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domingo, 1 de janeiro de 2023

O Talian, o Vêneto Brasileiro

 





O talian, ou vêneto brasileiro é uma variante da língua vêneta ou língua própria falada no Brasil, sobretudo nos estados do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina, e em pontos do Paraná, Mato Grosso e Espírito Santo.





O talian é um produto da imigração italiana no Brasil e uma variante surgida da fusão de várias línguas regionais italianas, com amplo predomínio da língua vêneta e uma importante contribuição do português. No início do século XX ele já estava bem desenvolvido, surgindo até importante literatura, mas a partir da década de 1930 foi severamente reprimido por conta da campanha de nacionalização imposta pelo governo Vargas, o que produziu graves lesões na memória coletiva, no senso de identidade, na sociabilidade, na produção de cultura e na auto-estima dos descendentes de italianos, entrando em rápido declínio. Sua recuperação e normatização ocorreu a partir da década de 1970, e hoje uma série de iniciativas buscam sua preservação e disseminação. É objeto de muitos estudos científicos, já existe significativa literatura, é um patrimônio cultural oficial em estados do sul, foi adotado como língua co-oficial em várias cidades, diversos jornais e rádios publicam em talian, e foi reconhecido como Referência Cultural Brasileira pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.

Período formativo
As línguas faladas no Nordeste da Itália, estando o vêneto marcado em verde-claro.

Os Imigrantes italianos começaram a chegar em massa ao Brasil no final do século XIX, através de um programa oficial do governo para ocupação de vazios demográficos, branqueamento racial e criação de uma força de trabalho livre. Os italianos que imigraram para o Brasil eram de diferentes partes da Itália, cada qual com seu dialeto próprio, mas no sul do Brasil e no Espírito Santo predominaram os imigrantes do norte da Península Itálica, principalmente das regiões do Vêneto, da Lombardia, do Trentino-Alto Ádige e do Friuli-Venezia Giulia. Destes, cerca de 60% eram de língua e cultura vênetas.

Em algumas localidades onde houve maior concentração de imigrantes provenientes de uma determinada localidade da Itália, ainda é possível reconhecer especificidades dialetais, como exemplo, a comunidade de Pomeranos, onde o dialeto trentino conseguiu se manter. Mas, de maneira geral, as colônias eram habitadas por pessoas de diferentes partes da Itália, colocando em contato vênetos, lombardos, trentinos e, mais raramente, friulanos. Como havia uma predominância demográfica de vênetos, com o passar do tempo a fala vêneta se sobrepôs às demais, embora incorporasse elementos delas, e foi evoluindo para um linguajar mais geral, formando um dialeto vêneto brasileiro, compreendido por todos os italianos e descendentes da região.





Nas primeiras décadas de imigração, havia grande resistência da comunidade italiana em se misturar com os brasileiros. O processo de integração foi lento. Esse isolamento durou cerca de cinquenta anos, a contar do início da imigração, em 1875. No sul do Brasil, muitas colônias italianas eram situadas em regiões de acesso difícil ou relativamente independentes da população brasileira. Isso criou um isolamento cultural e permitiu a manutenção do uso da fala dialetal italiana por gerações. Tal fato não foi possível, por exemplo, no estado de São Paulo onde, desde o início, os imigrantes italianos tiveram contato diário com a população brasileira local, e seus dialetos foram rapidamente suplantados pela língua portuguesa.

Mapa do Rio Grande do Sul. A área de maior concentração dos falantes de talian está entre as regiões 4 e 5

Para o Rio Grande do Sul, houve um fluxo majoritariamente vêneto e lombardo e, na primeira fase, que durou de 1875 a 1910, os imigrantes preservaram seus dialetos regionais vênetos e lombardos, além de falares minoritários trentinos e friulanos. O segundo período iniciou-se a partir de 1910, com a construção da estrada de ferro que liga Caxias do Sul a Porto Alegre. O isolamento começou a ser rompido, aliado ao incremento comercial e industrial. Em consequência, os dialetos menos representativos numericamente foram extintos, ao mesmo tempo que os dialetos lombardos e vênetos se inter-influenciaram, com a predominância dos últimos, surgindo uma fala comum, um koiné, chamado mais tarde de talian.





Durante as primeiras décadas da imigração o italiano conheceu um forte florescimento. Foi ensinado em escolas e usado na imprensa regional, havendo jornais que publicavam exclusivamente em italiano, sem qualquer oposição do governo brasileiro. Nesta época inicial a imprensa se expressava geralmente no italiano padrão adotado pelo Reino da Itália após sua unificação, pois se voltava para um público amplo, mas difuso no espaço e linguisticamente heterogêneo. Isso representava um problema, pois a maioria dos imigrantes não dominava o italiano padrão e só falava seus dialetos regionais. Já a Igreja Católica, religião da esmagadora maioria dos imigrantes e dotada de notável influência política e social, para bem doutrinar e exercer seu papel pastoral precisava se fazer entender, e, podendo atuar localmente, tendia a privilegiar os dialetos majoritários de cada comunidade, usando-os nos púlpitos, publicando jornais e mantendo muitas escolas e associações comunitárias onde esses dialetos eram reproduzidos, sendo um agente importante para a preservação e padronização linguística, ajudando a fundir as variantes numa língua geral que possibilitasse o entendimento entre todos, sendo, neste sentido, tanto pelo culto em comum como pelo trabalho linguístico, o principal elo agregador na organização social das comunidades. O governo brasileiro inicialmente também era sensível às diferenças, promulgando em 1871 a Lei 771 que mandava a criação de aulas elementares nas colônias onde os professores deviam ser fluentes no dialeto mais usado no local.





O vêneto, como já foi dito, acabou predominando, e teve entre suas primeiras expressões escritas importantes os contos de Carlo Porrini publicados no jornal Corriere d'Italia, e os poemas de Angelo Giusti, autor da letra da canção La Mérica, que se tornou uma espécie de hino da italianidade no sul do Brasil. O primeiro grande monumento literário do talian, contudo, foi Vita e Stòria de Nanetto Pipetta, escrita pelo frei Aquiles Bernardi, publicada em forma de folhetim pelo jornal Staffetta Rio-Grandense entre 1924 e 1925, que foi um grande sucesso entre a população italiana e marcou o início da consolidação da variante que se conheceria como talian. Pouco depois essa situação favorável começaria a mudar.

Declínio

Para muitos imigrantes e a sua primeira geração nascida no Brasil, em vista da situação mais ou menos autossuficiente das colônias, o aprendizado do português não foi visto como uma necessidade absoluta, embora tenham sido atestados muitos casos em que se manifestou interesse por esse aprendizado, na constatação de que a integração no longo prazo era inevitável e o domínio da nova língua facilitaria o progresso econômico e social do italiano. Porém, especialmente entre os mais velhos, houve muitos que jamais chegaram a aprender o português, ou no máximo adquiriram um conhecimento muito rudimentar. Isso produziu um contexto de relativo isolamento cultural e ao mesmo tempo uma consciência da existência de uma comunidade étnica, mas segundo Giralda Seyferth, no interior das colônias não havia um conflito entre uma vinculação primordial com uma nação ou pátria de origem e a condição de brasileiros, tanto que "festejavam-se nas colônias as datas e heróis nacionais dos respectivos países de origem, sem prejuízo de manifestações de patriotismo em relação ao Brasil". Por isso foi possível para os italianos desenvolver uma retórica ufanista e épica claramente baseada na etnicidade, no ethos do trabalho e na milenar herança cultural italiana.

Porém, a situação de "enquistamento cultural" começou a preocupar alguns políticos já na República Velha, vendo o programa imigratório do Império como desastroso por introduzir no país grupos estranhos às origens nacionais tradicionalmente portuguesas. Havia ainda outros interesses em jogo. Parte das elites regionais luso-brasileiras percebia como uma ameaça o inconteste sucesso econômico de muitas colônias, a ascensão de italianos a postos de liderança e as suas reivindicações de direitos iguais. Para cercear a competição, negava-se à etnia italiana imigrada a qualidade de brasileiros, montando um discurso de exclusão com forte argumentação nacionalista.




Com a instalação do Estado Novo, passou-se a culpar a República Velha por não ter resolvido uma questão que agora adquiria a dimensão de "problema de segurança nacional". Este movimento político-ideológico foi a base da criação da campanha de nacionalização, que instituiu o aprendizado obrigatório do português e proibiu o uso da fala dialetal italiana. Outros grupos imigrantes também foram afetados da mesma maneira. Os italianos passaram a ser vistos como potenciais traidores da Pátria brasileira e houve grande repressão policial nas colônias contra o uso do dialeto. Pessoas foram presas e até espancadas pela polícia ao serem pegas falando dialeto nas ruas, nomes italianos de locais, acidentes geográficos, logradouros públicos, associações, clubes e municípios foram mudados para nomes brasileiros, e reduzida ao silêncio, toda a estrutura da sociabilidade, da memória, da identidade e da cultura das comunidades coloniais foi seriamente comprometida.

Durante a II Guerra Mundial, quando o Brasil se tornou inimigo da Itália, a repressão atingiu níveis ainda mais duros. Segundo Cunha & Gabardo, "os cidadãos italianos e seus descendentes, em sua grande maioria, aceitam essa repressão para poderem se sentir integrados na nova realidade, na nova pátria. Em muitos casos há a negação da identidade italiana como forma de aceitação, integração e pertencimento". As consequências desse programa de nacionalização forçada ainda são perceptíveis na atualidade.

No mesmo período, formava-se um novo grupo de descendentes de italianos, mais urbanos e enriquecidos, que menosprezavam o dialeto e davam preferência ao português, enxergando o falante de talian como um colono grosso e rural, inferiorizando-o socialmente. Todos esses fatores levaram à criação de um estigma de ser falante de talian e os pais muitas vezes optavam por não transmitir a língua a seus filhos, para evitar que estes fossem estigmatizados ou motivo de chacota nas escolas por não falarem bem o português ou por falá-lo com um sotaque italiano. O êxodo rural também contribuiu para o declínio no uso da fala dialetal, pois nos centros urbanos a língua portuguesa era dominante e as gerações nascidas no meio urbano, muitas vezes fruto de casamentos com brasileiros, não adquirem o talian como língua materna.

O censo de 1950 mostrou que, dos 458 mil falantes de italiano no Brasil, 64,62% viviam no Rio Grande do Sul, 20,87% em Santa Catarina e 9,99% em São Paulo, mas o uso do dialeto vai-se perdendo ao longo das gerações. A primeira e a segunda gerações nascidas no Brasil costumam falar o dialeto, mas a partir da terceira já começa a haver a perda gradual do uso, por meio do bilinguismo com o português. Na quarta geração o dialeto é apenas uma memória familiar e na quinta desaparece a memória também.


Pessoas que usavam o italiano no lar, por gerações, no censo de 1940
GeraçõesNúmero de falantes
Primeira (imigrantes)53.000
Segunda (filhos)120.000
Terceira e seguintes (netos, bisnetos etc.)285.000
Total458.000


Recuperação

Entre as décadas de 1930 e 1960 o talian experimentou um declínio constante e acentuado. Um movimento de resgate se articulou a partir da década de 1970, quando foi comemorado com grandes festividades o centenário da imigração italiana, coincidindo com o despertar do interesse acadêmico sobre a italianidade no Brasil. Desde então têm sido feitos vários esforços no sentido de recuperar a prática do talian, com significativo sucesso. Em 1989 ocorreu o primeiro encontro dos escritores de talian na Società Taliana Massolin dei Fiori, em Porto Alegre, quando surge a proposta de padronização da língua, que tomaria forma concreta através da Comissão de Estudo para Unificação Gráfica do Talian, criada em 1993. Foi nesta época que Júlio Posenato propôs que se chamasse oficialmente o dialeto, até então geralmente chamado "vêneto brasileiro", de "talian", denominação que foi endossada pelo grande estudioso e lexicógrafo Darcy Luzzatto e acabou se consagrando. Além destes dois entusiastas, deram contribuições notáveis, entre muitos outros, frei Rovílio Costa, frei Alberto Vítor Stawinski, João Leonir Dall'Alba, Ítalo Balen, Honório Tonial, José Clemente Pozenato, Luis De Boni, Itálico Marcon, Mário Gardelin e Arlindo Battistel, produzindo literatura nova em talian, estudos científicos, compilações de narrativas tradicionais ou apoiando movimentos comunitários e ensinando.




Em 2009 os Governos do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina incluíram o talian no rol do Patrimônio Histórico e Cultural dos respectivos estados. O município de Serafina Corrêa foi o primeiro no Brasil a declarar o talian como idioma co-oficial no município, ao lado do português, em 2010. Em 2014, o talian foi reconhecido pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) como Referência Cultural Brasileira, além de ser incluído no Inventário Nacional da Diversidade Linguística, conquistas que tiveram como principais responsáveis José Clemente Pozenato e Honório Tonial. No mesmo ano, no Seminário Ibero Americano da Diversidade Linguística, realizado em Foz do Iguaçu, houve um consenso de que o talian pertence ao patrimônio imaterial e cultural do Brasil.

O talian adquiriu elementos necessários para sua caracterização como língua, considerada a mais nova língua neolatina, com uso comprovado por um grupo populacional definido, uma redação mais ou menos estável, uma sintaxe, um sistema fonológico-ortográfico e uma conformação morfo-léxica fixados em gramáticas e dicionários, além de ter uma literatura, uma memória tradicional e uma história contínua.

Segundo a pesquisadora Giorgia Miazzo, atualmente é falado por pelo menos um milhão de pessoas, empregado cotidianamente no trabalho, na educação, em meios de comunicação, festas comunitárias, celebrações religiosas e outras formas. Mais de cem emissoras de rádio e diversas emissoras de TV e jornais publicam em talian. Existem estações de rádio que transmitem algumas horas de sua programação em talian em vários municípios do Rio Grande do Sul e Santa Catarina, e algumas do Espírito Santo, Paraná e Mato Grosso. A internet se revelou um poderoso aliado na preservação e divulgação da língua, que segundo Ribeiro & Maggio "atravessa um período de grande produtividade".





Em 2015 foi lançado o documentário Brasil Talian, produzido entre 2011 e 2014 com apoio da Lei de Incentivo à Cultura do Ministério da Cultura, com depoimentos de mais de vinte pessoas e com gravações realizadas em Caxias do Sul, Flores da Cunha, Nova Pádua e Antônio Prado, além de colônias de imigrantes no Estado do Espírito Santo (Venda Nova do Imigrante e Santa Tereza) e em cidades da Itália (Veneza, Trento, Gênova e Vicenza). Apesar desse movimento, que devolveu aos descendentes dos italianos muito da sua auto-estima, o estigma do tempo da repressão e a vergonha no uso do talian ainda são visíveis em vários contextos.

Características

O vêneto falado no sul do Brasil e no Espírito Santo é arcaico quando comparado ao vêneto falado atualmente na Itália, pois é semelhante ao usado no século XIX. Ademais, com o advento da rádio e da televisão, começou uma forte interferência da língua portuguesa no vêneto falado pelos imigrantes no Brasil. Em decorrência, o vêneto brasileiro evoluiu de forma diferente da variedade falada na Itália, uma vez que incorporou itens lexicais do português e se manteve ligado à maneira como era falado no século XIX. Assim, usa-se o termo talian para diferenciar o vêneto falado no Brasil do dialeto vêneto hoje usado na Itália. Contudo, o talian não é considerado um dialeto crioulo italiano, mas sim uma variante brasileira do dialeto vêneto. 





Apesar de já haver várias gramáticas e dicionários e um movimento para sua uniformização, o talian não se tornou uma língua inteiramente homogênea e continua evoluindo — é uma língua viva. Seu uso ainda é predominantemente oral e seu território de ocorrência é muito fragmentado, resultando em uma significativa variabilidade linguística, um reflexo do seu próprio processo formativo, em que sofreu transformações e influências diferenciadas nas várias regiões brasileiras onde ocorre, sendo diferente o falado no Rio Grande do Sul daquele falado, por exemplo, no Paraná. Mesmo dentro de uma mesma comunidade pode haver variações.


Palavras em talian
Palavra no talianPalavra no italiano padrãoPalavra em portuguêsPalavra em vêneto
miioeumi
ti / tetutu / vocêti
lu / el / eloluieleeło
noaltri / noantrinoinósnoialtri / noialtre
voaltri / valtri / voaltivoivósvoialtri / voialtre
loriloroelesłuri / łore
bambin / putel / fantolinbambinocriançaputel
fòja / fógiafogliafolhafoja / fogia
côa / codacodacauda / rabocóa / coda
cavel / cavegio / caigiocapellocabelocavel / caveło / cavéjo
reciaorecchiaorelharecia
sufiar / supiaresoffiaresoprarsufiar / sbufar
tajar / taiartagliaretalhar / cortartajar
pióvapioggiachuvapiova
brasilian / brasilierobrasilianobrasileirobrasilian


Amostra de texto:

Pai Nosso em talian
Em talianEm portuguêsEm vêneto
Pupà nostro che stai nel cielo,Pai nosso que estais no Céu,Pare Nostro che te si nei ciei
Santificà sìa el tuo nome,Santificado seja o Vosso Nome,Sia santificà el to nome;
Vegna a noantri el vostro regno,Venha a nós o Vosso Reino,Vegna el to regno
Sia fata la tua volontà,Seja feita a Vossa Vontade,Sia fata ła to vołontà
Coss'in tera come nel cielo.Assim na Terra como no Céu.In tera così come in ciel.
Dai a noantri el pan de cada giornoO pão de cada dia nos dai hojeDane anquo el nostro pan quotidiano,
Perdona i nostri pecati,Perdoai os nossos pecados,Rimeti a noialtri i nostri debiti,
Come noantri perdonemo a quei che noi ga ofendestoAssim como nós perdoamos a quem nos tem ofendidoCome noialtri i rimetemo ai nostri debitori
E non assar che caschemo in tentassion,E não nos deixeis cair em tentação,E non sta portarne in tentasion,
Ma liberta noantri de tuto el mal. Amem.Mas livrai-nos de todo o mal. Amém.Ma liberane dal maigno. Amen.


Amostra de texto:

Trecho de La casa vècia dei Noni (A casa velha dos avós), de Ademar Lizot
Em talianEm português
La casa vècia dei mei antenati riposa calma par sora i monti ntela sera gaussa. Adesso visina a ela nò esiste più el giardin dela nona Carolina e, gnanca el vigal del nono Umberto, dentro dele so parede vode la guarda solche i segreti del passà. Dela cosina nò se sente pi el odor del formaio e gnanca del fogon el brustolamento dela polenta e, cossì sbandonada la ga la someiansa de na sentenària signora, co'l viso pien de rughe e òcii persi ntel infinito, ma l'é ancora davanti dele so parede che vàu in serca dele mie radise, par mèio capir la mia orìgene e, anca par domandarghe se Ela recognosse ntel mio viso qualche segno, qualche indìssio dela brava gente che la ga visto nasser e morir. [...]A velha casa de meus avós repousa calma sobre os montes da Serra Gaúcha. Agora em seu entorno não existe mais o jardim da avó Carolina e nem o parreiral do avô Umberto, dentro de suas paredes vazias, guarda somente os segredos do passado. Da cozinha não se sente mais o cheiro do queijo e nem do fogão a tostar polenta, e, assim abandonada, tem a aparência de uma senhora centenária, com o rosto cheio de rugas e o olhar perdido no infinito, mas é então em frente de suas paredes que vou em busca das minhas raízes, para melhor entender a minha origem, e também para perguntar se Ela reconhece em meu rosto algum sinal, algum indício da brava gente que Ela viu nascer e morrer. [...]


O talian absorveu, e continua a absorver, diversas influências da língua portuguesa. A maioria dos empréstimos do português vem da denominação de usos e costumes que não existiam na Itália, incluindo jargão técnico, profissional, comercial e administrativo, assim como nomes de objetos, alimentos, animais e plantas típicos do Brasil. Em função do contato com o português, o talian se distancia parcialmente do dialeto vêneto atualmente falado na Itália. Todavia, apesar dos brasileirismos presentes no talian, ele é ainda muito próximo ao dialeto vêneto usado na Itália, sendo ambas as variedades linguísticas inteligíveis entre si.

Nas palavras emprestadas do português observa-se em geral a substituição das consoantes fricativas chiantes pelas consoantes fricativas sibilantes ("o chapéu está embaixo da mesa" é pronunciado "o sapeu esta embaso da meza"); a vibrante múltipla é substituída pela vibrante simples (carroça > karosa; terra > tera); o ditongo nasal é substituído pela vogal posterior, média fechada, nasal (coração > coraçon; então > enton), e a vogal central, média, fechada, nasal é substituída pela vogal central, média, aberta nasal (canta > kánta; campo > kámpo).


Exemplos da influência do português no talian
Palavra no talianPalavra no vêneto originalPalavra no italiano padrãoPalavra em português
BoloTortaTorta, dolceBolo
Caro, autoMachina, autoMacchina, autoCarro
CoraçonCor, coreCuoreCoração
GaligneroPunaro ou punèrPollaioGalinheiro
GarafaButigliaBottigliaGarrafa
Inton, aloraAloraAlloraEntão
PraiaSpiaiaSpiaggiaPraia
Sapatero, scarpèrCaleghèr ou scaporlinCalzolaioSapateiro
Sià, sciàChá
Simarón, Scimarón--Chimarrão
Sorasco, chorasco--Churrasco
VerónIstáEstateVerão
Como non!Certo! Certamente! Sicuramente!Certo! Certamente! Sicuramente!Como não!


Fonte Wikipédia










sexta-feira, 3 de junho de 2022

O Brasil de Língua Veneta




 


A primeira emigração organizada partindo do Vêneto (em grande parte da província de Treviso e, em menor medida, da Lombardia e Friuli), data de 1875. 

De fato, a partir desse ano começaram a chegar ao Brasil - nos estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, Espírito Santo, e sobretudo na chamada "área de colonização italiana" localizada no Nordeste do primeiro estado, que hoje tem a florescente cidade de Caxias do Sul com cerca de 500.000 habitantes como sua centro econômico, comercial e cultural: milagre de desenvolvimento e modelo de "outro veneziano" transplantado e criado no exterior. medida, em países menores como o México.

As principais causas do fenômeno da emigração foram, como se sabe, a miséria e a marginalização das classes rurais da época, senão a fome, juntamente com o sonho da propriedade da terra por nossos camponeses (então verdadeiros “servos da gleba”) , muitas vezes enganados pela falaciosa propaganda interessada, favorecidos, por sua vez, pela ignorância misturada com a esperança de que é sempre o último a morrer. Mas também devemos levar em conta aquele espírito de aventura que não surpreende, aquela atração pelo novo e pelo distante que sempre agiu sobre a humanidade e que muitas vezes é ignorada pelos historiadores da emigração.

A travessia do Atlântico naquela época (no fundo dos porões) foi por si só uma epopéia que ainda está presente na memória coletiva, transmitida em episódios pungentes nas memórias dos antigos e na copiosa literatura popular, especialmente veneto-brasileira (canções, poemas, contos), que, a partir das comemorações do centenário da primeira emigração "in loco" (1975), explodiu aqui e ali também em formas estilisticamente valiosas. A epopeia das indescritíveis condições de chegada e colonização e as lutas da primeira geração para desbravar a montanha com as armas, para se defender de animais ferozes, cobras, índios, doenças, para construir estradas do nada permanecem na memória coletiva. lares, para enfrentar continuamente o medo que se tornou uma obsessão...

Essa história de ilusões e sofrimentos, de heroísmo e humilhações, essa "história interna" de nossa emigração, que representa o reverso da história externa com a qual, mais do que tudo, os estudiosos trataram, ainda está por ser explorada.

Quanto ao sul do Brasil, que pode ser considerado emblemático, um primeiro grupo de emigrantes chegou, depois de aventuras e sofrimentos indescritíveis, no que hoje é chamado de Nova Milano, perto de Caxias do Sul. Do porto de Porto Alegre seguiram em barcaças ao longo do Rio Caì e depois a pé, por quilômetros e quilômetros, pela floresta, com alguns utensílios domésticos nas costas, fazendo o caminho com "facões", até chegar à terra a eles atribuídos, bem na floresta, ao norte dos territórios planos e mais férteis ocupados pela emigração alemã 50 anos antes. Pode-se imaginar o custo humano de tudo isso depois que eles cortaram as pontes atrás deles, vendendo seus pobres bens antes de deixar a Itália.

Os vestígios da primeira colonização ainda podem ser vistos hoje em muitos nomes de lugares, como os já mencionados Nova Milano, Garibaldi, Nova Bassano, Nova Brescia, Nova Treviso, Nova Venezia, Nova Pádua, Monteberico...; enquanto outros como Nova Vicenza e Nova Trento posteriormente mudaram seus nomes originais para os nomes brasileiros de Farroupilha e Flores da Cunha em períodos caracterizados pela xenofobia. Essa xenofobia do governo central chegou a tal ponto que, nos anos da última guerra, aqueles de nossos imigrantes que não sabiam falar brasileiro foram proibidos (sob pena de prisão) de falar sua língua veneziana, com as consequências morais de que é fácil imagine, além das dificuldades práticas (que muitas vezes resultaram na tragicômica!) que tudo isso produziu entre aqueles pobres marginalizados que foram privados até da fala...

No entanto, é um fenômeno impressionante - no Brasil como na Argentina, tanto por extensão, por população (na ordem de milhões de descendentes), quanto por homogeneidade e vitalidade - que há mais de um século tem sido negligenciado, senão ignorado pelos governo italiano e suas instituições.

A grande maioria das primeiras correntes imigratórias era composta por camponeses que plantavam culturas e métodos agrícolas típicos de suas áreas de origem no novo território (aos quais se juntaram artesãos e comerciantes). A cultura que se impôs às demais foi a da videira com a consequente industrialização do vinho e outros derivados da uva, que ainda hoje representa a maior fonte de riqueza do estado brasileiro do Rio Grande do Sul, que abastece todo o Brasil.

Atravessando o campo, ainda existem ferramentas antigas vitais (que agora quase desaparecidas) da agricultura do século XIX e da vida doméstica da época (em Nova Pádua, perto de Caxias, o monumento ao imigrante, na praça da cidade, é solenemente representado por uma verdadeira "caliera de la polenta" em um pedestal imponente). A dieta no campo ainda é essencialmente a tradicional do Vêneto, à qual foi adicionado o autóctone e inevitável "churrasco" (carne grelhada).

A religião ainda é intensamente seguida e sentida, também porque o clero católico e a organização religiosa acompanharam o destino dos emigrantes desde o início. Basta dizer que as “capelas” foram até agora os principais centros comunitários da “colônia” (leia-se campo) não só religiosa, mas também de organização social e cultural, e que as paróquias e municípios foram se formando em torno delas. Nos últimos anos, as aldeias onde não havia pároco estável puderam presenciar cenas, incríveis para nós, como a da população reunida em um barracão que servia de igreja, celebrando ritos religiosos sem nenhum padre e sob a orientação do que ele é chamado de "padre leigo", com a participação ativa e solene dos anciãos da aldeia.

Aqueles que vivem em "colônia", e conservaram principalmente o ofício e as tradições dos primeiros emigrantes, até recentemente ainda eram considerados marginalizados e desprezados até mesmo pelos descendentes de habitantes venezianos nas grandes cidades. Apenas algumas décadas atrás, quando os contatos efetivos com a Itália foram retomados, uma consciência positiva das próprias origens (não mais opacas, um mito distante a ser esquecido) foi despertada e ampliada com um impulso para redescobrir a identidade histórica: uma busca, muitas vezes pungente, de suas fontes para restaurar aquele "cordão umbilical" que havia sido cortado por mais de 100 anos.

O fenômeno mais impressionante dentro dessa "história de imigrantes sem história", como alguns tristemente a definiram, é a manutenção, depois de um século, de uma língua de origem própria (veneziana), no âmbito familiar, interfamiliar e, em certos ocasiões (festas, aniversários, jogos, encontros de convívio, etc.) também a nível comunitário; com um grau de vitalidade e conservação, no campo, que muitas vezes até supera o do Vêneto da Itália que, como é sabido, ainda está bem enraizado entre nós. É o que os dialetólogos chamam de "ilha linguística" relativamente homogênea, onde a língua veneziana acabou triunfando sobre lombardo e friuliano, estendendo-se como um "koinè" intervindo em um contexto heterofônico (lusobrasileiro). Permite-nos reconstruir, como "in vitro", após três ou quatro ou até mais gerações, a língua dos nossos avós e bisavós, sobretudo para os aspectos orais não documentados como a pronúncia e a entonação, ou para o uso de certos provérbios , expressões idiomáticas, canções da época. Assim, através da história das palavras (as preservadas, alteradas e substituídas) podemos reconstruir alguns trechos da história (muitas vezes comovente) dessas comunidades. Ele, por sua vez, representa um vislumbre dramático e emocionante da história da Itália e da história do Brasil.

O escritor destas linhas é um velho emigrante que viveu pessoalmente o que muitas centenas de milhares de compatriotas viveram: uma testemunha direta da situação daqueles que, no imediato pós-guerra, atravessaram o oceano amontoados no porão da velha guerra da Liberdade , dormindo em beliches com quatro ou cinco beliches dispostos verticalmente, em um calor incrível e em condições infernais de promiscuidade. Ele viajou por toda a extensão das Américas por muitos anos, desde as terras áridas do México até a desolada Patagônia Argentina. Durante muitos anos como emigrante e depois como académico e investigador. Como tantos outros emigrantes, viveu em sua própria carne a tragédia do transplante, a mortificação dos afetos, a ansiedade de tantas ilusões, o naufrágio de tantas esperanças. Por isso, a par da significação histórica do fenómeno migratório, não ignora a dor, o cansaço e a coragem que o acompanharam, até porque também ele começou do estanho - como se costuma dizer - a fazer um trabalho manual de sobrevivência. Mas sua história pessoal é pouco comparada à história geracional de nossas comunidades que viveram, sobretudo no imenso Brasil, uma epopeia indescritível de lutas, sacrifícios, em condições de vida infra-humanas (especialmente as primeiras gerações); epopeia transmitida oralmente (porque na maioria dos casos eram pessoas que não sabiam ler nem escrever) de pai para filho, de mãe para filha, porque as mulheres, como sempre, são as guardiãs das tradições mais vitais e essenciais. As primeiras gerações enfrentaram, como já foi dito, sacrifícios indescritíveis, abandonados nas florestas; sem Lares e sem Penates, ou seja, sem casa e sem família, obrigados a sobreviver em condições dramáticas. Mesmo sem a palavra, como mencionado acima: sem uma palavra não há identidade, não há comunidade ou comunicação, então não há vida que possa ser chamada de humana. Mas eles resistiram aos dentes cerrados com dignidade e coragem, apesar das condições humilhantes e ardentes de inferioridade.

Não só no Brasil, mas também na Argentina, e em outros lugares especialmente os venezianos, os lombardos e os friulanos, os chamados polentoni (lembre-se que "polenta", no popular planalto carioca, passou a significar força, coragem) juntos com os soldados piemonteses e os genoveses laboriosos e parcimoniosos, proporcionaram, com luzes e sombras naturais em todas as coisas humanas, uma contribuição de progresso ao país que os acolheu. Guardam no coração desde o último quartel do século passado o sonho e o mito da pátria, da madrasta que os abandonou há mais de cem anos. Em vez disso, continuaram a lembrá-la e a sonhar com ela nas filas intermináveis ​​dos estábulos dos camponeses, na intimidade familiar sincera e discreta, nas comoventes reuniões comunitárias, nas humildes orações diárias.

Através das gerações eles preservaram incrivelmente sua língua, usos, costumes, ritos, festas, danças, jogos (tresette, bowls, mora, cuccagna). Jogos temperados com algumas de nossas expressões camponesas, agora não mais blasfemas, porque eufemizadas, como "Ostrega!", "Ostregheta!" ou "Sacramenta!". Você ainda pode ouvir as canções comunitárias do passado, que perdemos em grande parte e que os ajudaram moralmente a viver, a sobreviver: nos países mais remotos. Nas praças de algumas aldeias encontramos, como monumentos, para além da "caliera" da polenta, como já referido, a carroça ou o carrinho de mão, a gôndola veneziana, o leão de São Marcos (até o símbolo da Vila de Octavio Rocha Hall, no Rio Grande do Sul, representa o leão de São Marcos segurando o cacho de uvas na pata ao invés do tradicional livro!).

Essas pessoas, com o saco às costas (com a mala de madeira na segunda vez e a mala de papelão na terceira), desde o século passado aliviaram nossa pressão demográfica, prestaram um serviço histórico à Itália, nos aliviaram da fome, especialmente após a Segunda Guerra Mundial, com suas remessas, e hoje compram "principalmente" produtos italianos e, portanto, fortalecem o comércio e a economia de nosso país. A renda induzida pela colaboração econômica de nossos emigrantes é estimada em mais de 100.000 bilhões.

Essas pessoas são o sangue do nosso sangue, pessoas que sofreram moral e materialmente com a marginalização secular e de quem também temos algo a aprender ou reaprender: aqueles valores que hoje estão sendo amplamente esquecidos.

A Itália, hoje, não pode deixar de honrar sua dívida secular, histórica, moral e política.


Giovanni Meo Zilio
Treviso, 24 ottobre 1923
+Treviso, 27 luglio 2006


Giovanni Meo Zilio foi Professor Emérito de Literatura Hispano-Americana na Universidade de Veneza. Publicou ensaios e artigos sobre o assunto do qual é estudioso.