A Jornada de Tommaso Bernardino no Brasil
Fazenda Santa Esperança, Interior da Província de São Paulo — Março de 1889
A bruma da manhã ainda não se dissipara quando Tommaso Bernardino apertou o terço entre os dedos calejados e olhou o horizonte: um mar de cafezais ondulando sob a luz dourada do sol nascente. Por um instante, quase esqueceu o que havia deixado para trás — as terras de Valdobbiadene, os sinos de Santa Maria Assunta, a voz da mãe pedindo para que ele voltasse em dois anos. Prometera. Sabia que mentia.
A Itália, mesmo unificada, era uma nação fraturada por dentro. Os campos estavam esgotados, os graneleiros vazios, e as mãos de Tommaso — fortes, firmes — não encontravam mais trabalho. A solução chegou como chegam os sussurros de esperança: cartas enviadas por conhecidos do outro lado do Atlântico, promessas de terra, comida farta e liberdade. A “Mèrica”, como diziam com sotaque pesado. Seu nome corria pelos vinhedos como prece ou maldição.
Embarcou no Porto de Genova, acompanhado da esposa Giulia e dos três filhos — um deles ainda no ventre materno. Trinta e dois dias depois, desembarcavam no porto de Santos, apenas para serem enviados, em trem sacolejante, para a capital paulista onde ficariam alojados na Casa do Imigrante. O destino final seria uma fazenda de café em Ribeirão Preto, no coração da província, ainda distante dali.
Parece que tinham chegado ao Brasil em um período conturbado. Ali, em vez do abrigo prometido, encontraram o inferno. Salões superlotados, mulheres sentadas no chão com filhos febris ao colo, crianças chorando a noite inteira. O avô de Tommaso, velho Pietro, sucumbiu à disenteria antes da terceira noite. Outros corpos saíram enrolados em panos. A Giulia, em desespero, pensou em fugir. Matteo, com a alma em pedaços, resistiu.
Então veio a revolta. Um motim feroz, nascido da fome e do descaso. Panelas foram viradas, comida jogada pelas janelas. O caldo grosso que fedia a ossos velhos, o pão embolorado — tudo foi pisoteado em meio ao tumulto. Empregados correram. Guardas chegaram. Militares da cavalaria tentaram conter a fúria. A multidão, sem armas, atacava com gritos, lágrimas, dentes. Matteo não levantou a voz, mas tampou os ouvidos dos filhos.
No mesmo dia, em São Paulo, explodiram protestos civis — a cidade clamava pela queda da monarquia. Rumores de cabeças cortadas e soldados abatidos alimentavam o pânico. A instabilidade política do Brasil era um labirinto, mas Matteo tinha outro tipo de urgência: sobreviver.
Foram finalmente levados a Ribeirão Preto, numa fazenda chamada Santa Esperança. Nome bonito, talvez poético demais. Pertencia a uma família paulista de ascendência portuguesa. Quem mandava de fato era o administrador, Marco Giordano, um italiano de Vicenza que há dez anos havia se reinventado nas terras tropicais. Giordano os recebeu com um sorriso duro. Ali não havia tempo para ilusões.
Os Bernardino foram alojados com outras cinco famílias, duas delas piemontesas e uma napolitana — grupo este que Tommaso, em silêncio, evitava. A velha divisão italiana pulsava nas entrelinhas: os do norte não confiavam nos do sul, e os do sul sentiam-se desprezados. Ainda assim, dividiam o mesmo fogão e a mesma solidão.
A casa era de madeira firme, quatro cômodos, telhas vermelhas moldadas ali mesmo, no barro espesso das margens do rio. Não havia luxo, mas havia abrigo. Aos sábados, um porco era abatido e a carne repartida entre os colonos — um gesto do patrão para manter a paz. A gordura, usada no preparo da polenta, dava sabor e memória aos pratos.
Tommaso trabalhava na roçada do café. O mato chegava à cintura, o sol não perdoava, mas o pagamento vinha em moeda estável. Nas primeiras semanas, acondicionou milho com palha nos grandes paióis, técnica indispensável naquele clima úmido. Depois foi para o cafezal, onde ganhava por mil pés limpos. As mãos sangravam. Os ombros queimavam. Mas não se queixava.
À noite, às vezes, ouvia-se sanfona na casa grande. Bailes misturavam colonos, escravos libertos e o próprio Giordano, que dançava com uma alegria quase suspeita. Os negros da fazenda — muitos ainda ligados às senzalas de outrora — acolheram os italianos com um tipo de gentileza silenciosa. Ensinaram onde caçar, como cortar lenha sem ferir a árvore, que planta curava febre.
Nem tudo era harmonia. Alguns colonos, especialmente os que haviam perdido filhos, mal saíam das casas. Falava-se de suicídios, de mães que amaldiçoavam o Brasil em dialetos extintos. Matteo, no entanto, criava raízes. Enterrou Pietro no alto da colina, de onde se via o campo de café. Ali prometeu ficar. Não por escolha, mas por lealdade aos que dependeriam dele.
As distâncias eram cruéis. A igreja mais próxima ficava a três léguas. Um padre apenas para várias fazendas. Missas rareavam. Matteo, outrora devoto, passou a rezar em silêncio, sentado sob as laranjeiras, pedindo forças. Sabia que a fé, como o milho no paiol, precisava ser bem guardada para resistir.
No final do primeiro ano, quando a colheita foi farta, Tommaso ergueu uma pequena cruz no quintal. Giulia havia dado à luz ali mesmo, entre paredes de madeira e cheiro de eucalipto. Batizaram o menino com o nome do avô: Pietro. E naquela criança, Tommaso viu — pela primeira vez — não uma lembrança da Itália perdida, mas uma semente do Brasil que nascia.
A partir daquele momento, compreendeu o que tantos antes dele haviam esquecido: que emigrar não era apenas partir. Era morrer de um lado para renascer do outro.
Sob o céu incandescente da América, Tommaso Bernardino não era mais apenas um camponês vêneto. Era pai, fundador, sobrevivente. E sua história, embora invisível nos livros, começava a se escrever entre os grãos vermelhos do café e as noites silenciosas das colinas paulistas.
Nota do Autor
Esta obra, A Jornada de Tommaso Bernardino no Brasil, é uma narrativa de ficção inspirada em histórias reais de milhares de italianos que, entre o final do século XIX e o início do século XX, deixaram para trás a pátria, a família e as raízes em busca de uma nova vida nas terras distantes da América do Sul.
Tommaso Bernardino, personagem central desta narrativa, não representa apenas um homem, mas uma multidão. Sua voz ecoa a de tantos outros camponeses, artesãos, viúvas, crianças e sonhadores que embarcaram em navios sobrecarregados de esperanças e incertezas. Através dele, revisitamos as agruras do navio, o estranhamento diante de uma terra selvagem e desigual, o peso do trabalho nas fazendas de café, os conflitos com os senhores e as autoridades, e também os laços de solidariedade que se formaram entre os imigrantes.
A Fazenda Santa Esperança, cenário simbólico da história, representa as contradições do sistema de colonização do Brasil: um espaço de promessas e armadilhas, de violência disfarçada de contrato, mas também de resistência, de reinvenção e de luta por dignidade. A narrativa busca, sem romantizar a dor, fazer justiça à memória desses homens e mulheres que, com suas mãos calejadas e seus silêncios eloquentes, ajudaram a construir o país que conhecemos hoje.
Ao leitor, ofereço não apenas uma história, mas um convite: o de mergulhar nas camadas de tempo e humanidade que moldaram nosso passado. Que a travessia de Tommaso Bernardino possa nos lembrar que toda migração é, antes de tudo, um ato de coragem.
Dr. Luiz Carlos B. Piazzetta