sexta-feira, 31 de outubro de 2025

Anna: Um Coração Entre Duas Terras



Anna: Um Coração Entre Duas Terras

Anna já tinha 19 anos quando embarcou com seus pais, Giuseppe e Maria, e seus dois irmãos mais novos, Carlo e Lucia, rumo ao desconhecido Brasil. A decisão de deixar Grignano Polesine, um pequeno e quase esquecido vilarejo na província de Rovigo, não foi fácil, mas tornou-se inevitável. O Vêneto, assolado por uma sequência de colheitas ruins e crises econômicas, já não oferecia sustento. A terra, dividida em pequenos lotes que mal rendiam o suficiente para alimentar uma família, não era capaz de acompanhar o crescimento populacional. 

Na casa modesta em que viviam, o frio do inverno entrava pelas frestas, e o calor do verão trazia consigo o cheiro agridoce do esforço agrícola que raramente era recompensado. Giuseppe, um homem de mãos calejadas e olhar esperançoso, passava as noites conversando com Maria sobre as cada vez mais frequentes histórias que corriam pelo vilarejo: terras vastas e férteis no Brasil, onde as famílias poderiam começar uma nova vida.

"Uma chance para os nossos filhos", ele dizia, olhando para Anna, Carlo e Lucia, enquanto Maria costurava, tentando esconder as lágrimas que escorriam silenciosamente. Apesar de suas reservas, ela sabia que permanecer significava assistir a família definhar lentamente. 

A viagem foi planejada às pressas, com os poucos recursos que tinham. Venderam os parcos pertences, guardaram as economias em um pequeno baú de madeira, e seguiram de trem até o porto de Gênova. Cada despedida no vilarejo era marcada por um misto de dor e esperança. Anna, embora jovem, já compreendia o peso daquela jornada. O olhar dela, fixo no horizonte, refletia uma mistura de ansiedade e determinação.

A bordo do navio, a realidade da decisão começou a se revelar. As condições eram precárias, com espaço limitado, alimentos racionados e o mar, imenso e intimidador, estendendo-se até onde os olhos podiam alcançar. Ainda assim, havia algo no brilho dos olhos de Giuseppe e na coragem silenciosa de Maria que mantinha a esperança viva. 

Anna sabia que aquela travessia era mais do que uma viagem física: era uma passagem para o desconhecido, uma ruptura com o passado e uma promessa de futuro. Enquanto o navio balançava ao ritmo das ondas, ela segurava firme a mão de Lucia, sussurrando histórias para distrair a irmã mais nova dos temores que também habitavam seu coração.

No silêncio da noite, deitada em um canto do convés, Anna olhava as estrelas e imaginava como seria a nova terra, com suas promessas de campos verdes, novos desafios e talvez... novas alegrias. Era uma partida dolorosa, mas também o primeiro passo em direção a um sonho que, mesmo distante, começava a tomar forma.

A travessia foi dura. Durante semanas confinados no porão do navio, enfrentaram o frio, a fome e as doenças. Anna ajudava a cuidar dos irmãos e dos outros pequenos que adoeciam durante a jornada. Finalmente, chegaram ao Brasil, onde foram levados para uma colônia agrícola em uma região isolada do interior do Paraná.

Os primeiros dias na colônia foram marcados pelo trabalho incessante. A terra, coberta por mata densa, precisava ser desbravada. Anna, ao lado de seus pais, trabalhava sem descanso, mas ainda encontrava tempo para organizar momentos de convivência com as outras famílias. Sabia que, em meio à dureza do novo lar, era importante cultivar a esperança.

Certo dia, durante uma celebração comunitária na pequena capela improvisada da colônia, Anna conheceu Pietro, um jovem com cerca de 25 anos, que havia chegado alguns meses antes com a mãe e três irmãos. Pietro era marceneiro, uma habilidade que aprendera com o pai, falecido a pouco tempo, e sua presença era valiosa na colônia, pois sabia construir móveis e ajudar a erguer as casas de madeira.

Anna e Pietro se aproximaram durante os encontros na capela e nas festas organizadas pela comunidade. Pietro era um jovem gentil e trabalhador, e seu jeito calmo conquistou Anna. Nas poucas horas de descanso, ele ensinava Anna e outras pessoas a usar ferramentas simples, o que ajudava na construção das casas. Pietro também era conhecido por sua habilidade em esculpir imagens religiosas, algo que o tornava querido pelo padre e pelas famílias da colônia.

Com o tempo, Pietro começou a ajudar a família de Anna na construção da sua casa. Durante esses dias, os dois trocavam confidências e risos. Ele contava histórias sobre sua terra natal, um pequeno comune próximo de Padova, enquanto Anna falava com saudade das noites tranquilas em Grignano Polesine.

A amizade logo se transformou em algo mais. Pietro, em suas visitas à casa da família de Anna, mostrava-se cada vez mais interessado na jovem. Giuseppe, o pai de Anna, aprovava o rapaz, vendo nele um homem digno e trabalhador, capaz de construir um futuro ao lado de sua filha.

O namoro entre Anna e Pietro trouxe alegria à vida dura da colônia. Eles sonhavam com um futuro juntos, mas sabiam que o caminho seria cheio de desafios. Anna, sempre determinada, encontrou na companhia de Pietro uma força renovada. Juntos, ajudaram a organizar a colônia, promoveram eventos comunitários e incentivaram a alfabetização entre os mais jovens.

Aos poucos, Anna e Pietro começaram a construir sua própria casa, um pequeno lar rodeado pelas plantações de milho e feijão que cultivavam com as próprias mãos. A casa, com móveis simples feitos por Pietro, tornou-se um símbolo de sua união e do sonho compartilhado de prosperidade em uma terra tão distante de suas origens.

A vida na colônia permanecia repleta de desafios. As saudades da terra natal se manifestavam como um vazio constante, ecoando nos silêncios das noites e nos suspiros que escapavam durante os dias de trabalho árduo. As doenças, implacáveis, ceifavam vidas e testavam os limites da resistência de cada colono. O isolamento, por sua vez, ampliava as dificuldades, tornando cada jornada até os vizinhos um esforço monumental e cada carta recebida da Itália uma preciosidade capaz de reacender tanto a alegria quanto a saudade.

Mas, em meio a esse cenário de provações, Anna e Pietro encontraram força no amor que os unia. Não eram apenas os campos que cultivavam; era também a esperança que se renovava a cada amanhecer, o sentimento de pertença que crescia ao redor de uma mesa compartilhada, e a solidariedade que florescia entre aqueles que enfrentavam as mesmas batalhas. Com cada colheita, por mais modesta que fosse, erguiam não apenas sustento para suas famílias, mas também a certeza de que suas raízes começavam a se fixar em terras antes desconhecidas. Com suas mãos calejadas e corações determinados, ajudaram a moldar uma comunidade onde antes havia apenas mata e incerteza. E assim, juntos, Anna e Pietro provaram que a força do espírito humano não apenas sobrevive às adversidades, mas as transcende, permitindo que a vida floresça mesmo onde parecia impossível. A colônia, com suas dificuldades e conquistas, tornou-se um testemunho vivo do poder da união, do trabalho e da fé em um futuro melhor.


Nota do Autor


O trecho apresentado aqui é um resumo do romance "Anna: Um Coração Entre Duas Terras", uma obra que mergulha nas complexas emoções e escolhas de uma jovem italiana, Anna, que enfrenta os desafios de deixar sua terra natal em busca de um novo começo no Brasil. Entrelaçando os laços da cultura, das tradições e das memórias, a narrativa reflete a luta interna de Anna, dividida entre o amor pela Itália que deixou para trás e a esperança em construir uma nova vida em terras desconhecidas. Este romance é um tributo aos imigrantes, às suas jornadas cheias de sonhos, sacrifícios e saudades, e uma celebração da força de um coração que aprende a pulsar entre duas terras, duas culturas e dois amores. Que cada leitor encontre, em Anna, um reflexo da coragem humana frente ao desconhecido e a beleza das raízes que nos conectam ao que somos.

Com carinho,

Piazzetta

quinta-feira, 30 de outubro de 2025

Lista de Imigrantes Italianos Vapor Poitou maio 1876


Vapor Poitou 

maio 1876

partida de Nápoles



Alessio

Ambrosio

Arturi

Arturo

Bessi

Bilancia

Bucci

Calrano 

Carafa

Cartolano

Carvano

Cattanio

Cattaneo

Ciabella

Copello

Croccetta

Cupello

D’Amico

D’Elia

De Cilia

Decilla

De Fino

Defino

Delia

De Luca

De Lucenza

De Stefano

Del Duca

Delia

Demico

Dilanci

Dolorenzo

Doni

Dulcetti

Galieta

Gallo

Gazzo

Giannone

Giannonni

Giliberti

Gioia

Gravina

Grosso

Guida

Iambasco

Imbroinisi

Improiso

Larocca

Lemma

Lina

Lo Zurco

Lotoica

Malzane

Marchese

Marchette

Marrone

Morel

Morra

Pagano

Palmieri

Panaro

Pane

Pargano

Parmo

Patricio

Pelaso

Pelosi

Peluso

Perrotta

Petrizzi

Petrucci

Pezzatto

Prajenti

Raimondo

Sansone

Santo

Seovino

Silvestro

Sciarino

Tambasco

Taranto

Totti

Traimondi

Trotta

Verta

Yorio

Zaporto  



quarta-feira, 29 de outubro de 2025

Soto el Peso de le Promesse: La Vita de Giuliana e Elio Sartoro ´ntel Brasil

 

Soto el Peso de le Promesse

La Vita de Giuliana e Elio Sartoro ´ntel Brasil


El autun de l´ano 1884 no el ga portà via solo le fóie morte su le piere ùmide de Reggio Emilia. El ga portà anca el silénsio amaro de 'na sconfita polìtica par Giuliana Sartori, ‘na dona de parola dura, devota ai ideai de libertà che ‘na volta gavea infogà la Itàlia. Con i sinquanta ani, i cavéi za con i primi fili tirà al bianchin scondesto soto el fassoletin nero, la s'è imbarcà par el Brasil sensa vardar indrio, come se bastasse un bilieto de terza classe e 'na valisa de legno rùspego par scancelar el passà.

So marì, Elio Sartorello, lu el zera musicante. Suonava con le bande de provìnsia, tirava la vita con quatro tochi a i sposalissi e a i funerài. No el gavea gnanca la metà de la passion polìtica che gavea la mòier, ma con l´ ani lu gavea imparà a vardarla come se vardasse un santuàrio: con respeto e paura contenù. I ze parti insieme par l'altra riva del mar, crente da la promesa de tera bona e libartà de tacar da novo.

Ma el viaio, el ze stà ‘na traversia de fantasmi. Quasi quaranta zorni in navio, streti tra febre, gómiti, preghiere e putei che piansea ´nte el scuro del fondasso del vapore. Giuliana la ga perso el conto de quante volte la ga pensà de morir là in mar. Ma la morte no la ze mia rivà. Al posto so, la ze rivà el Brasil — no quel dei foiéti colorà, ma quel vero: rùstego, brutale, impiassà de sudor.

I ga sbarcà a Santos, e pian pianin i ze rivà con el treno fin in drento a la Provìnsia de São Paulo, inseme a ‘na carovana de famèie italiane. El destino el zera un peso de tera sora le bande de "Rio das Pedras", ‘na region che la mata la se serava ancora come ‘na muràia. Sensa sentieri, el resto del traieto el ze stà fato a piè, spingendo carosse cargà de tuto quel che i gavea. I ga fato strada con el facon, siapà i cavi sui sassi soto l'erba alta, durmì sora el teren imbagnà, e magnà farina con aqua freda quando no ghe zera legna par far fogo.

Quando i ga rivà al lote che ghe gavea tocà, i ga catà ‘na costa pien de sassi e radise storte. Giuliana no la ga dito gnente. La i ga tirà su el vestì e la ga tacà a scavar. Là, tra i rovi e i inseti, i ga fata ‘na baraca con tavole mal segà e foie de palmeira. Poco pì da de un cavai, ma la ze diventà casa.

La vita la si è messa insieme pian pianin. I ga piantà formento e fasòi picenin. I ga tirà su porsei drento a sichero de fortuna. Vendeva ovi e qualche ànema viva drento el viloto pì pròssimo, quando che la piova no i li incrosava prima. Elio provava a insegnar mùsica ai putei par un toco de pan. Giuliana cusiva par le altre done, ma de pani ghe ne zera pochi. Laorava come se el tempo ghe zera drio con el baston.

Altri coloni i rivava da lontan. Qualchedun scampava da le fasende del cafè, ndove i ghe pagava gnente, solo riso e polenta, tante volte za guasta. I rivava zopicando, pien de pesti, contandoghe stòrie de promesse spesà, de contrati imbroià, de capataz che menava. Un de lori, Antonio Varotti, el contava che el gavea lassà ‘na lavora a Araras dopo che el so fradel el zera morto de febre, e el gavea finì drento ‘na fossa rasa come un can.

Ste stòrie le girava tra la zente con le fogolare de sera. La speransa, pian pianin, la ze deventà ‘na idea fina come el fumo. Tanti emigranti i molava tuto, altri i impasiva in silénsio. Ma Giuliana la restava. La coltivava no solo la tera, ma anca ‘l pensiero che la dignità no la dipendea da quel che se siapa, ma da quel che se resiste sensa molar.

La doménega, lei siapava la zente e la lesea peseti dei libri che la gavea portà da l’Itàlia, tuti usà e imbrunì da la umidità. La ciamava Rousseau, parlava de la Repùblica de Mazzini, ma senza la ràbia de ‘na olta. Adesso la parea che la semena idee come se le zera semense ´nte l’orto.

Ani dopo, quande Elio el zera morto de ‘na infession sensa mai vardar un mèdego, Giuliana la lo ga sepelì da sola, là drio casa. Lei ghe ga piantà un limonaro sora la tomba. “Qualcossa la ga da cresser,” lei ga dito a sé stessa, con i oci sechi.

Lei ze morta anca là,´na note de piova del ani 1903, a setanta ani, sentà sora ‘na caregheta de paia, in meso al silénsio. La ze stà sepelì a canto a Elio. In posto de ‘na làpide, solo ‘na piera sensa nome.

Ma la tera ndove che lori i ga vivesto, la ze vegnù viva. Altri coloni i ga rivà, i ga fato case, strade de baro, ‘na ceseta. E ´ntei ani dopo, i nipoti dei putei, quei che i gavea i piè sanguinanti, i contava stòrie de ‘na dona che l’avea traversà el mar con idee pericolose drento la testa e un rosàrio drento la scarsela — e che con le man sporcà de tera e i zenòci siopà, la ga dado forma a ‘na pàtria ndove prima ghe zera solo bosco.

Parché, malgrado tute le promesse fracassà, el ze stà el resistar tacà e silensioso de done e òmini come Giuliana e Elio che i ga piantà radise ndove ghe zera solo foresta. E là ndove che un zorno i gavea prometesto el paradiso, la ze nassù ‘na stòria vera — dura, sensa glòria, ma vera.

Nota de l'Autor

Questa stòria la ze ‘na reverensa tacà e sensa parole a quei miàia de òmini e done che, in fin de l’Otosento, i ga lassà drio la so tera, la so léngua e i so afeti par sercar ‘n futuro possìbile drento le budele del Brasil. La stòria che ti te ghe in man, la ze ‘na invenssion, sì, ma fata con tocheti de vita vera — framenti de lètare vècie, raconti de viaiadori, testimoni de famèie de imigranti e segnali smarì ntei archivi che conta el passà de la nostra zente.

Giuliana e Elio Sartori no i ze mia esistì pròprio cussì come che i vien contà qua, ma la so stòria la ze quela de tanti altri che el tempo la ga scanselà. I ze persone nassù da la sofrensa, da la volontà e da la testardessa de un pòpolo che el ga sfidà el mar grando, el bosco bruto, la tera massaria e la indiferensa. Questa, par ciò, la ze ‘na stòria finta, ma che la podaria ben esser vera, e che no la vol far soni, ma mostrar el caro che la nostra zente la ga pagà par sto nome: colono.

No ghe ze eroi e gnanca cativi puri in sto libro. Ghe ze solo ànime normae che se ga catà a viver robe straordinàrie. I protagonisti no i ga cambià la stòria scrita da i dotori, ma i ga piantà i piè drento el fango e là i ga seminà el doman. Quel che i ga fato no se trova sui monumenti, ma el resta vivo ´ntei gesti, ´ntei ricordi e drento le radìise fonde de ‘na tera che la ze de tanti.

Che sta stòria la serva no solo come un onor, ma come un invito a pensar — su quel che  lori i ga lassà drio, su quel che se la ga costruì con fadiga, e su quel che ancora bisogna ciamar par nome.

Luiz C. B. Piazzetta

terça-feira, 28 de outubro de 2025

Attilio Zampiero – A Estrada da Esperança

 


Attilio Zampiero – A Estrada da Esperança


No ano de 1887, Attilio Zampiero deixou a pequena vila de Roverchiara, nas terras baixas de Verona, levando consigo apenas um punhado de roupas gastas, alguns utensílios herdados e a lembrança viva da pobreza que o esmagava desde menino. A vida na Itália já não oferecia nada além de dívidas e fome. O campo onde nascera não bastava para sustentar sequer uma cabra, e o suor da família escorria em vão nas pedras áridas da planície.

O Brasil surgia como promessa nos relatos que corriam de boca em boca. Falava-se de campos infinitos, madeira abundante e liberdade para cultivar o que se quisesse. Cartas mal escritas do tio Antonio, instalado havia alguns anos na colônia Dona Isabel, no Rio Grande do Sul, traziam sempre um convite insistente: vender o pouco que possuíam e atravessar o mar.

A decisão de partir foi dolorosa. A família vendeu a casa e o pedaço de terra, abandonando também os túmulos de gerações no cemitério da vila. A despedida, marcada por lágrimas silenciosas, carregava o peso de nunca mais rever a Itália. Embarcaram em Gênova no navio a vapor Colombo, abarrotado de emigrantes miseráveis. Foram trinta e dois dias de travessia. O cheiro de corpos confinados, a umidade do porão e a ameaça constante da doença tornavam cada amanhecer uma vitória. A morte rondava como um predador paciente, mas Attilio resistia com a teimosia de quem não tinha escolha.

Quando enfim alcançaram o porto de Rio Grande, descobriram que o sonho tinha um preço maior do que imaginavam. Foram alojados em barracões superlotados, à espera de embarcações fluviais que os levariam lentamente, contra a corrente, pelos rios Guaíba e Caí até Montenegro, onde descansaram apenas por uma noite antes de seguir viagem.

Daí em diante, não havia estradas, apenas trilhas abertas a facão que se perdiam no coração da mata. Attilio e a família seguiram a pé, carregando baús e trouxas improvisadas. Havia dias em que a chuva fazia do caminho um lamaçal, e, quando a noite caía, o mundo se fechava como uma cortina de escuridão sem estrelas. Cada parada era um acampamento improvisado, alimentado com fogueiras pequenas e o pouco de farinha de milho que restava.

Depois de um dia que parecia não ter fim, chegaram à Colônia Dona Isabel, onde o tio Antonio os aguardava. O reencontro trouxe alívio e lágrimas, mas a jornada ainda não estava concluída. Em uma carroça puxada a bois, avançaram mais de um dia até alcançar a recém-aberta Colônia Alfredo Chaves, o lugar destinado pelo governo. O que encontraram foi um terreno íngreme, tomado por pedras e árvores seculares, um mundo hostil que parecia zombar de qualquer tentativa de cultivo.

Attilio ergueu com as próprias mãos um rancho tosco de troncos e folhas de palmeira. Plantou milho e feijão, criou algumas galinhas e um porco. Cada dia era uma batalha contra a floresta, que parecia querer engolir de volta os homens. A saudade da Itália ardia, sobretudo quando lembrava o cheiro do pão fresco e o som dos sinos de Roverchiara. Mas a volta era impossível. O Brasil tornara-se, ao mesmo tempo, destino e prisão.

A vida em Alfredo Chaves exigia coragem dobrada. O Rio das Antas, de águas revoltas, separava a colônia da vizinha Dona Isabel. Para atravessá-lo, usavam canoas frágeis, arriscando-se contra a correnteza traiçoeira. Era ali que Attilio trocava sacos de milho por sal ou ferramentas, sempre com o medo de que a água lhe roubasse a vida, como já fizera com outros colonos.

Os invernos castigavam com geadas que queimavam plantações inteiras. Muitas vezes, Attilio misturava farinha de milho com raízes da mata para saciar a fome dos filhos. Mas a obstinação não lhe faltava. Com vizinhos, começou a cultivar videiras, pequenas mudas trazidas escondidas da Itália, sonhando com o dia em que o vinho das colônias pudesse rivalizar com o das tavernas de Verona.

Com o tempo, Alfredo Chaves começou a se organizar. Famílias ajudavam-se em mutirões para erguer casas de pedra e capelas de madeira. Attilio, respeitado por sua tenacidade, tornava-se presença constante nas derrubadas, nas colheitas e até nas arriscadas travessias do Rio das Antas.

Mesmo assim, a saudade permanecia. Nas noites frias, o vento que soprava da serra lhe trazia lembranças da Itália. Ainda que a miséria continuasse a rondar, cada árvore derrubada e cada videira enraizada representavam conquistas arrancadas à força de um mundo desconhecido.

Foi assim que Attilio Zampiero fincou raízes no Brasil: não como promessa de riqueza imediata, mas como a única chance de sobreviver e deixar aos filhos uma herança maior do que ouro — a certeza de que, mesmo entre rios perigosos e terras ingratas, a esperança podia florescer.

Anos mais tarde, quando Alfredo Chaves recebeu o nome de Veranópolis, Attilio já sabia que aquela era sua pátria definitiva. A Itália ficara para trás como lembrança distante, mas a vida seguia ali, onde cada pedra retirada do chão e cada parreira erguida eram páginas escritas de sua própria estrada da esperança.

Nota do Autor

A história de Attilio Zampiero – A Estrada da Esperança nasce do testemunho vivo de descendentes de imigrantes italianos que se estabeleceram na antiga Colônia Alfredo Chaves, hoje Veranópolis, no final do século XIX. O personagem central, Attilio Zampiero, é fictício apenas no nome; sua trajetória, marcada pela travessia do oceano, a chegada ao Rio Grande do Sul e a luta contra a mata e a solidão, reflete fielmente a experiência relatada por seus herdeiros de memória. Por respeito ao pedido de anonimato das famílias que compartilharam suas lembranças, os nomes verdadeiros foram preservados no silêncio. Ainda assim, tudo o que aqui se narra — a viagem, os sofrimentos, a travessia do Rio das Antas, o início da vida em terras íngremes e pedregosas — pertence à realidade daqueles que ousaram trocar a Itália pela incerteza do Brasil. Attilio, portanto, é mais do que um personagem: é o símbolo de tantos homens e mulheres que construíram suas estradas de esperança no coração da serra gaúcha.

Dr. Luiz Carlos B. Piazzetta


segunda-feira, 27 de outubro de 2025

Le Aventure de l´Emigrante Cremonese Angelo Martelloni

 

Le Aventure de l´Emigrante 

Cremonese Angelo Martelloni


Angelo Martelloni lu el ze nassesto ´ntel 1875, ´ntela pìcola vila de Castelverde, postà ´ntel idìlico interior de Ripalta Cremasca, provínsia de Cremona, Itàlia. La vileta, con le so stradele de tera sinuose e contornà da grandi campi de fromento dorà, pareva restar incantà ´ntel tempo, un paesagio che alternava la belessa bucòlica con la dura realtà del laoro ´ntei campi. La sua infánsia la ze stà segnà da la simplissità austera de ´na casa de contadin, 'ndove ogni piato portà in tola el zera fruto de mani rugà e de suor soto el sole infame.

I genitori de Angelo, Giovanni e Rosa, lori i zera contadin testardi, che se davano da far per sopraviver a le intempèrie che spesso rovinea le piantassion. Par lori, ogni stagion la zera un zogo de fortuna contro la natura: piove tarde, gelade improvise o parasiti spietà podea reduser mesi de laoro a un gnente. Angelo lu el ze cressesto capindo che la vita la se formava su sto vaevien imprevedìbile, e fin da bòcia el ga scominsià a laorar ´ntei campi, menando el bò, cogando fasói, fromento e imparando, quasi sensa voler, a conviver con la strachessa.

Ma a la fine del sècolo XIX, la crisi agrìcola la ga distruto quel poco che restava de la fràgile stabilità de la region. I racolti i ga calà, le nove tasse, e i soni de benèssere i parea sempre pì lontan. A 20 ani, Angelo el ga sentì el peso de la responsabilità de trovar un futuro che la so tera no la podeva dar. Con el cuor streto e un misto de paura e speransa, el ga preso ´na resolussion che el ghe cambierà la vita: partir in serca de mèior oportunità. L'adio el ga stà segnà da abrassi lunghi e làgreme mute; ´na promessa no deta la parea sospesa in ària, che un zorno el tornaria par portar mèior fortuna a la famèia che lu el ga lassà.

El so primo destino el ze stà la Bèlgica, 'ndove le scure mine de carbon le prometea ´na stabilità económica che la parea impossìbile in Itàlia. Quando lu el ze rivà, Angelo el ze stà envolto sùito dal cenário lùgubre de le sità minadore: strade strete fiancà da case de maton scuri dal pòlvere, camini che lanssiava nùvole de fumo denso e un odor metàlico ´nte l'ària, che parea incolarse dosso. El laoro sototera el zera ´na combinassion de fatica fìsica e perìcolo constante. Par quasi na dècada, Angelo el ga enfrentà i rischi invisìbili e l'insalubrità sofocante de quel mondo sepolto.

Le zornade scominssiava prima del sòrgere del sole, quando lu e altri lavoratori, vestì con giache grosse par el fredo matinal, lori i calava in vagon streti ´ntei fondi de la tera. Là soto, la luse la zera un lusso, fornída solo da le lanterne a òlio fincà ´ntei elmi. L'ària, pien de pòlvere e umidità, la zera pesà come un peso de piombo, rendendo ogni respiro un sforso. El rumor metàlico de le picone el rimbombava ´ntei tunèi, mescolà con el cigolìo de le cariole che transportava el carbon. El perìcolo el zera constante: framenti, esplosion de gas e anca el desabamento de i tunèi pareva una ombra sempre pronta a colpir.

Ma el nemico pì grande de Angelo el zera invisìbile. El pòlvere de carbon, sempre presente, el se infiltrava dapartuto —´nte le veste, ´ntel magnar e, sora tuto, ´ntei polmoni. Ogni dì che passava, respirar el diventava pì difìssile, come se l'ària stessa la zera rubà dal carbon che el cavava. La strachessa al fin de ogni zornada la zera devastante, ma anca cussì, ghe zera un filo de speransa che lo tegneva in piè: el sònio de un futuro pì luminoso, che lo fasseva afrontar quel sotomondo nero e opressor, sempre credendo che el sacrifìssio de incòi lo 'ndasse a pagar zorni pì chiari doman.

´Ntel 1905, dopo ani de sacrifìssi e con i segnali evidenti de un corpo malà dal sforso e dall'insalubrità, Angelo el ga deciso che el gavea bisogno urgente de ´na nova vita. Le noti zera segnalà da una tosse seca che rissonava ´ntel so modesto alògio, come un ricordo crudele de le dècade passà a respirar el pòlvere negro del carbon. Inspirà da le storie de altri italian che i gavea traversà el ossean verso el Brasil, 'ndove se disea che ghe zera tera abondante e oportunità par ripartir, Angelo el ga maturà el sònio ardente de ricostruirse el futuro.

Le economie messe da parte in tanti ani - soldi conquistà con sudor e sacrifìssio - le zera conservà come un tesoro presioso, ogni centèsimo un testimònio de la so resistensa. Con determinassion, el ga preparà le so poche robe: vestiti simplice, ´na pìcola imàgine de Santo Antonio e ´na lètara deromai zalda dal tempo, mandà ani prima da un zerman che vivea a Piracicaba. La cità, postà ´ntel cuor de lo stato de São Paulo, za scominsiava a spuntar come un rifùgio sicuro par emigranti italiani. La descrissión zera atrativa: indùstrie in crèssita, strade animà da na léngoa familiar e ´na promessa quasi tangìbile de prosperità.

´Ntel zorno de la partensa, el porto de Le Havre el zera pien de na mistura de euforia e ánsia. El vapor Bretagne, che el lo portava par l'otro lado de l'Atlántico, el gavea un odor de òlio e legno, un segno de quele setimane de traversia che lo aspetava. Mentre che saliva la rampa par ingressar sul vapor, Angelo no el ga podesto mica smetare de vardar indrio, fermando i oci 'na ùltima volta sul cielo grigio de la Francia, come se voléa memorisar quel paisàgio ´ntela so memòria. El sapea che stava lassando no solo un paese, ma anca 'na parte de se stesso—segnà da la soferensa, ma anca dal coraio che adesso lo guidava verso un orisonte novo e scognossù.

In Piracicaba, Angelo el ga trovà un laoro ´nte 'na fàbrica de piati che la zera stà de poco inaugurà, un segno de la crèssita de l’indùstria che scominciava a transformar tuto el interior de San Paolo. La fàbrica la zera 'na strutura imponente par quei tempi, con le so mura de matoni rossi e le ciminiere che lanssiava colone de fumo al cielo, segnando l'atività che ghe zera drento. L'ambiente pareva prometente, ma prestìssimo Angelo el ga capì che el laoro, anche se meno brutale de le miniere de la Belgica, el portava le so sfide.

Lavorava ore lunghe in un capanon caldo, ndove el calore dei forni scaldanti fasea che l'ària la pariva lìquida, quasi impossìbile de respirar. I forni, grandi e famosi, rugivano come bèstie vive, chiedendo atenssion contìnua mentre che el modelava con cura le pesse de seràmica. El pòlvere de argila, fina come pòlvere de farina, flutuava invìsibile ´nte la luse zala de le làmpade a òlio, infiltrandosi ´ntei polmoni e incolandosi a la pele sudà. Nonostante sto, Angelo el sentiva un orgòio strano mentre che vardava i piati che prendeva forma soto le so mani, diventando piati e tasse che, el se figurava, adornava le tavole de le famèie in giro per el paese.

La compagnia de altri imigranti italiani la zera un solievo contro le dificoltà del zorno. Durante le pause brevi, le vose dei operài le risuonava in dialeti conossiuti, mescolando risate e stòrie de la Itàlia che pariva lontan, ma cheno la zera mai dimenticà. La sera, dopo el laoro, trovava conforto in pìcole riunioni in casa de amissi, ndove che se magnava cose sèmplice come polenta e pan de casa, mentre che cantava cansoni che riportava indrio ricordi de la sua tera. Era pròprio in quei momenti che Angelo el sentiva 'na scintila de apartenensa, 'na forza rinovà par afrontar i zorni che vegniva, e 'na luse de che, anca lontan da la sua terra, l'Itàlia la vivea in ogni gesto, parola e sònio condiviso.

Dopo sete ani de laoro instancàbile ´ntela fàbrica, la salute de Angelo la ga scominsià a mostrar segni de colasso. L'ària pien de partìcole sotili, che flutuava invisìbile sia ´ntele miniere che sula lìnea de produssion, la zera 'na presensa costante, insidiosa. ´Ntel scomìnsio, el ignorava i sintomi – la tosse persistente, el peso sul peto, la strachessa che no se levava mai del tuto. Dopo tuto, come che el poteva fermarse? El lavoro ghe dava da magnar, e el magnar ghe zera l'ùnico apogio de la so vita in Brasile. Ma, con el passar dei mesi, i sintomi i diventarono pì forti, trasformandosi in ´na batàia contìnua contro un nemico invisìbile e implacàbile. Ogni respiro pareva rubar un po' de forsa, e ogni turno ´ntela fàbrica pegiorava il dano ireversìbile ai so polmoni.

Quando i mèdici finalmente confermaron che el già sospetava, la parola “silicosi” la ze rivà come un colpo seco, implacàbile. No ghe zera cura, solo la promessa che la so condission la agravava se el continuava ad esser esposto a quela realtà. La dessision de lassiar la fàbrica la ze presa no sensa angossia, ma per pura necessità. Con el poco che lu el ga riussì a sparagnar in ani de sacrifìssio e l’aiuto inestimàbile dei amissi de la colònia italiana, che ga organisà 'na coleta par aiutarlo, Angelo el ga fato un salto de fede. El ga comprà 'na pìcola tera a la periferia de Piracicaba, un peseto modesto che, anche se lontan dal conforto, le dava ´na cosa che no trovava da tempo: la possibilità de respirar ancora.

La nuova vita in campagna portò a Angelo no solo un fià de speransa, ma anca 'na sensassion de libartà che no gavea mai provato prima. In quela pìcola proprietà, sircondà da àlbari che ondegiava delicatamente al vento e da orti pien de tera rica e scura, el ga scominsià a ricostruir la so vita. Coltivar verdure diventò un ato quasi terapéutico. Ogni fila de salata alineà con cura, ogni pianta de pomidoro che cresseva soto la so atenta sorveliansa parevaa un segno che la tera, diversamente da le màchine, rispondea generosamente al la cura umana. Acanto al’orto, el pìcolo ponaro rissuonava i suoni de nova vita, ndove galine sgravatava e metea uova che el vendea al mercato local.

El laoro sel zera duro, e le limitassion fìsiche imposte da la malatia spesso lo sfidava, ma la gioia de laorar a l'ària sverta compensava ogni sforso. Lontan da l'opression de le fàbriche, ndove ogni zorno el seguiva un vaevien contìnuo e disumano, Angelo trovò ´ntela semplicità del campo un ritmo che parea pì in armonia con la so ànima. El sole che tocava el viso e l’ària fresca che riempiva i so polmoni flàgili, per lu, valea pì de ogni richessa material.

Ghe zera stà pròprio in uno de quei zorni de mercà, mentre che dava un cesto de verdure fresche a un cliente, che el ga conossesto Maria. Fiola de imigranti italiani, lei zera´na dona de oci atenti e soriso caloroso, con 'na determinassion che rivalesiava con la soa. Lori i se ga smorosar sùbito, uniti no solo da la léngua e cultura condivisa, ma anca da la stessa voia de ´na vita sèmplice e dignitosa.

El matrimònio loro el ze stà celebrà con pìcole feste, con amissi e visin che condividevano lo stesso spìrito comunitàrio. Insieme, Angelo e Maria i ga construì 'na vita che, anca se modesta, zera pien de significato. Lori i ga avù tre fiòi, che i ga cressesto tra i campi e el ponaro, imparando a amar el laoro onesto e la tera che sostenea la famèia. Soto i òci atenti de Angelo, i fiòi i ga imparà che la forsa de un omo o de ´na dona no stava solo ´ntele brassia, ma ´ntela dedision e ´ntela cura de quelo che amava. La proprietà la ga diventà pì che 'na casa: la zera el sìmbolo de la resiliensa e de l'eredità che Angelo e Maria i ga costruì insieme.

Angelo Martelloni el ze morto ´ntel 1932, a 57 anni, in serenità su la sua proprietà, el posto che gavea trasformà in un santuàrio de vita e propòsito. Intorno al leto, zera Maria e i so tre fiòi, oramai adulti, che lo vardava con una mistura de tristessa e reverensa. Ogni volto portava i segni del tempo e del laoro, ma rifletea anca l'amore profondo e la gratitùdine per un omo che la so vita zera stà ´na lession costante de coraio. La morte de Angelo ze sta silensiosa, come el tramonto che scendeva su le tere che lui avea tanto amà, ma l'impato de la so partensa risuonò per deseni. 

La stòria de Angelo, intrelassà con quel teren fèrtile de Piracicaba, la ze diventà pì de 'na sèmplice memòria de famèia; la ze diventà un lassà vivo. No el zera mica solo el patriarca de la famèia Martelloni, ma anche un sìmbolo par la comunità italiana che cressea intorno. El so nome el vegnia spesso nominà a tola, tra stòrie de dificoltà afrontà e de vitòrie conquistà con el sudor e con la persistensa. La vita che el gavea costruì – dai primi zorni de lota ´ntele fàbriche fin ai campi che fioria soto le so mani rovinà – lei vegnia contà come un esèmpio de come la forsa de volontà la pò trasformar la adversità in speransa.

Incòi, i so dissendenti i conserva con orgòio ogni framento de la so memòria. La vècia proprietà, anca se modificà da le ani, la ze ancora intocià del spìrito de Angelo tra le file de ortàgie e ´ntel ponaro che el gavea organisà con pasiensa e amor. Fotografie in bianco e nero, con la so imàgine sèria e el sguardo resoluto, i ga decorà le mure de tante case de la famèia, ricordando a tuti del omo che gavea atraversà i mari e desbravà tere scognossù par dar a lori un futuro mèio. Pì che un pioniere, Angelo Martelloni el zera ´na inspirassion – la prova viva che le radise le pol vegnir piantà forti, anca lontan del pròprio teren natal. 


Nota de l’Autor

Scrivar la vita de Angelo Martelloni no el ze stà un sèmplice esersìsio de memòria, ma un viaio drento l’ànima de tuti quei che ga lassà la so tera par traversar mari e destin. El sècolo XIX el ze stà segnà da grandi movimenti de populassion, da la misèria che spingeva fora e da la speransa che tirava avanti. Drento a sto scorer de stòrie, la figura de Angelo la spunta come un sìmbolo de coraio e resiliensa.

El so camin, che partì da le campagne cremonesi e lo portò sototera ´nte le miniere de carbon belga, par poi farlo rinassere tra le fatiche industriai de Piracicaba e finalmente tra i campi da lu coltivà, no el ze solo la paràbola de un omo. El ze la paràbola de tanti. Ogni respiro sporco de carbon, ogni tosse sorapien da pòlveri e sacrifìssi, ogni passo so tera nova in Brasil, el conta de un pòpolo che no gavea paura de pagar con el pròprio corpo la promessa de un futuro pì degno.

Mi son esforsà de tegner fede a la verità umana che stava drento a sto raconto: no la retòrica, ma la dignità. No l’epopea grandiosa, ma i silensiosi eroìsmi diàrio. La vita de Angelo la mostra come l’emigrassion la zera stà un ato de fede, un salto ´ntel scuro con i òci pien de speransa. E anca se la so fin la vegnia segnà da la fragilità fìsica, resta grande la sua vitòria: gaver piantà radise forte in tera nova, gaver lassà ai so fiòi no solo pan e tera, ma un lassà morale e culturale che ancora incòi respira.

Le Aventure de l’Emigrante Cremonese Angelo Martelloni lore deve èsser lete cussì: no solo come la crónaca de un destin, ma come spècio ´ndove ogni dissendente pò vardarse e ritrovar le radise che ancora nutre el presente. Angelo Martelloni no el ze un mito lontan: lu el ze la carne viva de la nostra memòria coletiva, la prova che i sòni de dignità i pode sopraviver anca ai mari, ai deserti e ai sècoli.

Cussì, con el penel in man e con el cuor ùmile, mi go volesto tegner vivo el so fià, parché ogni generassion che vien la possa sentir come un richiamo, un invìto e un dover de ricordar.

Dr. Piazzetta





domingo, 26 de outubro de 2025

O Destino de Matteo Zanforlin


O Destino de Matteo Zanforlin

Da pequena vila de Arsego aos cafezais da Fazenda Encruzilhada

No inverno de 1889, Matteo Zanforlin deixou para trás a pequena localidade de Arsego, no município de San Giorgio delle Pertiche, província de Pádua. Viúvo jovem, trazia consigo a filha Giuseppina, de apenas dez anos, e partia em companhia de alguns conterrâneos — famílias do mesmo Veneto que, como ele, não conseguiam mais vislumbrar um futuro nos campos áridos e já esgotados de sua terra natal. A promessa de uma vida nova no Brasil ecoava pelas vilas do interior, com cartazes e agentes anunciando terras férteis e trabalho abundante.

O peso da decisão de partir fora imenso. Matteo atravessara noites em claro, dividido entre o apego às raízes e a esperança de um recomeço. Na praça da aldeia, olhara pela última vez para o campanário da igreja de Arsego erguendo-se contra o céu cinzento do inverno. Aquele som dos pequenos sinos, tão familiar, ecoava agora como uma despedida solene. Ao subir na carroça que o levaria até a estação ferroviária, sentiu que arrancava de si não apenas as lembranças da juventude, mas séculos de vida enraizada naquela terra.

A viagem pelo oceano foi longa e tormentosa. A travessia no porão úmido e escuro de um navio a vapor abarrotado parecia não ter fim. O balanço incessante das ondas misturava-se ao choro das crianças, o som repetitivo das orações e ao gemido dos enfermos. O cheiro de mofo, suor de corpos mal lavados, vômito outros dejectos humanos impregnava o ar. Em cada rosto marcado pelo desalento, Matteo reconhecia o reflexo de sua própria dúvida: teria feito a escolha certa? O mar, com sua vastidão sombria, parecia zombar da esperança frágil que os impelia para o outro lado do oceano. Ainda assim, a fé em algo melhor sustentava cada respiração e cada noite de vigília.

Após semanas intermináveis, a América finalmente surgiu diante deles, com suas costas verdejantes e uma luz diferente daquela que conheciam no Vêneto. O desembarque em Santos foi marcado pelo tumulto, pela pressa dos funcionários e pela estranheza da nova língua que ecoava por todos os lados. Não havia tempo para contemplar o novo mundo; logo foram conduzidos ao trem que os levaria ao interior da província de São Paulo. A cada quilômetro vencido, as florestas se abriam, revelando um cenário grandioso e hostil ao mesmo tempo, um mundo de cores fortes e sons desconhecidos.

O destino era uma grande fazenda de café chamada Encruzilhada, situada nas proximidades da Estação Gabiroba — uma região que mais tarde faria parte do município de Araras. Acreditava-se que ali seria possível colher os frutos de uma vida mais próspera, com pouco esforço e abundância garantida. Contudo, a realidade que encontraram era muito distinta da promessa.

O trabalho pesado começava ainda antes do sol nascer precedido pelo penetrante som de um sino na sede da fazenda. Homens, mulheres e crianças se dirigiam aos cafezais, e sob o calor abrasador passavam o dia limpando a terra entre as fileiras de pés de café, outras vezes na safra, colhendo grãos vermelhos que, à noite, pareciam multiplicar-se nas mãos já feridas. O regime era exaustivo e o corpo logo cedia ao cansaço. Os pés inchavam, as pernas doíam e os joelhos falhavam na lida diária. Muitos companheiros de Matteo caíam enfermos, vítimas da fadiga, das febres tropicais e da ausência de médicos ou remédios.

O alimento era escasso e de qualidade pobre, servindo mais para manter o corpo de pé do que para lhe dar força. Os imigrantes, que haviam sido atraídos pela promessa de abundância, se surpreendiam ao perceber que, naquela terra de florestas exuberantes e solo fértil, a comida carecia da substância que conheciam na Itália. A carne era rara e, quando aparecia, vinha dura e mal conservada. O pão, feito às pressas em fornos improvisados, esfarelava nas mãos e parecia mais serragem do que alimento. Quase sempre os pratos se resumiam a feijões encharcados e a uma farinha grosseira que não saciava, mas pesava no estômago como pedra.

Matteo sentia a ausência do vinho tinto que aquecia as noites frias em Arsego e da polenta dourada que se erguia fumegante na mesa de sua aldeia. Aqueles sabores carregavam memórias de partilha, de festas do vilarejo, de colheitas outrora fartas e da sensação de pertencimento. Na Encruzilhada, a cada refeição insípida, a saudade se transformava em dor. Não era apenas o corpo que definhava; era também o espírito, privado daquilo que dava sentido à vida camponesa.

A situação se agravava pelo ambiente em que viviam. As famílias foram instaladas em longos barracões de madeira escura, velhas construções que, pouco tempo antes, haviam servido como senzalas. A libertação dos escravizados ainda era recente, e a sombra daquele passado impregnava o ar. As paredes rústicas guardavam um silêncio pesado, como se carregassem os lamentos de quem ali fora aprisionado. Agora, abrigavam homens e mulheres livres, mas não havia dignidade naquelas moradias coletivas, onde cada família recebia apenas um espaço estreito, dividido por tábuas frágeis que pouco protegiam da umidade ou dos olhares alheios.

Os capatazes, acostumados durante toda a vida a lidar com escravos, não sabiam como tratar trabalhadores livres. Para eles, a mudança era apenas de nome: já não podiam usar o chicote, mas mantinham a mesma rigidez implacável no comando. O tom de voz era autoritário, os gestos secos, os olhos sempre vigilantes. A disciplina era imposta com gritos e humilhações, e qualquer sinal de cansaço ou revolta era encarado como insubordinação. Não havia compreensão para a fadiga dos recém-chegados, nem espaço para diálogo ou negociação.

Essa falta de habilidade em lidar com homens que não eram mais propriedade, mas assalariados, criava tensões diárias. O colonato, vendido como contrato justo, na prática revelava-se uma armadilha: trabalho excessivo, pagamento incerto, dívidas impostas pelas próprias compras no armazém da fazenda. Matteo percebia que, no fundo, continuava preso a um sistema que se alimentava da exaustão alheia. Só havia mudado a linguagem; a opressão era a mesma.

E, quando a noite caía sobre a fazenda, o silêncio dos barracões era quebrado apenas pelo murmúrio das preces e pelo choro contido de mulheres e crianças. Matteo, deitado sobre um catre duro e estreito, olhava para a filha Giuseppina adormecida e se perguntava se o futuro que havia sonhado para ela não estaria sendo enterrado ali, sob o peso daquela nova escravidão disfarçada.

Ainda assim, havia um fio de esperança. A colheita do café, embora árdua, oferecia a possibilidade de juntar algum dinheiro. Sonhava-se com a compra de um pequeno pedaço de terra, onde se poderia plantar para si próprio e escapar da escravidão disfarçada que pesava sobre os colonos. Matteo acreditava que, se resistisse por alguns anos, poderia garantir à filha um futuro melhor do que aquele que a Itália lhe negara.

As notícias que circulavam entre os imigrantes eram sombrias. Muitos que haviam desembarcado antes dele em outras regiões já falavam de desilusão e miséria. Mesmo assim, a vida na fazenda Encruzilhada prosseguia, marcada por dias iguais, de suor e silêncio, de saudade e resiliência. Entre os conterrâneos que haviam partido de Arsego, alguns caíam no desespero, outros se apegavam à fé. Matteo, por sua vez, sustentava-se na lembrança da terra natal e no rosto frágil de Giuseppina, que se tornara sua única razão para suportar o peso daquele destino.

Na América que prometia riqueza e fortuna, Matteo encontrou apenas o peso do trabalho duro, a incerteza diária e a exaustão que o tempo parecia não dissipar. As promessas de abundância se desfizeram sob o sol impiedoso e nas mãos calejadas, mas dentro dele permaneceu uma obstinação silenciosa, feita de raízes invisíveis e profundas. Cada grão de café colhido, cada gota de suor derramada sobre a terra estranha, era para ele uma semente de futuro — um investimento mudo em dias que talvez jamais veria, mas que acreditava poder oferecer à filha e às gerações que viriam.

Os anos se sucederam, e a paisagem da fazenda Encruzilhada se entranhou em sua memória tanto quanto os campos de trigo e videiras de Arsego. As madrugadas em que se erguia antes do canto do galo, os barracões sombrios que guardavam famílias inteiras, o olhar severo dos capatazes que não sabiam falar a língua da liberdade — tudo isso se tornou o cenário permanente de sua existência. Mas Matteo nunca deixou que a dureza o quebrasse por completo. No íntimo, conservava a lembrança da aldeia vêneta como um farol distante, um pedaço de terra que continuava a guiá-lo mesmo estando a um oceano de distância.

Foi nesse choque entre memória e realidade, entre sonho e sacrifício, que Matteo Zanforlin escreveu sua vida. Não mais nas pedras gastas das estreitas vielas de Arsego, onde gerações de seus antepassados haviam vivido, mas nos vastos cafezais entorno da Estação Gabiroba, onde o verde intenso das plantações escondia a história de suor e de lágrimas. Ali, lado a lado com milhares de outros imigrantes, ele transformou o próprio sofrimento em herança.

Essa herança não era feita de riquezas ou de terras conquistadas, mas de algo mais duradouro: a coragem de resistir, a perseverança diante do impossível e a esperança, sempre renascida, de que o sacrifício de uma geração se converteria em liberdade e prosperidade para as seguintes.

E assim, na encruzilhada entre dois mundos, Matteo Zanforlin deixou marcado o testemunho de sua vida: que mesmo no solo mais áspero é possível lançar sementes que florescem em futuro.


Nota do Autor

Os nomes que aqui aparecem foram cuidadosamente alterados para preservar o anonimato dos personagens. No entanto, a história que o leitor acaba de conhecer é verdadeira. Ela nasceu das palavras registradas em cartas de imigrantes e de documentos oficiais das antigas fazendas de café, preservados com rigor e respeito pelo Museu da Imigração do Estado de São Paulo. São fragmentos de vida que atravessaram mais de um século e ainda hoje ecoam como testemunhos de coragem, sacrifício e esperança.

Este trecho faz parte de uma obra maior, que carrega o mesmo título, escrita com a intenção de dar voz à epopeia da grande imigração italiana no Brasil. Não se trata apenas de recordar um passado distante, mas de iluminar o caminho de milhares de homens, mulheres e crianças que trocaram a pátria conhecida pela promessa incerta de um novo mundo. Eles ergueram a própria existência sobre a dor da separação, a dureza do trabalho e a obstinação em oferecer um futuro melhor aos seus descendentes.

Contar essas histórias é não permitir que o silêncio apague a memória. É reconhecer que, nos cafezais do interior paulista, não se colhiam apenas grãos, mas se forjava uma identidade que moldaria para sempre o Brasil.

Dr. Piazzetta



sábado, 25 de outubro de 2025

Dove che le Speranse le và a morir


Dove che le Speranse le và a morir

Còrdoba, Argentina — Ano 1889


La Prima Note in Amèrica

Quando che Gaetano Bernardi el ga vardado le luse sporche de Buenos Aires, drio el vapor Piemonte, la note la zera za cascà sora el mar. I tre italiani che i zera con lu — un marangon de Vicenza, un contadin trentin e un zòvene che disea de sonar el violin — i zera massacrà da la fadiga, ma l’entusiasmo el brusava ancora come ‘na bronsa picenina drento un corpo che da mesi no vardava pan. I ze sbarcà inseme, con i piè pesanti, tirandose drio le sporte strasse, fin a ‘na osteria scondesta, li visin al´Ufìcio de l’Imigrassion.

La ostaria la zera pì ‘na tana de sorzi che no un loco par riposar. Un stansino ùmido, puzolente, con el teto che pareva voler cascàr e un cúcio de paia sudà che parea pì el cucioleto d’un can che no un leto da cristian. La porta sbateva con el vento del Rio de la Plata, come se la sità la ridea de la so rivada. Gaetano no el gà durmì. El sentiva el fredo entrarghe soto el vestito, pì ancora de ogni inverno passà sora le coline del Véneto.

El zorno dopo, con le scarpe tacà de baro e la camisa che se incolava dosso de la umidità, el ze ‘ndà solo fin al edifìcio de l’imigrassion. El caos de la sità lo sbatea come un mulin: carosse che se incrosava, òmeni che urlava in léngoe che lu no capiva. Gaetano el ghe tocava saltr come un capreto tra le pose e i buchi. Ma par sorte — o par voler del Signor — el se ga trovà con Giovanni, el so nevodo, che el zera za sistemà par là. El lo spetava con el muso serio e le man ruvinà. No ghe ze stà ne abrassi, ne pianti. Solo un sguardo tra do mondi — quel che el restava e quel che el rivava.

Par do zornade, Gaetano el ga visto soloel contorno de ‘na Buenos Aires fata de contrasti. El passeava tra le strade drite, contandoghe i passi come su un quadrileo. Tuto ghe pareva piato, scuro, sensa òrdine. Le case basse, la misèria che se respirava. Ma passando par la Plaza Victoria, sora un tramonto sporco e un vagon che tremava, el ga visto anca l’altra face: palassi de stile francese, boteghe che luseva, vetrine che pareva Parigi. El Parque Palermo el zera un giardin de odor e color. Lì ghe pareva de scordar la lama. Ma dura poco. Come tuto in sto mondo novo.

La note del 16 de ottobre, Gaetano e Giovanni ize partì in treno da la Estación del Sud, la pì granda de la capital. Destinassion final: ‘na piòla de tera che i ghe gavea promesso lì sora Río Segundo, in la provínsia de Córdoba.


La Pianura Sensa Fìn

El treno el se moveva lento, sbufando fumo nero che se sparpagnava ´ntel celo scolorì. Par pì de quìndese ore, la locomotiva la ga traversà le pampas, ‘na distesa sensa fin, piata, muta, ndove el tempo pareva smarirse tra l’erba seca. Gaetano el restava sentà, con i oci incantà sora l’orisonte, come se el spetasse de vardar ‘na cesa, ‘na pianta sola, qualsiasi segno de vita che rompesse el silénsio.

Passava per paeseti sparsi, gnente pì che barache de fango e teia. In qualchedun, se vedeva qualche figura — òmini con el capelon, done con i sciale, putei scalsi coerti de pòlvere. Ogni fermada, Gaetano el se sentiva pì lontan da tuto quel che el gavea conossesto, come se la Europa la se stesse sgolando da la so memòria.

Quando i ze rivà al destino, zera za note fonda, con la nèbia che la serava tuto. El vagon el ga scrichiolà fin che el se ga fermà, e quando i ze calà, i zé stà assaltà da un vento che portava odor de pasto, sterco e parole rote. No ghe zera lusente, gnanca ciàcole. Solo el celo scuro con le stéle come spin conficà.

Lì ghe spetava un grupeto de coloni. Òmini con i gesti streti, visi scavà dal sol, la pela dura come cuoio. Zera italiani, ma le so léngoe za se mescolava con lo spagnol, con el lombardo, con quel che restava de le radisa. Le so robe zera polverose, i capeli disfà, ma i oci — quei ghe contava tuto: “La ze qua che la vita la ricomìnsia?”

El vilareto no pareva ‘na tera promessa. Pareva ‘na fermada tra el sònio e la verità smarì.

La casa de Giovanni la zera fata de baro e lamiera, con le crepe che lassiava passar el vento de la pampa. Gaetano el ga trovà un toco de pan duro, un goto de vin grezzo e un silénsio che fasea pì mal che la nostalgia. Ne i zorni dopo, el ga scominsià a laorar con i campi de formenton. La tera zera forte, ma no la perdonava. I zorni longhi, sechi. El laoro — pianàr, rasentar, far recinti, cavar posi — no finiva mai. La note, el scrivea lètare che no mandava, come se parlasse con el foglio quel che no gavea coraio de dir. La paura de gaver sbaglià strada, el peso de gaver lassà tuto par ‘na Amèrica che no zera quela contà dai libreti.

Ma anca in quella solitùdine ghe zera un senso grando. I gesti ripetido zera come segni sora ‘na pàgina bianca. E pian pianin, Gaetano el imparava che la libartà no vien da le promesse, ma da la forsa de scavar con el pròpio brasso la tera nova.

Radisa in Tera Foresta

I mesi i ze diventà ani. Gaetano no el ze mai tornà in Itàlia. Lu el ga mandà do lètare e basta. Lu el ga comprà un peso de tera con el so nome,el ga piantà vigne toste e el ga imparà a contratar con i capistassion. I visin i lo ciamava "El Véneto", e el so vin aspro el gavea fama tra i careter.

Gaetano no lo ga mai sposà. Lu el ga piantà àlbari de ombra, el ga tirà su un capanon, e lu ga costruì pian pianin ‘na casa che podesse resister al tempo e al ricordo. El ze morto ´ntel 1912, in tempo de seche, ma el ze stà sepolto soto un flamboyant che lu stesso lo avea piantà — che, in quela primavera, el ga fiorì come un ùltimo gesto de dir: “Mi son rivà.”

Sora la piera, i ga scrito:

“Gaetano Bernardi – rivà da lontan – el ga piantà el so destin dove che el sol zera pì forte del fredo.”

Nota de l'Autor

Parché mi go scrito Dove che le Speranse le và a morir

Sta stòria la zé nassesta da un silénsio. Un silénsio che da generassion el se senta drio le tole de le famèie che vien da emigranti, come se ghe fusse un pato scondesto par no tocar la pena de chi che la ga lassà tuto par 'ndar via. Sempre mi go domandà cossa che se nascondea drio le date scalfìe sora le piere del cimitero, drio le foto scure de òmini serie e done con i oci strachi. E po' go mi go capìo: drio ogni cognome, ghe zera 'na traversia, 'na pèrdita, un ricominsiar — e, quasi sempre, 'na disilusion.

Dove che le Speranse le và a morire ze, prima de tuto, un gesto de restituission. Un tentativo par dà vose a quei che i ga lassà tuto drio credendo in 'na promessa che no la ze mai rivà. No la go scrito par far bela la epopea de l'emigrassion italiana in Argentina, gnanca par cantar la resistensa eròica dei coloni. La go scrita par contar quel che se tase: che l'Amèrica no la ga sempre acolto, che la tera promessa la podea èsser rùgia, e che tanti de quei che i ze rivà no i ga catà oro gnanca grano — ma fango, fredo, solitùdine e 'na lota ogni zorno par no perder la fede.

Gaetano Bernardi lu el ze un personaio inventà, ma la so strada la ze fata de tanti testimoni veri, de lètare sparì tra le carte, de parole sentì sora le panchine de le famèie contadin, de stòrie che se conta pian come un rosàrio in dialeto. El rapresenta l'omo che no ga fondà sità, che no ga scrito libri, ma che, con le man ´nte la tera e el corpo piegà da la vita, el ga segnà el mapa scondesto de la identità italo-platense.

El tìtolo Dove che le Speranse le và a morir no el ze un dir no a la speransa, ma un riconosser quel che la speransa la domanda par restar viva: no ilusion, ma radisa. Qualche olta, el ze stà bisogno che la speransa vegia — romántica, europea, fata de soni — la morisse, par far nasser un'altra: pì dura, pì vera. Sta stòria la ze un tributo a sta trasformassion.

Scrivarla la ze stà un modo par capir de 'ndove che vegno mi. E magari, far capir anca qualcun altro da 'ndove che el vien. Se el letor el se ritrova in sta stòria — un biso, 'na nona, 'na pàgina de la so famèia — alora sto libro el ga compì el so dover: tegnìer viva la memòria de chi che el ze vegnù prima de noaltri, par no lassar che i so passi i sparisse par sempre ´nte la pòlvere de le pampas.

Dr. Luiz Carlos B. Piazzetta

sexta-feira, 24 de outubro de 2025

O Eco das Montanhas: A Jornada de Chiara Rossetta

 

O Eco das Montanhas 

A Jornada de Chiara Rossetta


A história começa na primavera de 1898, em um pequeno e pitoresco vilarejo chamado Zoldo Alto, localizado nas encostas mais ao norte da província de Belluno, onde os picos nevados dos Dolomitas se erguiam como guardiões silenciosos de um mundo que parecia alheio à modernidade. Após um inverno rigoroso, os primeiros sinais de vida ressurgiam; a neve começava a se dissolver sob o calor tímido do sol, expondo os campos férteis que logo se transformariam em um vibrante tapete de flores silvestres. Chiara Rossetta, uma jovem de 17 anos, estava no quintal de sua casa simples, construída de pedras gastas pelo tempo e pela chuva. Seus olhos, de um castanho profundo, seguiam o contorno das montanhas ao longe, como se buscassem respostas no horizonte. O ar da manhã era fresco, impregnado do perfume das árvores de pinho que circundavam a aldeia. Chiara segurava um lenço vermelho em suas mãos ágeis, dobrando-o cuidadosamente antes de amarrá-lo com firmeza sobre seus cabelos escuros e trançados. Aquele lenço não era apenas um acessório. Era um símbolo da tradição, herdado de sua mãe, e que agora ela usava com um misto de orgulho e saudade. Com o olhar ainda fixo nas montanhas, suspirou profundamente, sentindo o vento frio beijar suas bochechas coradas. Ali, naquele instante de quietude, Chiara se sentia parte de algo maior, um elo invisível com a terra que sustentava sua família há gerações, mas também com os segredos e as incertezas que o futuro poderia trazer. Chiara vinha de uma família humilde. Seus pais, Domenico e Teresa, lutavam para sustentar os cinco filhos com a pequena colheita de batatas e o leite de algumas vacas. As noites eram longas, preenchidas pelo som do vento entre as árvores e pelo murmúrio das preces de sua mãe, pedindo por um futuro melhor.

Um dia, um murmúrio diferente percorreu o vilarejo, carregado pelo vento frio que descera das montanhas. A chegada de uma figura austera conhecida por organizar o recrutamento de trabalhadores para as colheitas no Trento, trouxe um burburinho de curiosidade e inquietação. A mulher, com sua voz firme e postura imponente, anunciou na praça: “Eles precisam de braços fortes para a colheita na Val d’Adige. Pagam bem, e o trabalho dura toda a estação.” Suas palavras, simples e diretas, reverberaram como uma promessa de esperança para muitos, mas também como uma despedida inevitável para outros. Para Chiara, a oferta parecia mais que um simples trabalho sazonal; era uma janela para um mundo além das montanhas que confinavam seu vilarejo. Cada palavra da signora Dal Bosco soava como um eco de possibilidades, uma chance de escapar, mesmo que por poucos meses, do cotidiano monótono e das obrigações sufocantes que marcavam sua juventude. Zoldo Alto, com suas paisagens deslumbrantes, era também uma prisão onde as oportunidades eram tão raras quanto flores no inverno. Mais do que isso, a proposta carregava um brilho prático: era a chance de aliviar o peso que sua presença impunha à família. A pequena soma que prometiam pagar poderia comprar pão, pagar dívidas e, com sorte, começar a compor o dote que Chiara sabia ser essencial para um casamento digno. Cada moeda guardada seria um tijolo no alicerce de um futuro que, até aquele momento, parecia uma miragem distante. Ainda assim, o sonho de um futuro próprio era frágil, um fio tênue que se equilibrava entre a esperança e o realismo implacável da pobreza. Havia algo mais profundo em sua decisão: um anseio por independência, por provar a si mesma que era capaz de romper o ciclo de limitações que a cercava. Contudo, a promessa de liberdade trazia consigo um preço emocional. A ideia de partir significava deixar para trás tudo o que conhecia – os rostos queridos, as noites em volta da lareira, os campos que ela sabia como a palma da mão.

Esse dilema pulsava como um tambor silencioso em seu peito. Chiara sabia que, ao aceitar, não estava apenas enfrentando a distância física, mas também cruzando uma linha invisível entre o que era esperado dela e o que ela desejava para si mesma. A pobreza podia limitar seus recursos, mas não apagava sua determinação de lutar por algo maior. Naquela mesma noite, enquanto o resto da casa dormia, Chiara ouviu os sussurros baixos de seus pais na cozinha. A mãe, com a voz embargada, dizia que era perigoso deixar a filha ir tão longe. O pai, silencioso como sempre, respondia apenas com suspiros profundos e o ranger da cadeira contra o piso. Quando a discussão cessou, Chiara sabia que havia tomado sua decisão, mesmo que essa pesasse como uma pedra em seu coração.

Na madrugada seguinte, o vilarejo repousava em um silêncio sombrio, com as sombras ainda abraçando as fachadas de pedra e os telhados cobertos de musgo. A pequena praça, iluminada apenas pela pálida luz de um céu que prometia o amanhecer, parecia suspensa no tempo, como um cenário à espera de que algo marcante acontecesse. Chiara estava lá, tremendo não pelo frio, mas pela carga emocional do momento. Ao seu redor, outras jovens se reuniam em pequenos grupos, sussurrando palavras de conforto ou despedida, enquanto ajeitavam malas gastas e cachecóis remendados. Ela segurava firme sua pequena mala de couro, desgastada pelo tempo, mas suficiente para abrigar o pouco que possuía: uma muda de roupa cuidadosamente dobrada, um rosário que sua mãe lhe entregara na noite anterior, e um pedaço de pão envolto em um pano simples, símbolo tanto de sustento quanto de despedida. Era tudo o que precisava para começar a jornada – e, talvez, tudo o que podia levar sem olhar para trás. O lenço vermelho estava amarrado com cuidado sobre seus cabelos escuros, quase como um escudo contra o vento frio da madrugada e as incertezas do que viria. Mas enquanto seu corpo parecia firme e seu queixo erguido sugeria determinação, seus olhos, grandes e inquietos, revelavam o tumulto interior. Medo e esperança se misturavam em suas pupilas, pulsando com a mesma força de seu coração acelerado.

Chiara não era a única a enfrentar essa batalha silenciosa. Ao redor, as outras jovens exibiam expressões semelhantes, cada uma carregando não apenas malas, mas também sonhos, responsabilidades e angústias. Para todas elas, aquele momento era uma linha divisória, um ponto sem retorno, onde o conhecido e o incerto se encontravam. Enquanto o céu começava a clarear, prometendo a chegada de um novo dia, Chiara apertou as alças de sua mala, como se aquele gesto pudesse conter os pensamentos que a inundavam. Ela sabia que, ao dar o primeiro passo para fora da praça, estaria começando não apenas uma jornada física, mas também uma travessia emocional que mudaria sua vida para sempre.

Quando a carroça surgiu ao longe, cortando a neblina da manhã e levantando uma nuvem de poeira na trilha, Chiara sentiu uma fisgada no coração. Era o momento definitivo, aquele em que não haveria mais tempo para hesitações ou despedidas. Ela lançou um último olhar para as montanhas que haviam sido seu abrigo, seus desafios e, às vezes, sua prisão. A luz do amanhecer tingia os picos ainda cobertos de neve, como se a paisagem quisesse guardar sua silhueta em memória. O rosto de sua mãe, banhado em lágrimas, e o silêncio pesado de seu pai assaltaram sua mente com força inesperada. Ambos haviam transmitido amor e desaprovação em igual medida, como se tivessem chegado a um acordo tácito de que a decisão era dela, mas a dor era deles. Nesse instante, Chiara murmurou para si mesma uma promessa silenciosa: um dia, retornaria. Mas não como a menina que partia com uma mala cheia de esperanças e medos, e sim como uma mulher que tivesse moldado seu próprio destino, provando que o sacrifício valera a pena. 

A jornada até Trento foi tudo menos fácil. As primeiras horas foram passadas em silêncio, com o ranger das rodas da carroça e o estalar de cascos no caminho pedregoso oferecendo o único consolo rítmico. Às vezes, desciam para caminhar, as jovens seguindo a trilha estreita enquanto as carroças avançavam lentamente. O vento frio cortava seus rostos, e os pés, empoeirados e doloridos, começavam a se ressentir da distância.

Quando finalmente chegaram à estação de Tezze Valsugana, Chiara sentiu um misto de exaustão e maravilhamento. Diante dela, um trem fumegava como uma fera adormecida, o vapor se misturando ao ar gelado da manhã. Era a primeira vez que via algo tão grandioso e intimidador. O som metálico das rodas nos trilhos e os gritos dos condutores faziam seu coração disparar. Mas ela se manteve firme, segurando com força sua pequena mala e respirando fundo, como se quisesse absorver toda a coragem que aquele novo mundo exigia. Ao cruzar a fronteira, o primeiro teste aguardava. Um homem de expressão severa e roupas impecáveis pediu documentos. Chiara retirou, com mãos ligeiramente trêmulas, um certificado assinado pelo pároco do vilarejo, atestando sua “boa conduta”. O papel, amarelado e dobrado com cuidado, representava mais do que uma formalidade; era sua garantia de que pertencia àquele grupo, de que trazia consigo não apenas sonhos, mas também a dignidade que seu vilarejo lhe confiara. Enquanto o oficial analisava o documento, ela ergueu o queixo e encontrou força no pensamento de que, passo a passo, estava se aproximando do futuro que escolhera para si mesma.

Em Trento, a grandiosa Piazza del Duomo, com suas pedras desgastadas pelo tempo e a imponente catedral gótica ao fundo, parecia um cenário tirado de um conto de outro mundo. No entanto, para Chiara, a beleza do lugar foi eclipsada pela realidade crua que a esperava. O mercado das Ciòde era um espetáculo que misturava tradição e brutalidade, e ela sabia que seria um dia gravado em sua memória com ferocidade. Sob a sombra de um majestoso tiglio, o grande freixo que parecia testemunhar séculos de histórias de dignidade e humilhação, as jovens estavam alinhadas como se fossem parte de uma exposição silenciosa. Os agricultores locais, com mãos calejadas e rostos endurecidos pelo sol e pela vida nos campos, aproximavam-se com olhares críticos. Seus olhos percorriam cada jovem como se estivessem avaliando gado, fixando-se nas mãos, nos braços e até na postura. Alguns murmuravam entre si em dialetos ásperos, enquanto outros faziam perguntas diretas que pareciam cortar como navalhas. A experiência era avassaladora, uma mistura de julgamento e exposição que tornava o ar quase irrespirável.

Chiara, porém, manteve-se firme, ainda que sentisse o calor subir-lhe ao rosto, tingindo suas bochechas de um vermelho que combinava com o lenço em sua cabeça. Era um rubor de humilhação e raiva contida, mas também de determinação. Ela endireitou os ombros e olhou para frente, recusando-se a baixar os olhos como algumas das outras jovens faziam. Não daria àqueles homens o gosto de vê-la encolher-se. “Suas mãos são fortes?”, perguntou um homem de meia-idade, sua voz rouca. Ele segurou os dedos de Chiara com firmeza, virando-os para examinar as palmas. Chiara engoliu seco, o gesto invasivo desencadeando um arrepio que percorreu sua espinha, mas manteve a compostura. “Sim, senhor”, respondeu ela, com uma voz firme que desafiava o desconforto. Enquanto os minutos se arrastavam, ela percebeu que aquele momento era mais do que uma transação: era uma prova. Não apenas de sua força física, mas de sua resiliência. Sob os olhares avaliadores e os cochichos dos compradores, Chiara fez uma promessa a si mesma. Por mais degradante que fosse a experiência, ela não seria definida por aquele instante. Era uma batalha pequena dentro de uma guerra maior — e ela pretendia vencer. Foi contratada por uma família chamada Berti, donos de uma vasta plantação de maçãs. Seu trabalho começava ao amanhecer e só terminava com o cair da noite. Apesar do cansaço, Chiara encontrava consolo nas raras cartas que enviava e recebia de sua família. Mas nem tudo era sofrimento. Nos intervalos roubados entre as longas horas de trabalho, Chiara encontrou alívio na companhia de outras Ciòde, jovens que, como ela, haviam deixado seus lares em busca de algo melhor. Foi ali, entre as plantações e os alojamentos simples, que conheceu Lucia Zaniella, uma menina de apenas 15 anos, cujos olhos brilhavam com uma vitalidade que nem mesmo a exaustão conseguia apagar. Lucia tinha um jeito travesso, sempre pronta com um comentário espirituoso que arrancava risos até nos momentos mais difíceis. À noite, sob a luz suave da lua que banhava os campos da Val d’Adige, as duas se sentavam lado a lado, emolduradas pelo silêncio quebrado apenas pelo som distante do vento ou pelo murmúrio das cigarras. Aquele era o momento em que o peso do dia parecia se dissipar, ainda que brevemente. Entre goles de água ou bocados de pão duro, compartilhavam histórias de suas aldeias, falavam das famílias que haviam deixado para trás e sonhavam, cada uma à sua maneira, com um futuro menos cruel.

Lucia contava sobre os riachos gelados de sua terra natal e sobre os irmãos menores que esperavam por ela, enquanto Chiara falava das montanhas de Zoldo Alto e da promessa que fizera de retornar como uma mulher forte e independente. “Um dia, quero abrir uma pequena trattoria”, dizia Lucia com um sorriso tímido. “Nada grande, mas cheia de gente rindo e comendo. Você será minha sócia, Chiara.” A ideia, ainda que remota, iluminava seus rostos como uma vela num quarto escuro. Juntas, enfrentavam os desafios com mais coragem. O trabalho nos campos era extenuante, e os olhares desconfiados dos locais frequentemente adicionavam um peso extra aos seus ombros. Mas havia força na amizade, uma cumplicidade silenciosa que tornava as adversidades mais suportáveis. Quando uma hesitava, a outra encorajava. Quando uma caía, a outra ajudava a levantar. A amizade com Lucia tornou-se uma âncora para Chiara, algo que a lembrava de que, mesmo em tempos difíceis, a solidariedade podia florescer, criando laços mais fortes que as correntes da pobreza ou da humilhação. E assim, noite após noite, entre sussurros e risos abafados, as duas teciam não apenas sonhos, mas uma rede de esperança que as mantinha firmes, mesmo quando tudo ao redor parecia desmoronar. No final da colheita, Chiara retornou a Zoldo Alto com algumas moedas no bolso e um coração mais forte, mais moldado pelas adversidades que enfrentara. Ao contrário da jovem hesitante que partira meses antes, ela agora carregava dentro de si uma força silenciosa, fruto das longas jornadas sob o sol implacável, das noites insones em que sonhava com um futuro melhor, e das provações que a haviam feito crescer de maneira inesperada. Ao se aproximar da pequena aldeia, sentiu uma estranha sensação de pertencimento, como se, em algum nível profundo, as montanhas que a cercavam e a terra dura que ela pisava tivessem se integrado à sua própria essência. As majestosas montanhas de Zoldo Alto, que antes lhe pareciam vastas e intimidantes, agora pareciam menos ameaçadoras, quase como velhas amigas que observavam seu progresso. Elas estavam ali, sempre presentes, mas não mais intransponíveis. Pareciam agora fazer parte de quem ela era, como se a força delas tivesse sido transferida para ela ao longo de sua jornada.

A estrada de volta foi silenciosa, com Chiara refletindo sobre tudo o que havia vivido no Trento. As dificuldades do mercado das Ciòde, os olhares de avaliação dos agricultores, a solidão das noites à luz da lua — tudo isso a havia marcado profundamente. Mas também a fortaleceram. Ela já não era mais a menina que partira com um lenço vermelho amarrado na cabeça, com o rosto marcado pela inexperiência e pela insegurança. Chiara havia aprendido a suportar o peso das expectativas e das adversidades, a ser firme quando as circunstâncias tentavam quebrá-la. Agora, ela era uma mulher que carregava no olhar algo de irrevogável, uma determinação forjada nas experiências vividas. Ao atravessar a porta de casa, o cheiro da madeira queimada no fogão e o calor do lar acolheram-na de forma reconfortante, mas já não era a mesma menina que se despedira ali. A mãe, com seus olhos marejados de saudade, a abraçou com força, mas Chiara percebeu que, de algum modo, havia algo novo entre elas — um silêncio compartilhado, uma compreensão silenciosa sobre o quanto o mundo fora além de seus muros. Ela não era mais apenas filha. Era alguém que havia vivido, que tinha uma história para contar, uma história que a tornara mais inteira, mais capaz de enfrentar o futuro. E, apesar de ainda não saber ao certo o que o futuro lhe reservava, Chiara agora sabia que, de alguma forma, ela seria capaz de moldá-lo.

Anos depois, Chiara usaria as lições duramente conquistadas na Val d’Adige para liderar outras jovens de Zoldo Alto. As experiências de trabalho nas vastas vinhedos e a dureza das longas horas sob o sol implacável haviam deixado uma marca profunda em seu caráter, uma marca que ela carregava com uma dignidade silenciosa. Sua voz, antes hesitante e cheia de incertezas, agora era um reflexo de quem conhecia, de perto, o peso da exploração e da subordinação. Ela falava com a firmeza de alguém que soubera o que era ser tratada como mercadoria, a ser avaliada não pela sua humanidade, mas pela força de seus braços. Mas, ao mesmo tempo, havia em suas palavras algo mais — uma esperança inquebrantável, um brilho de luz que nunca se apagava, mesmo nas situações mais sombrias. Chiara acreditava na força do espírito humano, na capacidade de resistir, de se levantar e, acima de tudo, de transformar a dor em aprendizado e superação. Ela sabia que não podia mudar o passado, mas acreditava firmemente que podia ensinar as jovens do vilarejo a não se deixarem abater pelas dificuldades. Em sua postura, na forma como observava os outros com olhos atentos e acolhedores, havia a certeza de que elas também poderiam encontrar força dentro de si mesmas, assim como ela havia feito. Suas palavras eram como um farol para aquelas que, como ela, um dia se sentiriam perdidas diante da vastidão de um mundo que parecia imenso e implacável. Chiara não era mais a jovem ingênua que partira para Trento, mas uma mulher que conhecia a escuridão e sabia como encontrar a luz no fim do túnel. E, ao compartilhar suas histórias, ela se tornava um exemplo de resiliência, uma voz que poderia inspirar outras a lutar por seus direitos e sonhos. Ao liderar aquelas jovens, Chiara não apenas transmitia as lições da colheita, mas algo ainda mais importante: a crença de que, mesmo nas situações mais difíceis, era possível manter a esperança viva. Em cada palavra que dizia, em cada gesto de liderança que tomava, ela plantava as sementes de uma revolução silenciosa — não apenas contra as injustiças do mundo, mas também contra as limitações que cada mulher carregava dentro de si. Ela acreditava que, um dia, a Val d’Adige não seria apenas um lugar de trabalho árduo e exploração, mas um símbolo de superação e força coletiva.

A história de Chiara Rossetti é uma entre milhares, mas sua jornada ressoa com a intensidade das montanhas que cercavam sua terra natal, como se as rochas de Zoldo Alto tivessem guardado cada suspiro, cada lágrima, e cada passo que ela deu em direção ao futuro. É um testemunho de resistência, forjado nas circunstâncias mais difíceis, onde a sobrevivência não era apenas uma questão de força física, mas também de espírito indomável. Em tempos de adversidade, quando a vida parecia estar contra ela, Chiara se erguia, movida não apenas pelo desejo de escapar da miséria, mas pela necessidade de provar a si mesma e ao mundo que a mulher, assim como a terra que cultivava, podia florescer mesmo nas condições mais áridas. A sua luta não era apenas pela sobrevivência; era uma busca pela dignidade, pela autonomia, pela capacidade de tomar as rédeas de seu próprio destino. Ela representava a força silenciosa de tantas mulheres anônimas que, durante séculos, haviam sido empurradas para os limites da história, ignoradas por aqueles que escreviam os grandes feitos. Mas, como as montanhas que a viam crescer, a história de Chiara se erguia firme, impassível ao passar do tempo, e continuava a ser contada nas sombras das colinas, nas palavras sussurradas pelas gerações que viriam depois dela. Era uma história de coragem, onde cada obstáculo superado se transformava não apenas em uma vitória pessoal, mas em um símbolo de todas as mulheres que se viam, à sua maneira, refletidas em seu sofrimento e em sua força. As dificuldades que Chiara enfrentou eram as mesmas que milhões de outras mulheres experimentavam, mas a forma como ela as encarou, com uma determinação serena e uma visão implacável de futuro, tornava sua história universal. Ela não era apenas um nome perdido na memória de um pequeno vilarejo italiano; ela era o eco de todas as mulheres que, ao longo da história, lutaram para ser vistas e ouvidas. E, assim, sua vida permanece como um lembrete de que, mesmo nas épocas mais sombrias, as montanhas da adversidade podem ser escaladas, e as vozes daqueles que enfrentam a tempestade podem, finalmente, ser ouvidas e reverberadas por todas as gerações que virão.


Nota do Autor


Este romance foi inspirado em pesquisas e relatos históricos sobre as vivências e desafios enfrentados pelos habitantes da região de Belluno, no Vêneto, durante os séculos XIX e XX. Embora os eventos narrados sejam fictícios, eles refletem as dificuldades reais de uma época marcada pela luta pela sobrevivência, pelas mudanças sociais profundas e pelo êxodo em busca de melhores oportunidades em terras distantes. Ao escrever esta obra, busquei dar voz a personagens que, embora fruto da imaginação, carregam em suas trajetórias os sentimentos, os medos e os sonhos que poderiam ter sido os de qualquer pessoa daquela época. O sofrimento diante das guerras, a luta contra a miséria, e a resiliência necessária para sobreviver em meio às adversidades são elementos que perpassam esta narrativa, concebida com profunda admiração pelas vidas de nossos antepassados. Nenhuma das figuras retratadas aqui representa pessoas reais, e a história foi construída como um tributo às histórias anônimas que moldaram comunidades inteiras. As paisagens descritas, as aldeias, e os eventos refletem o contexto histórico e cultural da região, enriquecidos com a liberdade criativa que a ficção permite. A pesquisa que embasou este romance envolveu a consulta a textos históricos, artigos, e memórias coletivas. Entre as fontes consultadas, um relato particular sobre os desafios das mulheres de Belluno foi uma importante inspiração para construir o pano de fundo deste enredo, ainda que o mesmo tenha sido amplamente reelaborado para criar uma narrativa original e independente. Espero que esta obra inspire não apenas uma reflexão sobre o passado, mas também uma apreciação pela força humana em tempos de adversidade, enquanto nos conectamos com as vozes que ecoam através da história.
Com respeito e gratidão,

Dr. Luiz Carlos B. Piazzetta