artesãos, gente pobre, que buscava melhores oportunidades de vida do outro lado do desconhecido oceano, enfrentando com estoicismo desafios nunca pensados. 
Quase sempre era a miséria e a falta de perspectivas de uma vida digna na terra natal, que empurrava os mais pobres a cruzarem o oceano. 
Em cartas de camponeses vênetos que emigraram para o Brasil, nos últimos anos do século XIX, as suas referências à travessia do oceano geralmente se limitavam a algumas notas breves. Só quando as condições enfrentadas tinham sido particularmente difíceis, como os frequentes temporais, a falta de alimentos, as epidemias e as  mortes ocorridas a bordo, é que as viagens são mencionadas nas correspondências familiares. A descrição da longa travessia que faziam em suas cartas, muitas vezes era somente pouco mais que uma abertura que antecede a narração da chegada ao destino. 



A viagem até o porto de embarque já era por si só um enorme  desafio para essas pessoas humildes, a maioria analfabetos, que jamais na vida tinham saído das suas vilas natais. Para uma grande parte delas era uma longa e cansativa jornada, desde as suas casas, enfrentada a pé, em carroças e trens, com paradas em várias cidades. Em uma das cartas, datada do final do século XIX, escrita logo após o embarque em Gênova, um emigrante refaz dia a dia, as etapas da viagem para chegar até ali o porto de partida. Ele nos relata que, desde a saída de sua casa até o embarque, passaram-se mais de vinte dias. Chegou ao porto alguns dias antes do embarque, seguindo os conselhos fornecidos pelos agentes de viagem. Em muitas ocasiões esses agentes estavam mancomunados com comerciantes e albergadores, vizinhos ao porto, deixando aquela massa de infelizes nas mãos de trapaceiros e especuladores de todo o tipo que, despudoradamente, roubavam o pouco que possuíam, normalmente algum dinheiro economizado com sacrifício para enfrentar a vida na nova terra, ou ainda o resultado da venda dos poucos bens que se desfizeram antes de partirem. Em determinados períodos esse verdadeiro saque chegou a ser até motivo de matérias de jornais de Gênova, contando o que se passava no meio daqueles pobres italianos que deixavam o país. Um pouco mais tarde a própria igreja tomou conhecimento desses fatos, com a intervenção de Mons. Scalabrin, que mandou para Gênova um dos seus sacerdotes, para acompanhar a situação dos imigrantes e tentar protege-los daqueles aproveitadores. Depois disso, com a responsabilização das companhias de navegação, a situação melhorou bastante. 



Em uma outra carta, um imigrante vêneto narra que "...partiram da vila natal ainda escuro, muito cedo da manhã, em um grupo de 31 pessoas, entre homens, mulheres e crianças. A travessia pela vila foi feita a pé e em carroças com as crianças, os mais velhos e os baús, com os seus poucos pertences que seriam úteis na nova terra. Durante o trajeto ouviam o som das badaladas do sino da pequena igreja, que tocava em tom de grave, como no falecimento de uma pessoa. Olhavam para trás e davam o último adeus de despedida a pequena vila que os viu nascer e crescer. Se dirigiam à estação ferroviária, que ficava em um município vizinho, distante quase vinte quilômetros, e que mesmo assim poucos do grupo a conheciam. A espera do trem e os preparativos para o embarque deixava todos excitados, com as crianças chorando amedrontadas com todo aquele movimento que não entendiam. A viagem de trem também deixou a todos do grupo muito apreensivos, pois, a maioria deles nunca tinha viajado na vida. O trem com destino a Gênova, tinha um longo caminho a percorrer e durante a viagem tiveram que fazer uma baldeação para trocar de trem. A composição parava em todas as estações que tinha pelo trajeto e em cada uma delas se repetiam as mesmas cenas, com o embarque de novos passageiros; eram grupos de famílias que também emigravam e tinham o mesmo destino. Chegaram ao porto de Gênova, com alguns dias de antecedência para o embarque no navio que os levaria para o tão sonhado Brasil. Estavam muito cansados e a comida que tinham trazido já estava acabando. Na estação, ao desembarcarem do trem, foram cercados por um enxame de agentes de restaurantes, pensões e pousadas, que se localizavam vizinhas ao porto, oferecendo os seus serviços e exagerando as vantagens de um e de outro. Muitos dos que tinham chegado até ali, não tinham qualquer dinheiro para se permitir um alojamento e nem mesmo um pequeno restaurante. Ficavam amontoados nas ruas próximas ao cais, enfrentando a chuva e o vento, sem que as autoridades locais providenciassem uma solução. Realmente era um quadro bem triste, o retrato da miséria na sua maior expressão. Depois de três dias de angustiosa espera chegou finalmente a data do tão esperado embarque. A subida a bordo foi feita lentamente, sem muita organização, no meio de muitos gritos e imprecações dos tripulantes. Estavam todos com muito medo, mas, também com o coração cheio de esperança e fé no futuro. Uma vez instalados nos porões do navio, distribuídos em grandes salas com capacidade para umas 300 pessoas,  tendo distribuídos em fileiras, pequenos beliches de madeira, os homens e os meninos maiores eram separados das mulheres e das demais crianças, as quais ocupariam outras acomodações semelhantes localizadas na proa do velho barco. Eram geralmente navios com muitos anos no mar, usados para o transporte de mercadorias, alguns até de carvão, e adaptados às pressas para acomodar aquela carga humana, a nova riqueza para as companhias de navegação. A bordo não existiam instalações sanitárias e a água era muito racionada. Alguns baldes de madeira nos cantos, distribuídos entre as fileiras de beliches, serviriam como vaso sanitário para as necessidades fisiológicas dos passageiros, mas, também para quando surgissem os vômitos, onde jogariam para fora a comida recebida. A maioria dos passageiros sofria duramente de enjôo provocados pelo balanço contínuo do navio, causado pelo movimento das grandes ondas. A temperatura nos porões não era o único fator que tornava irrespirável o ar nos dormitórios, também o vapor d'água, a umidade e o gás carbônico resultado da respiração de tantos passageiros amontoados, o odor dos produtos tóxicos que são  gerados da secreção dos corpos mal lavados, das roupas sujas de crianças e às vezes de adultos, da urina e fezes nos baldes colocados nos cantos dos grandes quartos onde ficavam confinados"
Segundo descreveu um médico de bordo: "...a sensação de repugnância que se tem ao descer a um porão onde dormiam os emigrantes é tal que, vivida apenas uma vez, nunca mais é esquecida".  
Continuado com o relato do mesmo emigrante vêneto:  "...animais grandes e pequenos eram mantidos vivos em alguns improvisados cercados, para serem abatidos durante a viagem e servirem de alimento para todos a bordo. Nos traziam comida nos beliches, quase sempre de má qualidade, em pequenas marmitas individuais. O navio balançava muito, comíamos e vomitávamos tudo, mas, comíamos da mesma forma. Entre os passageiros tinha gente de várias províncias da Itália: meridionais, toscanos, lombardos e vênetos, que eram a maioria. Durante toda a viagem tivemos somente uns dois dias de tranquilidade, os demais passamos com muito medo devido as tempestades frequentes que faziam as ondas escalar o navio. Em uma dessas grandes tempestades, já no meio da viagem, quando nos parecia que o nosso fim tinha chegado, o próprio capitão veio até o nosso grande quarto e gritou que se ouvíssemos uma corneta tocando, deveríamos saltar para fora do barco e que se salvasse quem pudesse. Imaginem com ficamos!" 




Ainda nos primeiros vinte anos do século XX, as companhias marítimas, principalmente as italianas, utilizavam navios impróprios para o transporte de tantos emigrantes: eram muito antigos, com poucos requisitos de segurança, e tinham velocidade limitada. Além disso, o número de emigrantes embarcados era geralmente excessivo em comparação com os espaços disponíveis no navio, colocavam mais gente do que seria recomendado. Mas, não queriam perder o frete daquela então chamada tonelada humana. 
A liberdade de emigrar foi reconhecida pelo governo italiano com a lei de 1888, ano da primeira intervenção oficial. Portanto, em 1892, na Itália, já havia cerca de 30 agências de emigração e cerca de 5.172 subagentes que trabalhavam para convencer aqueles desamparados a partirem. Os agentes eram contratados por empresas de emigração e muitos deles eram conhecidos pela falta de honestidade. Por trás da emigração estava em primeiro lugar os interesses financeiros dos armadores e das companhias marítimas italianas.  





Entre os anos de 1875 e 1910 deixaram a Itália cerca de 8 milhões de emigrantes em busca de melhores condições de vida, enfrentando uma longa, desconhecida e perigosa viagem. Os destinos preferenciais nesse período eram os Estados Unidos, Argentina e Brasil. O grande êxodo não foi impedido pelas autoridades italianas, pelo contrário, foi até incentivado, pois viam nele, com a saída de milhões de  cidadãos, uma necessária válvula de escape para resolver os graves problemas sociais do país e assim evitar uma possível revolução. 
Os portos mais profundamente envolvidos com a grande emigração foram os de Gênova, Livorno e Nápoles. 
Segundo dados oficiais, no período entre 1880 e 1924 entraram no Brasil cerca de 3,6 milhões de imigrantes, sendo que os italianos representaram 38% desse total. Os vênetos eram a maioria, seguidos por lombardos e trentinos (tiroleses), que se dirigiram para os estados da região sul do Brasil, principalmente Rio Grande do Sul, o qual recebeu o maior contingente, e para os estados de São Paulo, Espírito Santo e Minas Gerais. 

Dr. Luiz Carlos B. Piazzetta
Erechim RS