Médico com Traje especial de proteção
No final da alta Idade Média, a população européia continuava aumentando criando uma demanda cada vez maior por novas terras para serem cultivadas. Muitas florestas estavam sendo derrubadas para abrir espaço para essas novas plantações. Mas, já no final do século XIII, início da baixa Idade Média, em toda a Europa Ocidental, as terras mais férteis já estavam cultivadas e os homens também passaram a aproveitar as terras marginais, menos produtivas, devido possuirem um solo menos fértil.
A produção de alimentos não era mais suficiente para uma população em crescimento e o aparecimento da desnutrição tornou-se cada vez mais comum. À partir do século XIV houveram anos de colheitas fracas, como o período entre os anos de 1315 e 1320, quando então a fome definitivamente apareceu.
Distribuição de alimentos em Florença em tempos de fome
(miniatura do Maestro del Biadaiolo, século XIV)
O século XIV também se caracterizou por ser um período de contínuas crises para o comércio. Na Europa houve falta de metais preciosos, diminuindo a quantidade de dinheiro em circulação que se tornou insuficiente. Também as trocas com o Oriente se tornaram mais difíceis, devido principalmente a divisão do império mongol quando regiões inteiras foram devastadas por guerras.
A crise comercial e o empobrecimento de uma grande parte da população desencadearam uma crise no setor de artesanato, devido a diminuição pela procura desses produtos e a produção de tecidos em Florença passou de cerca de 100.000 peças para 70 a 80.000, entre os anos de 1336 e 1338.
A crise também afetou o mundo das altas finanças, em particular cidade de Florença, onde os seus ricos bancos haviam se transformado em verdadeiras empresas multinacionais e nessa cidade tinham as suas sedes. Essas empresas bancárias possuíam capitais enormes sendo até capazes de emprestar dinheiro aos reis de toda a Europa, isso em troca de privilégios que permitiam aumentar ainda mais o seu enriquecimento. Muitos bancos florentinos, e também alguns italianos, começaram a falir um após o outro, uma vez que os soberanos eram incapazes de devolver as somas de dinheiro que haviam recebido por empréstimo.
Essa recessão econômica teve efeitos em todas as atividades de trabalho e causou um empobrecimento da população e uma deterioração geral das condições de vida.
O pagamento dos trabalhadores assalariados do município de Siena em uma Biccherna, obra da oficina de Sano di Pietro (século XV)
Na Ásia, em meados do século XIV, teve início uma epidemia de peste, uma doença transmitida aos seres humanos por pulgas de ratos, que quando picavam o homem, injetavam uma bactéria no sangue, a chamada Yersinia pestis, derivada do nome de Alexandre Yersin, o pesquisador que a descobriu em 1894. É um organismo muito pequeno e invisível a olho nu. Naquela época ninguém sabia de sua existência. A praga, no entanto, já era conhecida de muito tempo, tendo surgido inúmeras vezes já em épocas mais antigas e mesmo no início da Idade Média, como a peste de Roma do ano de 590 d.C.
Elas desapareceram por longos tempos porque as trocas comerciais de mercadorias entre regiões distantes haviam diminuído bastante. No século XIV, no entanto, com os grandes navios que atravessavam os mares se tornaram um veículo adequado para proliferação de ratos. Também as grandes caravanas de mercadores e de peregrinos que se dirigiam para a Ásia, tinham seus pontos de parada que se tornavam adequados para a proliferação de ratos e a disseminação da praga.
Nessas condições, a doença foi capaz de se espalhar da Ásia para a Europa em pouco tempo, surgindo na Mongólia, logo passando para a China em 1333, chegando à Pérsia e à costa do Mar Negro no ano de 1347, depois à Sicília, à Messina e dessas importantes cidades portuárias se espalhando por toda a Europa ocidental nos anos de 1348 a 1351.
É comumente chamada de Peste Negra, pela cor escura dos furúnculos que causava. A doença tinha duas formas de apresentação, uma a pulmonar e outra que formava bubões, que eram abscessos, muito purulentos, que apareciam em várias partes do corpo, especialmente no pescoço, axilas e região inguinal. A maioria dos infectados morria em três dias e ela não fazia distinção de idade, sexo ou condição social.
Pessoas com peste bubônica em uma ilustração de 1411 na Bíblia de Toggenburg
Na Europa dessa época, os frequentes movimentos de comerciantes e de exércitos levaram a uma rápida propagação da doença para todos os países. Como ninguém conhecia as suas causas, faziam tratamentos inúteis, sendo alguns até mesmo prejudiciais. Se criaram inúmeras poções e remédios para combate-la: misturas, cataplasmas, aromas, amuletos contendo arsênico, estanho, mercúrio, veneno de cobras, sapos, escorpiões, garras de caranguejo, limalhas de casco de cavalo, cataplasmas contendo gordura de pato, mel, fuligem, melaço, gemas de ovos e óleo de escorpião e muitos outros que se mostraram também totalmenteineficazes. A Igreja dizia que esta doença era um castigo de Deus pelos pecados cometidos e receitava orações e punições expiatórias para evitar o contágio. Tudo sem conseguir freiar o aumento do número de mortos que chegavam aos milhares em poucos dias. Quando a doença atingiu os conventos e exterminava os padres, bispos e cardeais, ocorreu uma quebra da hierarquia da Igreja, padres apavorados abandonavam os conventos e se recusavam entrar na casa dos doentes para ministrar-lhes os sacramentos. A população, acreditando ser o fim do mundo, se entregava a toda sorte de libertinagens e bebedeiras, fugindo para escapar da morte pelas estradas em direção ao interior. Pelo caminho saqueavam as propriedades abandonadas, roubando os pertences daqueles ali jaziam mortos. Com isso se contaminavam também e disseminavam a doença para outras vilas e cidades. Muitas dessas, fechavam os portões ou proibiam a passagem e a entrada de pessoas desconhecidas, tentando limitar o ingresso de forasteiros que aos milhares chegavam.
Como ninguém sabia como a peste era transmitida, não era possível tomar as precauções necessárias para evitar o contágio e muitas vezes acabavam piorando a situação. A doença se espalhava rapidamente por todas as vilas e cidades e em pouco tempo os mortos podiam ser contados aos milhares. Não havia lugar nos cemitérios e os corpos inicialmente eram enterrados e grandes fossas comum rapidamente abertas. Em algumas vilas os corpos ficavam insepultos, por falta de pessoas que fizessem este trabalho. Em média a peste ceifou a vida de dois terços da população de toda a Europa.
Vítimas da peste negra nos Annales de Gilles le Muisit (século XIV)
O contágio também foi favorecido por más condições de higiene pessoal e das cidades daquela época, isso em todos os países.
A maioria da população européia dessa época sofria de uma desnutrição crônica o que reduzia a formação de anticorpos e as defesas naturais contra a praga.
Onde quer que tenha ocorrido a praga causou enormes estragos e diminuição da população. De 1348 a 1352 a epidemia matou 30 milhões de pessoas de uma população antes estimada de cerca de 100 milhões de habitantes, um terço da população européia, despovoando regiões inteiras e destruindo muitas aldeias, que foram abandonadas pelos poucos sobreviventes.
Pacientes com peste bubônica em miniatura do século XV
Após a grande epidemia de 1348, a praga permaneceu de forma endêmica na Europa, continuando a aparecer a cada década em quase todos os lugares, até aquela que atingiu a cidade francesa de Marselha entre os anos de 1720 e 1721.
As várias epidemias que atingiram a Europa a partir de meados do século XIV introduziram um novo conceito, que nos dias de hoje nos parece bastante natural, que nas epidemias o atendimento à população é dever da autoridade pública que governa uma cidade ou um estado, os quais tem a tarefa de implementar medidas preventivas e gerenciar as emergências.
As cidades italianas foram as primeiras da Europa que tiveram que lidar com a epidemia de peste, com uma série de decretos e regulamentos, os quais, por três séculos, foram um ponto de referência para o resto dos países europeus.
Já em 1348, nas cidades de Veneza, Florença e Pistóia, estabeleceram-se algumas normas oficiais como a profundidade das covas para enterrar o mortos da peste, para que o ar não fosse contaminado por cadáveres apressadamente enterrados. Foi proibido por lei qualquer contato entre as cidades que deveriam ficar isoladas; foi proibido o comércio de tecidos provenientes de uma área infectada, os quais seriam queimados em praça pública caso descobertos pelas autoridades; foram tomadas severas medidas de como abater os animais e como vender a carne. Apesar dessas medidas não foi possível evitar a disseminação da doença e o contágio das populações.
Gravura do século XIX por Luigi Sabatelli, representando a praga de 1348 em Florença
Entre os personagens mostrados está Giovanni Boccaccio (à esquerda) que descreveu a praga nas primeiras páginas do Decameron.
A primeira medida que provou ser parcialmente eficaz foi impor uma quarentena, isto é, um período de isolamento de quarenta dias, para aqueles que chegavam de uma outra cidade. Tinha como finalidade verificar se ele já não estava contaminado. Como exemplo o caso de Ragusa no ano de 1377.
Outra medida importante, os doentes com peste foram isolados em prédios, esses denominados lazaretos, inicialmente concebidos para isolar os leprosos. Veneza foi a primeira cidade a ter um lazareto permanente, isso já no ano de 1423, logo seguida em poucos anos por Pádua, Vicenza, Brescia e Treviso.
Ilustração retratando o antigo lazaretto em Veneza, construído em 1423
No século XV, em muitas cidades européias, foram criados postos de saúde, ou órgãos de saúde pública destinadas a lidar com emergências relacionadas à epidemia de peste: em Florença em 1448, Mantova em 1463, Veneza em 1478, a tarefa de controle foi assumida em 1486 com a criação de um magistrado de saúde especial.
As calamidades do século XIV e, em particular, a praga não causaram apenas uma redução acentuada da população: elas levaram à profundas mudanças na mentalidade e na maneira de ver a vida e a morte.
Antes do século XIV, as representações da morte, por exemplo na pintura e na escultura, não eram muito frequentes, porque para os cristãos de então a morte não é o fim de tudo, mas o começo de uma nova vida. No entanto no século XIV, a morte tornou-se uma realidade muito mais frequente e temida: a peste poderia matar uma pessoa em um único dia, como é o caso da peste pulmonar, que se transmite por contágio direto sem necessidade da picada da pulga e de outras epidemias que também causaram massacres reais. Todas cidades, todas famílias eram continuamente ameaçadas pela morte. A idéia da morte, portanto, tornou-se muito mais presente no contesto familiar e a sua representação nas artes mais frequentes. Essas assumiram principalmente duas formas mais frequentes: a dança macabra e o triunfo da morte.
Detalhe da dança macabra afrescada na abadia de Chaise-Dieu (França) no século XV
A dança macabra é uma cena na qual a morte, representada por um dançarino vestido de esqueleto, que conduzia homens e mulheres, de todas as classes sociais. Esqueletos e pessoas se revezavam, lembrando ao espectador que a morte vem para todos.
O triunfo da morte representava a morte, sempre como um esqueleto, armado com uma foice ou um arco, com o qual tirava a vida dos homens, avançava entre as pessoas, que nem sempre percebiam a sua chegada e morriam antes de ter tempo para o arrependimento dos seus pecados.
Triunfo da morte, afresco de 1485 por Giacomo Borlone de Buschis no Oratorio dei Disciplini di Clusone (Bergamo)
Muitos pensavam que a fome e a epidemia eram um castigo enviado por Deus pelos pecados humanos: os homens haviam se desviado dos ensinamentos de Cristo e Deus os atingiu, fazendo com que eles morressem. Obviamente, é uma teoria ridícula e desprovida de qualquer base científica, mas não desapareceu completamente da mentalidade humana, pois, na década de oitenta do século XX, por exemplo, quando foi descoberta a existência de uma nova doença, a AIDS, que era transmitida através das relações sexuais, alguns fanáticos religiosos a propuseram novamente, como explicação para uma doença inicialmente desconhecida pela comunidade médica.
No século XIV, pensava-se em organizar grandes procissões, nas quais toda a massa de fiéis participava: as relíquias mais importantes eram expostas e conduzidas pelas ruas da cidade, enquanto as pessoas oravam e invocavam a misericórdia divina. De fato, as procissões não só não puderam impedir a propagação da praga, mas também pioraram a situação, pois favoreceram o contágio entre a multidão de fiéis.
Grupos de flagelantes foram formados novamente, chicoteando-se nas ruas e praças das cidades, para expiar seus próprios pecados e os dos outros e para invocar o perdão de Deus.
Uma procissão de flagelantes em miniatura das Crônicas de Egídio Li Muisis (1349)
Os penitentes que se submetiam a auto flagelação e outros grupos acusaram os judeus de serem responsáveis pela praga. Eles acreditavam que os judeus com seus pecados atraíam a vingança de Deus à todos os homens e que somente exterminando todos os judeus ou forçando-os a se converterem, a epidemia seria interrompida.
Até os leprosos eram frequentemente considerados responsáveis pelas pragas e eles, assim como muitos judeus, foram acusados de envenenar a água dos poços e conspirar para matar os cristãos. Logo após o aparecimento da fome, no início do século, houveram tumultos contra leprosos e judeus. Por exemplo, no ano de 1321, na França, eles foram acusados de organizar uma grande conspiração para tomar o poder em todos os estados cristãos. Como resultado dessa conspiração imaginária, muitos judeus e leprosos foram mortos pela multidão ou executados por ordem do rei. Os leprosos sobreviventes foram forçados a se internarem nas colônias de leprosos e da qual não podiam mais sair. O número de leprosos diminuiu ao longo do século XIV, por razões desconhecidas para nós, de modo que os leprosários foram esvaziados e transformados em lazzaretos.
Judeus enviados para a estaca e queimados durante uma epidemia
A epidemia da peste favoreceu a disseminação do culto de alguns santos, em particular homens e mulheres que se voltaram para São Sebastião, para invocar sua proteção contra a peste. Martirizado pelos romanos com flechas, o Santo teria sobrevivido à tortura, mas, teve todo o corpo coberto de pústulas, que depois lembraram a peste.
No século XV, São Roque era muito venerado, ele viveu no século XIV e segundo a lenda, durante a peste teria ficado ficado doente e sido curado por um anjo. Outros santos a quem o povo se dirigia São Lázaro, Santo Adriano, o eremita Santo Antônio e os Santos Cosme e Damião.
São Roque visita as vítimas da peste, detalhe da pintura de Jacopo Bassano (1560-1580)
Assim, o povo começou a espalhar a imagem do anjo protetor da cidade: pensava-se que cada cidade estava sob a proteção de um anjo, a quem os fiéis se voltariam para pedir que removesse a epidemia e qualquer outra calamidade que a atingisse.
Durante esse mesmo período, também se difundiu a idéia de que todo homem tinha o seu próprio anjo protetor, chamado anjo da guarda, que o protegeria durante toda a sua vida e o ajudaria no momento da morte. Após a morte, o anjo da guarda e o diabo lutavam pela alma dos mortos.
O Anjo da Guarda, pintura de Guercino (século XVII)