A Jornada de Enrico Secchi
Enrico Secchi nasceu em 1848, no comune de Concordia sulla Secchia, um pacato vilarejo encravado nas planícies férteis da província de Modena, na região da Emilia-Romagna. A paisagem era marcada por campos que pareciam se estender até o horizonte, pontuados por vinhedos e árvores que murmuravam com o vento. Apesar da beleza bucólica, a vida ali era dura. Os anos que se seguiram à unificação italiana trouxeram mais desafios do que soluções: impostos elevados, terras insuficientes e a sombra constante da pobreza corroíam o espírito dos camponeses.
Enrico cresceu em uma casa simples, feita de tijolos envelhecidos pelo tempo, onde os dias eram longos e o trabalho, exaustivo. Seu pai, Giuseppe, sonhava em herdar terras maiores, mas foi consumido pela realidade de dívidas e colheitas incertas. Sua mãe, Maria, cuidava da casa e dos filhos com mãos calejadas, mas amorosas, enquanto alimentava os sonhos de um futuro melhor para a família. Aos 27 anos, Enrico era um homem magro, mas robusto, com olhos castanhos que refletiam tanto cansaço quanto determinação. Ele havia escutado, nas tavernas do vilarejo e nos sermões da igreja, histórias de um lugar distante chamado Brasil, onde terras férteis eram distribuídas a quem estivesse disposto a cultivá-las. Era uma promessa quase impossível de ignorar. O medo do desconhecido rivalizava com a miséria do cotidiano, e logo, o chamado da aventura falou mais alto. Quando decidiu partir, Enrico empacotou poucos pertences: um par de botas gastas, algumas mudas de roupa, uma foto de família e um pequeno caderno de capa dura. Este caderno, que inicialmente seria usado para anotar despesas e planos de cultivo, logo se tornaria um diário íntimo, onde ele registraria as alegrias e as dores de sua jornada. Antes de embarcar, escreveu na primeira página, com letras tremidas:
“Deixo minha terra não por escolha, mas por necessidade. Que este caderno guarde minha história, para que um dia meus filhos saibam de onde vieram.”
Em novembro de 1875, Enrico embarcou em Gênova, a bordo de um vapor abarrotado de homens, mulheres e crianças, todos carregando sonhos e temores. Ao se afastar do porto, viu pela última vez as colinas que moldaram sua infância desaparecerem no horizonte. Enquanto a Itália ficava para trás, uma nova vida, cheia de incertezas e possibilidades, se descortinava diante dele.
Primeiras Impressões
Na primeira carta enviada à família, ainda durante a travessia, Enrico tentava capturar a essência do que sentia diante da vastidão do Atlântico. A caneta tremia em sua mão enquanto descrevia um mundo que parecia infinito, como se o mar fosse um espelho das incertezas em seu coração.
“A água se estende até onde os olhos podem alcançar, uma imensidão azul que nos faz pequenos e insignificantes. Quando o sol se põe, o horizonte parece arder em chamas, e as estrelas, mais brilhantes do que jamais vi na Itália, tornam-se nosso único consolo. É um espetáculo grandioso, mas também assustador. Rezo todas as noites pelo destino que nos espera, mas confesso, caro pai, que o medo é um companheiro constante nesta jornada.”
Ele continuava, revelando as conversas e os sentimentos que permeavam os dias a bordo:
“No convés, somos uma mistura de vozes, línguas e histórias. Alguns falam de fortuna – promessas de terras onde o solo é tão fértil que basta jogar uma semente para que nasça uma árvore. Outros, porém, murmuram sobre desespero – viagens anteriores onde muitos sucumbiram à doença antes mesmo de avistar terra firme. Estamos todos em busca de algo maior do que aquilo que deixamos para trás, mas ninguém sabe ao certo o que encontraremos ao chegar. Às vezes, a dúvida me consome: será que estamos apenas fugindo de uma miséria para encontrar outra?”
Enrico encerrava a carta com uma nota de esperança, talvez mais para si mesmo do que para quem a receberia:
“E, no entanto, enquanto o navio balança sobre as ondas, sinto uma pequena fagulha de coragem. Não somos apenas passageiros; somos sonhadores, lutadores, pioneiros. Por mais vasto que seja este oceano, acredito que há algo aguardando por nós do outro lado. Continuem rezando por mim, como eu rezo por vocês, e prometo que trarei notícias melhores na próxima vez que escrever.”
Essa carta, dobrada com cuidado e guardada para ser enviada na primeira oportunidade, era um reflexo sincero do homem que Enrico estava se tornando: alguém moldado não apenas pelas dificuldades, mas também por uma fé inabalável no futuro. Ao chegar à colônia de Porto Real, no interior do Rio de Janeiro, encontrou terras inexploradas e um cotidiano que misturava esperança e labuta incessante. Ele narra com detalhes os primeiros meses:
“As terras são vastas e férteis, mas o trabalho é árduo. Cultivamos a cana-de-açúcar com o suor de nossas mãos e aguardamos que as promessas de ajuda do governo se concretizem. Ainda assim, há algo de libertador em plantar algo que, um dia, será apenas nosso.”
A Criação da Usina
A demora na chegada de uma usina de açúcar quase comprometeu a primeira safra de cana, lançando a colônia em uma atmosfera de inquietação e desânimo. Enrico descreveu em seu diário os dias de espera como uma tortura silenciosa:
“Os campos estavam prontos, as folhas verdes da cana balançavam sob o sol intenso, mas em nossos corações, a preocupação crescia como erva daninha. Cada dia que passava sem uma solução parecia um golpe contra nosso trabalho árduo. Alguns colonos começaram a falar em abandonar as terras, enquanto outros, mais obstinados, se reuniam para discutir alternativas.”
A comunidade, determinada a não perder o fruto de meses de esforço, mobilizou-se com energia renovada. Escreveram cartas, enviaram emissários e pressionaram a administração da colônia. A resposta chegou quando tudo parecia perdido. Enrico relata o momento com alívio e entusiasmo:
“Quando soubemos que um engenheiro viria do Rio de Janeiro, foi como se um peso tivesse sido retirado de nossos ombros. Ele chegou com uma máquina simples, rudimentar, mas cheia de promessas. No centro da colônia, sob o sol escaldante, erguemos uma estrutura coberta com telhas de zinco. Era uma construção modesta, mas para nós, parecia um templo dedicado à esperança.”
Ele continuou descrevendo o renascimento da colônia:
“A máquina foi montada com pressa, mas funcionava como uma orquestra que acabara de ser afinada. Logo, o ar estava impregnado com o aroma adocicado do mosto fermentando em grandes tinas. Era um cheiro que nos embriagava não apenas pelo que representava, mas pelo que significava: a transformação do que poderia ter sido um fracasso em uma vitória.”
A aguardente, produto da engenhoca improvisada, tornou-se símbolo de resiliência e superação:
“Naquela noite, bebemos o primeiro gole de aguardente como se fosse um cálice sagrado. Cada gota era um lembrete de que, apesar das dificuldades, éramos capazes de encontrar soluções e seguir em frente. A colônia, que antes estava mergulhada em ansiedade, ganhou um novo fôlego. Pela primeira vez, senti que éramos mais do que sobreviventes – éramos construtores de um futuro.”
Esse episódio marcou um ponto de virada na história da colônia. A improvisação e o espírito coletivo não apenas salvaram a safra, mas solidificaram os laços entre os colonos, preparando-os para os desafios que ainda estavam por vir.
Visitas Ilustres
Porto Real não era apenas um refúgio para os colonos que buscavam recomeçar suas vidas em terras distantes; ocasionalmente, transformava-se em um palco de eventos que enchiam os habitantes de orgulho e esperança. Enrico registrou com detalhes um desses momentos memoráveis: a visita do Imperador Dom Pedro II e a celebração de uma missa conduzida pelo carismático Frei Luigi di Piazza.
“A notícia da visita de Sua Majestade espalhou-se como fogo em campo seco. Todos nós, colonos, largamos nossos afazeres e nos reunimos para preparar a recepção. Ergueram-se arcos decorativos à entrada da colônia, adornados com folhagens frescas e ferramentas agrícolas reluzentes, símbolo de nosso trabalho árduo. Cada detalhe parecia uma tentativa de mostrar que, apesar das dificuldades, éramos dignos daquela visita ilustre.”
Quando o cortejo imperial chegou, um silêncio reverente tomou conta da multidão reunida. Enrico descreveu sua primeira impressão do Imperador com admiração:
“Dom Pedro II é um homem de porte majestoso, mas com uma serenidade que nos cativou a todos. Ao descer de sua carruagem, cumprimentou-nos com um olhar atento, como se quisesse absorver cada detalhe de nossas histórias e rostos. Quando lhe contamos sobre nossas lutas e conquistas, ele falou com uma voz firme e compassiva, dizendo que nossa resiliência era um exemplo de coragem e determinação. Aquelas palavras, vindas do próprio soberano, foram como um bálsamo para nossos espíritos cansados.”
A celebração culminou na missa conduzida por Frei Luigi di Piazza, um missionário capuchinho que havia conquistado o respeito e a devoção dos colonos. Enrico relatou a cerimônia com emoção palpável:
“Frei Luigi vestia uma túnica simples, mas suas palavras carregavam um peso que parecia transcender o tempo e o espaço. Ao celebrar a missa, ele falou de perseverança, de fé e de comunidade. Por um breve momento, parecia que as paredes daquela capela improvisada desapareciam, e estávamos de volta à Itália, na pequena igreja onde tantos de nós haviam sido batizados.”
Ele concluiu o relato com um tom de gratidão e esperança:
“A visita do Imperador e as bênçãos de Frei Luigi nos trouxeram mais do que reconhecimento; trouxeram uma renovação de forças. Foi um lembrete poderoso de que, embora estivéssemos longe de nossa terra natal, não estávamos esquecidos, nem por Deus, nem pelos homens. Saí daquela missa com a certeza de que, por mais difíceis que fossem os dias à frente, encontraríamos uma maneira de perseverar.”
Aquele evento permaneceu gravado na memória da colônia, não apenas como um marco de sua história, mas como uma fonte duradoura de inspiração para todos que testemunharam aquele dia inesquecível.
O Papel da Comunidade
A força de Porto Real estava em sua união. Enrico descreveu com orgulho o esforço coletivo para receber as autoridades:
“Reunimo-nos em minha casa, decidimos erguer arcos decorados com folhagens e ferramentas de cultivo. Era nossa maneira de mostrar ao mundo que, apesar das adversidades, éramos um povo unido e determinado.”
Reflexões Finais
Anos mais tarde, já com as mãos marcadas pelo tempo e os cabelos tingidos de prata, Enrico escreveu em uma das últimas páginas de seu diário, refletindo sobre a extraordinária jornada que havia vivido. Suas palavras, gravadas com caligrafia agora um pouco trêmula, eram um testemunho de sua resiliência e de tudo o que havia aprendido:
“A vida aqui nunca foi fácil. Cada pedaço de terra cultivada exigiu mais do que apenas esforço físico; exigiu sacrifício, perseverança e, sobretudo, fé. Cada colheita foi uma vitória que comemorávamos com humildade, conscientes de que a próxima safra poderia nos testar novamente. Cada lágrima derramada nos dias difíceis foi uma lembrança do que deixamos para trás, mas também uma ponte para o que construímos aqui. E cada riso compartilhado com meus filhos e netos foi um presente que o destino me concedeu por ter ousado atravessar o oceano.”
Enrico fez uma pausa para reler suas palavras antes de continuar. As memórias de sua infância em Concordia sulla Secchia misturavam-se com as imagens dos campos verdejantes de Porto Real. Ele sabia que havia algo de eterno naquilo que havia deixado para trás, mas também reconhecia o valor do que havia conquistado:
“Sinto saudades da Itália – das vozes familiares, dos sinos da igreja ao amanhecer, das vinhas que se estendiam até onde a vista alcançava. Mas não há arrependimento em meu coração. A terra que encontrei aqui, que cultivei com minhas próprias mãos, tornou-se mais do que meu sustento; tornou-se minha casa. Aqui, onde os sonhos de um jovem imigrante ganharam forma, onde minhas raízes se aprofundaram e minha família floresceu, encontrei algo que jamais poderia ter imaginado: um novo lar.”
Ele concluiu com uma reflexão que parecia encapsular toda a sua filosofia de vida:
“Talvez não seja o destino que define o homem, mas sua capacidade de seguir em frente. Olhar para o horizonte, mesmo quando ele parece inatingível, e dar um passo após o outro, mesmo que com medo. Foi isso que aprendi. Foi isso que me manteve vivo, e é isso que espero que minha família jamais esqueça.”
Aquela última página de seu diário, cuidadosamente escrita, tornou-se não apenas um registro de sua trajetória, mas um legado para as gerações futuras – um lembrete de que coragem, determinação e fé podem transformar qualquer terra estrangeira em um lugar que se possa chamar de lar.