A Nossa Língua
Nossos antepassados, aqui chegados no último quarto do século passado, não eram, em sua grande maioria, italianos.
Paradoxal afirmação, quando “sabemos” que as três Colônias da Serra e a quarta de Santa Maria eram constituídas de “italianos”! Disse paradoxal porque a afirmação parece absurda, mas não é. Efetivamente, nossos antepassados não eram italianos. Quase todos os componentes das primeiras levas de imigrantes – pelo menos os adultos -, nasceram em território não italiano. Eram vênetos, lombardos, friulanos, trentinos, piemonteses...
Explico melhor.
O Norte da atual Itália era, na época em que esses imigrantes adultos nasceram, governados por estrangeiros, direta ou indiretamente (o fantoche Reino Lombardo-Vêneto, Império Austro-húngaro). Essa região passou a fazer parte efetiva da Itália, do reino da Itália, tão somente em 1859 (o Piemonte e a maior parte da Lombardia), em 1866 (o Vêneto, o Friuli e o resto da Lombardia), como consequência da Unificação, e em 1918 (o Trentino e a Venécia Júlia), como resultado da Primeira Grande Guerra. Antes dessas datas, essas regiões nunca haviam sido Itália, pelo simples fato que a Itália, como país, jamais havia existido! Portanto, os nossos “velhos”, que nasceram sob outras bandeiras e nacionalidades foram “tornados” italianos. Não o eram de fato! Insisto: eram vênetos, lombardos, friulanos, trentinos, istrianos, ...
Cada um falava o idioma de sua cidade, de sua província, de sua região, isto é, utilizavam falares vênetos – belunês, trevisano, vicentino, veronês, veneziano... -,os vênetos; idiomas lombardos – mantuano, cremonês, milanês -, os lombardos; dialetos da língua friulana, os friulanos; um vêneto arcaico, os istrianos; o trentino – variante do vêneto -, os tiroleses; falares piemonteses, os que vieram do Piemonte. Praticamente ninguém falava o toscano, transformado em língua oficial italiana com a Unificação. Basta dizer que, em 1870, em toda a Itália, menos de 2% da população falava toscano, o idioma oficial, e menos de 1% sabia escrevê-lo!
Com isso, quero reforçar o que já disse: nossos antepassados não eram italianos! Eles não eram portadores de uma cultura italiana! Insisto: eles eram vênetos, ou lombardos ou friulanos ou trentinos ou piemonteses e possuíam a sua própria cultura, própria deles, de suas regiões, que nada têm a ver com as culturas das outras regiões que hoje constituem a Itália. (Não existe, ao meu ver, uma nação italiana, mas muitas nações dentro de um pequeno-grande pais denominado Itália).
Pois essa gente, que pertencia a “nações” diferentes, que falava idiomas diferentes e que era portadora de culturas diferentes, ao chegar à “terra prometida”, foi assentada em colônias, linhas e travessões, no meio da selva inóspita, ao bel prazer do “chefe” da Colônia. Assim, um trentino de Primiero passou a ter por vizinhos um vêneto de Oderso e um lombardo da Mântua. Era preciso comunicar-se, entender-se. Era uma questão de sobrevivência! Foi dessa necessidade de comunicar-se, para poderem-se auxiliar, para sobreviver, que nasceu nosso belo idioma, o talian ou vêneto brasileiro, mescla bem dosada dos falares de nossos antepassados, com a língua do país de adoção, o português.
O talian, a koiné aqui surgida, que permitiu que piemonteses, treninos, friulanos, lombardos e a maioria veneta pudessem entender-se, não nasceu de repente e nem por decreto. Passaram-se anos e anos antes de tornar-se a verdadeira língua de comunicação em que se transformou. Os sotaques característicos de cada região persistiram por muito tempo. Os casamentos mistos – vênetos versus lombardos, trentinos versus friulanos – permitiram que, mais rapidamente, se uniformizasse a koiné. Algumas palavras, talvez por soarem estranhamente a certos participantes do grupo, foram sendo substituídas quase sempre pela correspondente portuguesa, embora devidamente venetizada, é claro! Em certas linhas onde a predominância fosse lombarda, por exemplo, a língua de comunicação local assumia uma forma acentuadamente lombarda, mas nas vilas (nte i paesi), em vista da preponderância veneta, apresentava já no inicio do século, forma semelhante ao talian atual. A inclusão de mais termos portugueses se acentuou com o desenvolvimento tecnológico: as novas palavras entraram íntegras no linguajar local, embora com sintaxe taliana.
Nos anos de 30 e 40, antes que o Brasil declarasse guerra ao Eixo (Alemanha – Itália – Japão), em toda a região dita de colonização italiana do Rio Grande do Sul, o talian era não apenas a língua mais falada, mas praticamente a única, pois apenas os mais velhos ainda utilizavam seu “dialeto” de origem, e pouquíssimos eram aqueles que se “defendiam” em português. Os professores (maestri), quase todos taliani, embora quisessem ensinar em português ou em italiano (leia-se toscano), não o conseguiam pelo simples fato de desconhecerem esses idiomas. É claro que havia exceções, mas eram exceções! Assim o nosso idioma, o talian, ficava cada vez mais forte – porque era ensinado! – e cada vez mais nosso.
Com a guerra iniciou-se o nosso calvário: não podíamos mais fazer uso de nossa língua materna! Muitos dos que se aventuraram a fazê-lo sofreram as consequência: foram presos. Nos tornamos gringos (particularmente, abomino esta expressão. Considero-a tremendamente depreciativa), isto é, estrangeiros em nossa própria pátria! Os mais renitentes, além da cadeia, eram chamados de Quinta-colunas, isto é traidores!
E, a partir de então, muitos baixaram a cabeça e sentiram vergonha de falar a nossa língua; hoje, inclusive, fingem nem sequer entendê-la. Pobres coitados! Deveriam ter orgulho, não vergonha. Um que fala tão somente uma língua é pouco mais que mudo! ( A não ser que seja o inglês, dada a importância atual deste idioma). Nós que, além do português, falamos o talian, sabemos mais do que aqueles que falam exclusivamente o português, não acham? Imaginem, ter vergonha de falar o idioma que, por mais de mil anos, foi a língua oficial da “Sereníssima” República de Veneza! Seria simplesmente ridículo, se não fosse tão trágico. (Para os que não são “chegados” à História, um lembrete: Portugal não existia, e muito menos a língua portuguesa, quando os vênetos já dominavam as águas interiores do mar Adriático ao mar Negro, e sua língua, pouco diferente do nosso talian, era língua de comunicação nos portos e entrepostos comerciais!)
Os jovens – pessoas, países, nações – costumam cometer um grande erro: pensam que sabem tudo! E como tudo sabem, desprezam tudo aquilo que cheire a ontem, e pior ainda, a anteontem.
- Falar Vêneto? Isso é coisa de velho e de colono ignorante! Eu falo português e para mim basta!
Coitados, não sabem o que dizem. Que Deus Nosso Senhor os perdoe!
Alguém já disse que se a gente só consegue expressar as emoções mais profundas utilizando a língua materna. Santa verdade! Do carinho ao desprezo, da oração à blasfêmia, do amor ao ódio, do pasquim ao poema, são mais fortes, mais intensos, quando sussurrados/gritados/escritos/grafados na língua materna que aprendemos no colo de nossas mães, sentados nos joelhos de nossas avós! O talian me soa como uma música! É a língua do coração, a minha língua, a língua com a qual consigo expressar meus melhores/piores sentimentos. Ela me lembra a primeira infância, a adolescência, o tempo de liberdade, o não compromisso.
E então, desrespeitosamente, dizem que minha língua é um patuá de colonos ignorantes, de pobres coitados, que é um dialeto de segunda categoria! Será que essa gente enlouqueceu? O talian é a “nossa” língua e nós temos a obrigação não apenas de utilizá-la, mas também ensiná-la, a fim de que a mesma se perpetue, preservando dessa maneira a “nossa” cultura.
- Agora eu não falo mais o “dialeto”. Estou aprendendo italiano, o italiano gramatical!, disse-me um conhecido.
- Bravo! Respondi-lhe. Quanto mias línguas falares, mais saberás e maior facilidade terás em aprender outros idiomas! Mas não deverias deixar de falar a nossa língua, o vêneto brasileiro, que pode inclusive auxiliar-te a aprender não apenas o italiano, mas, e principalmente, as línguas irmãs do talian, o francês e o espanhol.
- Mas não é o que minha professora nos disse. Ela nos informou que devemos “esquecer o dialeto”, se quisermos aprender corretamente o italiano!
Santa ignorância! Isso contraria toda e qualquer técnica de aprendizagem de idiomas!
Depois de muito pensar, dei-me conta que não se trata apenas de ignorância, mas de uma bem orquestrada forma de tentar destruir/substituir a nossa cultura. Será que estão ressurgindo os movimentos fascistas? Temos ainda bem presentes as tropelias varguistas, aqui, e mussolinescas, lá. – as ínguas e culturas regionais devem ser banidas! Lembram?
Com tantas maneiras de “vender” a importância de conhecer-se o italiano optam por menosprezar os outros idiomas. Convenhamos, é um não entender nada de marketing!
Poderiam dizer, por exemplo: “O italiano é a língua mais sonora do mundo!”, ou, Alguém já disse que se a gente só consegue expressar as emoções mais profundas utilizando a língua materna. Isso seria suficiente. Muita gente dedicaria algumas horas por dia para dominar esse belo idioma. Apenas não inventem que é a língua de nossos antepassados, pois é mentira.
Todos nós deveríamos falar com fluência, pelo menos, uma outra língua, além da nacional. Tanto pode ser o inglês, o espanhol, o fancês, o alemão, alguma língua eslava...ou, por que não, o nosso talian?
Se quisermos manter nossa cultura – e temos o dever de fazê-lo -, devemos ensinar aos jovens a nossa língua, pois, enquanto nossa língua viver, nossa cultura não perecerá.
Parte do texto de Darcy Loss Luzzatto retirado do livro "Nós, os ítalo-gaúchos", coordenado por Mário Maestri, 1996.