Caminho de Terra Vermelha
Caminho de Terra Vermelha
A vida de Cesare Travaglini, emigrante da Úmbria para o Brasil
Úmbria, Reino da Itália — Outubro de 1887
Naquele outono tardio, os campos da Úmbria pareciam ter desistido da colheita. A chuva fina se infiltrava pelas telhas de ardósia e os ventos gelados rasgavam as estradas de terra como se quisessem apagar os rastros de uma geração inteira que se preparava para partir. Cesare Travaglini, com vinte e dois anos e os olhos carregados de inquietude, sentia que não pertencia mais àquelas colinas cobertas de oliveiras retorcidas. Era o primogênito de sete filhos, neto de camponeses, filho de um sapateiro que há muito desistira de sonhar. Seu pai, Giovanni, aceitava a miséria com resignação endurecida. Quando ouviu do filho a palavra “emigração”, cuspiu no chão como quem rejeita uma praga. Mas sabia que a pobreza não segurava ninguém. E quando finalmente consentiu com a partida, fê-lo com a frieza de quem sabia o que o aguardava do outro lado: “A terra dos outros, Cesare... te cobra em carne o que oferece em pão.”
Cesare partiu numa madrugada escura, levando apenas um terço da mãe, um caderno de anotações e a coragem de quem não tem mais onde cair morto. Deixava para trás os irmãos esfomeados, a casa com goteiras, os olhos silenciosos da mãe à porta. Seu destino: o Brasil.
Porto de Gênova — Novembro de 1887
O navio Príncipe de Asturias zarpou sob céu de chumbo, carregando quinhentas almas comprimidas no porão. Não havia espaço para a dignidade — apenas corpos empilhados como mercadoria de segunda ordem, sacudidos pelo mar e pela incerteza. O cheiro de suor, enjoo e medo se espalhava pelos corredores como uma névoa que não cedia. Era um odor espesso, pegajoso, impregnado nas roupas, na pele e nos pensamentos. Ratos corriam entre os fardos de bagagem, disputando migalhas com crianças desnutridas. Os gritos de náusea misturavam-se às preces sussurradas em dialetos que já morriam antes mesmo de cruzar o Atlântico.
Crianças choravam sem consolo, agarradas às saias das mães ou a pedaços de pão duro. Mulheres rezavam com os olhos fechados, murmurando ladainhas de aldeias esquecidas, invocando santos que o Novo Mundo talvez não conhecesse. Homens se agarravam a cartas amareladas, dobradas com reverência, como se fossem mapas para a terra prometida. Eram palavras escritas com esperança e exagero por parentes que juravam ter encontrado fartura além-mar — terras férteis, colheitas abundantes, salários em moeda forte, casas com telhado e liberdade com nome próprio.
Durante os trinta e três dias de viagem, Cesare escreveu, mesmo doente. A febre vinha em ondas, como o próprio mar. Suas mãos tremiam, mas ele não largava o lápis. Registrava tudo como quem finca estacas numa terra ainda invisível. Descreveu a tempestade que quase os jogou contra os rochedos das Canárias — os gritos, o ranger do casco, o estômago virado do navio e das almas. Homens rezavam em voz alta, outros se calavam como condenados. Um barril solto esmagou o braço de um estivador. Cesare anotou até a cor do sangue escorrendo pelo convés.
Descreveu o rosto de um menino de Piacenza que morreu no quinto dia e foi lançado ao mar embrulhado num lençol — o corpo leve demais, quase sem peso, como se o oceano o tivesse chamado de volta antes mesmo de ele conhecer a terra firme. A mãe permaneceu muda, sentada à beira do beliche por dias, com o lenço do filho entre as mãos, enquanto os outros passageiros desviavam o olhar.
Descreveu, acima de tudo, o silêncio aterrador das madrugadas, quando o oceano parecia respirar mais alto que os vivos. Era um som fundo, ancestral, como se a própria terra tivesse sido engolida e regurgitada pelo mar. À noite, a embarcação parecia imóvel, suspensa no vazio, como uma sombra sobre o nada. O sal entrava pelas frestas do porão e ardia nos olhos. O escuro era tão espesso que o horizonte desaparecia. E ali, sob aquele céu sem estrelas, Cesare escrevia — não para registrar o horror, mas para não esquecê-lo. Sabia que o que se esquece morre duas vezes.
Fazenda São Domingos, Província de São Paulo — Janeiro de 1888
A terra era vermelha como ferrugem e grudava nos pés como se quisesse puxar de volta quem ousasse fincar raízes. Espessa, quente, quase viva, deixava marcas no tornozelo e no pensamento. Sob o sol inclemente, transformava-se em pó fino que se infiltrava nas roupas, nos pulmões, nas dobras do tempo. A fazenda São Domingos se estendia por mais de mil alqueires de cafezais e canaviais, alinhados como exércitos sob comando mudo. Era um império de terra e dívida, onde os coronéis andavam a cavalo e os colonos curvavam as costas até parecerem parte da lavoura.
Os recém-chegados — italianos, portugueses e alguns poucos espanhóis — logo compreendiam que liberdade era palavra escassa ali. Na boca do feitor soava como ironia. Trabalhando sob o sistema de parceria, os colonos teoricamente dividiam a produção, mas na prática colhiam apenas cansaço. A comida vinha do armazém da própria fazenda, sempre com preços inflados, listados em folhas que ninguém sabia ler. Arroz quebrado, farinha grossa, sabão preto, café de segunda — tudo era descontado antes da colheita. Os vales substituíam o dinheiro; notas coloridas com o nome da fazenda, aceitas somente ali, criando um círculo fechado de servidão. Qualquer doença, qualquer dia de chuva ou cansaço, qualquer filho com febre era anotado no caderno de capa dura do feitor, um objeto mais temido que o chicote. E o saldo final era sempre negativo — não importava o esforço, o suor, o número de sacas entregues. Era como nadar contra a correnteza com os bolsos cheios de pedra.
Cesare, porém, não se entregava. Não por teimosia, mas por princípio. Sabia ler. Sabia somar. Sabia, sobretudo, resistir. Trazia do Vêneto uma desconfiança ancestral pelos poderosos e uma fé silenciosa na força da comunidade. Em pouco tempo, tornou-se referência entre os colonos. Lia os contratos com atenção de advogado, desfiava as cláusulas armadilhadas, ajudava a calcular os juros embutidos nas contas do armazém. Explicava a diferença entre “adiantamento” e “endividamento” com palavras simples, mas certeiras. Ensinava as crianças a escrever seus nomes com gravetos no chão batido, mesmo depois de doze horas na roça. Era um rebelde de olhos calmos, desses que não precisam levantar a voz para fazer-se ouvir. Não incitava motins, mas plantava perguntas. E isso, para os patrões, era perigoso. A cada nova colheita, seu nome circulava em cochichos — uns o chamavam de capitão sem patente, outros de anarquista de bíblia. Mas os colonos o viam como um farol: alguém que, mesmo coberto de barro e cansaço, enxergava além do café e da dívida. Alguém que lembrava a todos que ainda havia espaço para dignidade, mesmo em meio à servidão disfarçada de contrato.
1894 — As margens do Rio Turvo
Foram sete anos de suor, febres e noites sem pão. Sete anos em que a terra parecia conspirar contra ele e os céus não respondiam a preces. Mas Cesare guardava cada tostão como quem recolhe sementes para um solo que ainda não existe. Evitava as festas dos conterrâneos, os almoços de domingo em casas alheias. Poupava no fumo, não bebia nem em batizados. Trabalhava de sol a sol, fazendo biscates nas lavouras dos outros, roçando mato por diária ou serrando madeira em troca de farinha e feijão. Quando surgiu a oportunidade de comprar um pedaço de mata virgem na beira do rio Turvo, não hesitou. A escritura foi feita às pressas, em cima de um balcão de armazém, com testemunhas analfabetas e firma reconhecida a suor e desconfiança. Pagou em moedas de cobre guardadas em latas de querosene e em promissórias riscadas com dedos trêmulos. O lugar não tinha estrada, nem vizinhança, nem sombra de capela. Só mato, pedra e silêncio. A terra era bruta. Pedregosa. Áspera como os calos de sua mão. Mas era sua. Pela primeira vez, algo no mundo lhe pertencia.
Ergueu uma casa de pau-a-pique com as próprias mãos, misturando barro com palha e esperança. Reutilizou tábuas de um galpão abandonado e amarrou as traves com cipó e paciência. Fez telhado de taquara e cobriu de folhas secas até conseguir telhas de verdade. Batizou o lugar de Monte Scheggia, homenagem silenciosa à vila natal que agora habitava apenas sua memória — uma colina modesta nos arredores de Belluno, de onde via, na infância, os sinos das igrejas balançarem contra o céu das Dolomitas.
Logo depois, casou-se com Rosa Carminati, viúva de um tanoeiro morto de febre na última epidemia de verão. Rosa sabia lidar com forno, horta e silêncio. Trazia consigo dois filhos ainda pequenos, que Cesare aprendeu a chamar de seus sem distinção de sangue. Com ela teve mais três: dois meninos de temperamento diferente como o fogo e a água, e uma menina de olhos atentos, que nasceu ouvindo a leitura de um trecho do Purgatório.
Todos foram criados entre enxadas e cadernos de escola. Durante o dia, ajudavam na roça ou nas lidas do terreiro; à noite, se sentavam ao redor da lamparina, onde o pai, de mãos calejadas e alma inquieta, lia Dante em voz alta. Lia com sotaque de gente que mastigava duas línguas ao mesmo tempo, com os erres enrolados do Vêneto e a cadência dos que lutam para não esquecer. Lia para que seus filhos soubessem que haviam nascido de homens que ousaram atravessar o oceano para plantar o amanhã com as próprias mãos. Cada verso era um testemunho. Cada canto, um alicerce.
Nas noites de lua cheia, quando o rio Turvo refletia as estrelas como se fosse um espelho de prata, sua voz se confundia com o farfalhar das folhas e os uivos distantes das corujas. E assim, naquela clareira esculpida à força de machado e fé, Monte Scheggia foi deixando de ser só lugar e passou a ser destino — um pedaço da Itália enterrado no coração da terra brasileira.
São Paulo, 1932 — O fim do caminho
Cesare Travaglini morreu velho, curvado, mas inteiro. A espinha vergada pelos anos de enxada e silêncio, os músculos endurecidos pela luta contra a terra, a seca, a febre e o tempo. O rosto era um mapa de sulcos e cicatrizes, mas os olhos — aqueles olhos castanhos que sempre miravam o longe — nunca perderam o brilho de quem crê em algo além do imediato. Morreu com as mãos manchadas de terra vermelha, a mesma terra que, décadas antes, lhe havia rasgado os pés, mas que agora se deitava sobre ele como um manto amigo.
Foi enterrado à sombra de uma grande árvore que ele mesmo plantara, no alto de uma colina da fazenda Monte Scheggia. Era uma figueira brava, nascida de um caroço trazido da Itália, embrulhado em um lenço de algodão que Rosa guardara entre os peitos durante a travessia. Cesare costumava dizer que ela sobrevivera porque tinha a alma dos que emigraram: raízes fortes, corpo retorcido e uma teimosia de pedra. Ali, sob aquela copa generosa, onde as crianças se escondiam nas brincadeiras de domingo e os pássaros armavam ninhos no tempo das águas, repousava agora o corpo de quem dera forma e destino àquela terra.
Depois de sua morte, enquanto a família desmontava a velha casa de pau-a-pique — agora já abandonada, em ruínas de barro e saudade — encontraram, escondida entre as paredes de taipa, uma caixa de madeira simples, com ferragens enferrujadas e cheiro de tempo parado. Dentro, estavam seus cadernos. Alguns já amarelados, outros com folhas soltas e anotações escritas com letra firme, porém vacilante nos últimos anos. Misturavam-se ali contas da roça, esboços de cartas nunca enviadas, listas de sementes, poemas curtos, trechos de Dante, e pensamentos lançados como sementes em solo seco. No último caderno, a derradeira anotação era de uma simplicidade que atravessava os ossos:
“A terra dos outros primeiro nos come. Depois nos aceita. E, por fim, se deixa amar.”
Essas palavras, escritas com tinta preta e caligrafia envelhecida, tornaram-se a epígrafe de sua vida. Um de seus netos, professor de história e filho do menino que aprendera a ler ouvindo Dante sob a luz da lamparina, decidiu doar os manuscritos ao Museu da Imigração de São Paulo. O gesto não foi apenas um tributo familiar, mas um resgate de tudo o que Cesare representava — não só para os Travaglini, mas para tantos outros que, como ele, haviam deixado para trás um continente e semeado outro com trabalho, silêncio e fé. E foi lá, entre vitrines empoeiradas e corredores onde o passado parece respirar, que a história de Cesare Travaglini ganhou nova vida. Seus cadernos, agora protegidos por vidro e etiquetas de inventário, passaram a ser consultados por pesquisadores, estudantes, e netos de outras famílias que também vinham de longe. Ali, onde o tempo se dobra e os nomes se tornam memória, a voz de Cesare continuava a ecoar. Não mais com sotaque carregado, mas com a solidez de quem construiu algo que ultrapassou sua própria existência. Como o próprio caminho de terra vermelha que ele trilhou — abrindo mato, carregando pedra, vencendo o tempo, mas sempre em frente.
Nota do Autor
Esta é uma história inventada com nomes fictícios — mas a maior parte dela é verdadeira. Caminho de Terra Vermelha nasceu da escuta atenta de vozes esquecidas. Vozes que, embora não tenham deixado livros ou monumentos, deixaram pegadas reais nos cafezais, nos trilhos da ferrovia, nas pequenas colônias do interior brasileiro. Cesare Travaglini, personagem central desta narrativa, é ficcional. No entanto, ele carrega dentro de si a soma de muitos homens e mulheres que cruzaram o oceano no final do século XIX em busca de pão, terra e futuro — às vezes com esperança, quase sempre com dor.
Entre 1870 e 1920, mais de um milhão de italianos desembarcaram no Brasil. Vinham principalmente do Norte da Itália: Vêneto, Lombardia, Trentino, Piemonte, Úmbria, Toscana. Fugiam da fome, da miséria, das guerras e dos impostos abusivos. Chegavam a um país onde o fim da escravidão criara uma demanda urgente por mão-de-obra nas fazendas de café. Os contratos ofereciam promessas. A realidade impunha dívidas, trabalho forçado, isolamento e discriminação. Ainda assim, resistiram. Plantaram, construíram, adaptaram-se, criaram raízes. Muitos sucumbiram. Outros prosperaram — mas todos pagaram um preço alto.
O título desta obra remete à terra vermelha do interior paulista, símbolo de fertilidade e também de sacrifício. Era sobre ela que os colonos italianos — como tantos outros imigrantes — dobravam a espinha, enterravam filhos, erguendo com mãos ásperas a esperança de um novo começo. Embora os fatos históricos sejam respeitados com rigor, esta é uma narrativa literária, construída com liberdade criativa. Misturam-se aqui a pesquisa histórica, o imaginário popular, os registros da tradição oral e o desejo de dar rosto, nome e voz aos que muitas vezes foram reduzidos a estatísticas nos livros oficiais.
A história de Cesare Travaglini é, portanto, um espelho. Não para ver o passado como um museu, mas como parte viva da nossa identidade — feita de partidas, perdas, lutas e, sobretudo, de reinvenções.
Que este livro sirva como um tributo à coragem anônima dos que vieram antes. E que os seus rastros e pegadas na terra vermelha nunca se apaguem.
Dr. Luiz C. B. Piazzetta
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