No Limite do Mundo
A Grande Travessia de Angelo Dal Bianco
Sospirolo, 1880.
O sol da manhã escorregava lentamente entre as picos das Dolomitas, iluminando a pequena localidade de Mis com uma luz tênue e trêmula. As casas de pedra, cobertas de telhas vermelhas, pareciam adormecidas, e o rio Mis corria pelos campos como uma fita prateada, trazendo consigo o perfume do musgo e das florestas vizinhas. Ali nascera e crescera Angelo Dal Bianco, filho de camponeses como tantas gerações antes dele. Cada pedra do caminho, cada árvore nos bosques, cada margem do rio estava gravada em sua memória.
Com vinte e oito anos, Angelo compreendeu que o tempo de permanecer ali havia passado. A terra que conhecera desde menino já não era suficiente para alimentar sua família, e as promessas do Reino da Itália de prosperidade eram apenas palavras vazias para quem vivia nos vales e montanhas, sob o peso crescente de impostos e da fome.
Casado com Maddalena desde os dezoito anos, Angelo via na esposa a força silenciosa que sustentava a família. Maddalena também nascida na mesma localidade tinha as mãos firmes e olhos claros, reflexo das águas do Mis. Juntos tinham dois filhos: Tiago, alegre e curioso, e Francesco, mais introspectivo, que seguia os passos do pai pelos bosques, aprendendo a distinguir os sons do vento e da água. A vida deles era feita de gestos repetidos, de sacrifícios silenciosos e de esperas pacientes. Após a queda da velha república vêneta e a tumultuada unificação da Itália as antigas terras da Sereníssima haviam mudado. A terra era frágil; inundações e a fome haviam destruído famílias inteiras e a desesperação estava em todos os lares, especialmente aqueles de montanha que sempre viveram de uma cultura de subsistência. Angelo sentia o chamado de um mundo distante, onde as terras eram vastas e a vida prometia um futuro que ali não existia mais.
A decisão de partir não foi imediata. Prepararam o que podiam levar: poucos roupas, utensílios essenciais, sementes colhidas dos campos, que Maddalena guardava como relíquias, prontas para florescer em terra estrangeira. O adeus a Mis foi silencioso, envolto em lembranças. Angelo caminhou à beira do rio, deixando para trás o eco dos sinos da pequena igreja de Santa Giuliana e o sussurrar das árvores, enquanto Maddalena, abraçando os filhos, fitava as estrelas, buscando consolo entre o céu de casa e o horizonte desconhecido que os aguardava.
Chegaram a Gênova, porto fervilhante de vozes, mercadorias, cheiros e gritos. O vapor que os levaria ao Brasil era enorme, antes destinado principalmente ao transporte de carvão, com cabines reservadas somente aos oficiais e um porão – onde estariam eles – confinados em um espaço denso, cheio de odores e ansiedade. Centenas de homens, mulheres e crianças se moviam como um mar inquieto. O ar era pesado, o chão rígido, os beliches empilhados ofereciam pouco conforto. Ali, no ventre de ferro do vapor, começou a travessia da família Dal Bianco.
O mar se mostrou um inimigo implacável. As ondas se erguiam, a neblina envolvia o vapor em um véu cinzento e imóvel, e o tempo parecia se dilatar em dias intermináveis. Maddalena sofria com o enjoo e a preocupação pelos filhos, mas a cada manhã se erguia para consolá-los, cantando silenciosamente canções da vila, transmitindo-lhes a memória do Mis e de seus bosques. Angelo quando podia observava o horizonte como se pudesse dominá-lo com o olhar, contando os golfinhos que acompanhavam a nave, prateados e velozes, pequenos sinais de vida em um oceano que frequentemente parecia engolir tudo.
A fome e o cansaço eram constantes, assim como o medo da doença. Três crianças morreram durante a viagem, vítimas da asfixia e da desnutrição. Cada morte era um soco no estômago, um lembrete cruel da fragilidade da vida. A família chorava em silêncio, consciente de que cada lágrima fazia parte de uma lição de sobrevivência e resiliência.
Quando finalmente avistaram a costa do Brasil, foram tomados por um misto de espanto e desorientação. O Rio de Janeiro era um mundo alienígena: céu vasto, águas mornas e o perfume da vegetação tropical. Foram encaminhados embarcados em outro navio à Colônia Caxias, no estado do Rio Grande do Sul. Ali, o cenário mudava dia após dia: florestas densas, rios impetuosos, campos abertos que aguardavam mãos capazes de cultivá-los. A terra ainda não era deles, mas o horizonte prometia possibilidades.
O trabalho foi extenuante. Angelo arava os campos, derrubava árvores, construía a casa que abrigaria a família. Maddalena plantava sementes, costurava roupas e ensinava aos filhos a disciplina do trabalho e a delicadeza de cuidar da vida. Os primeiros invernos foram rigorosos, doenças assolavam a comunidade de imigrantes, e os fazendeiros locais olhavam com desconfiança para os vênetos. Mas cada dificuldade fortalecia o vínculo da família e a determinação de Angelo. Cada noite, sob o céu amplo do Rio Grande do Sul, ele pensava no Mis, nos bosques e rios deixados para trás, e sabia que a memória daquele lugar dava sentido ao presente e ao futuro.
Com o passar dos anos, a família prosperou. Tiago aprendeu a ler e escrever, combinando o dialeto vêneto com o português. Francesco cresceu forte e habilidoso, tornando-se pequeno mestre nos campos e na marcenaria. Maddalena tornou-se guardiã da nova casa, cultivando mais do que sementes: ensinava paciência, dignidade e amor pela terra e pela família. Angelo observava os filhos e via neles a realização do sonho que ousara: não mais apenas sobreviver, mas construir um futuro com raízes profundas, longe da miséria e da fome.
Naquelas terras distantes, entre o canto dos pássaros e o murmúrio dos riachos, a vida da família Dal Bianco se entrelaçou com a história da Grande Emigração italiana. Cada gesto, cada sacrifício, cada semente plantada era parte de uma promessa: a promessa de dignidade, trabalho honesto e esperança. E embora os picos do Mis não fossem mais visíveis, seu espírito permanecia ali, entre rios e bosques do Vêneto, e no coração de cada nova geração que Angelo e Maddalena haviam decidido cultivar, distante, mas sempre enraizada na memória da terra natal.
Nota do Autor
Os nomes e alguns detalhes desta narrativa foram modificados para preservar a identidade das famílias envolvidas. No entanto, a história é baseada em fatos reais, inspirada em documentos, cartas e relatos autênticos de famílias de imigrantes italianos que deixaram o Vêneto rumo ao Brasil no final do século XIX.
O destino de Angelo Dal Bianco e de sua família reflete a trajetória de milhares de homens e mulheres que enfrentaram o desconhecido movidos pela esperança, pela fome e pelo desejo de reconstruir a própria vida em terras distantes.
Embora os personagens aqui retratados tenham nomes fictícios, suas experiências, dores e conquistas são verdadeiras expressões de uma memória coletiva que ainda ecoa entre os descendentes desses pioneiros.
Dr. Luiz Carlos B. Piazzetta