A GRANDE EMIGRAÇÃO VENETA
Federação Vêneta de São Paulo
Diz Ulderico Bernardi, no seu livro "A catàr fortuna" ("Em busca de fortuna"):"Qualquer povo da Terra, se procurar na sua história, encontrará a experiência da emigração. Enquanto para alguns povos ela é atual, para outros pertence a uma época já superada. O Vêneto hodierno, onde quase não há família que não tenha um parente ou um conhecido emigrado, conjuga esses dois aspectos, pois vê chegarem imigrados de muitos países ao mesmo tempo que existem ainda vênetos que emigram, mesmo que temporariamente, seja como técnicos para os grandes trabalhos que as empresas italianas realizam no exterior, seja para oferecer a outros países da Europa sua apreciadíssima habilidade na produção de sorvete artesanal. Mas não se trata mais de emigração em massa, de famílias, de povoados inteiros de pobres camponeses, na maioria analfabetos ou quase, como foi na origem.
É uma longa história, a da emigração vêneta, parte integrante do fluxo imponente que foi a emigração italiana. Nos cem anos que se seguiram à unificação nacional, estima-se que mais de vinte e três milhões de italianos conheceram os caminhos da emigração. Partiam dos antigos reinos desaparecidos, mas também das ricas províncias dos Sabóia, da fértil planície do Pó e dos montes desolados do Sul, dos territórios conquistados aos Habsburgos na Grande Guerra e das terras beneficiadas em que o sonho da propriedade se tinha dissolvido na agregação em latifúndios. Entre 1876 e 1925, em cinqüenta anos de adaptações políticas, aventuras coloniais, industrialização pesada, guerra na Europa e na África, já haviam partido quinze milhões de italianos: oito do Norte e sete do Sul. Fugiam da mortificação da pelagra, das taxas sobre o sal e sobre a moagem que encareciam demais até mesmo a polenta dos pobres, dos privilégios de uma burguesia urbana rapaz e absenteísta que odiava os camponeses pelo seu fervor religioso."
O escritor vêneto Ippolito Nievo acusava os "progressistas da cidade": "Não temo afirmar que aquela cruzada do liberalismo contra o clero do campo foi uma injustiça, foi uma improntitudine contra a gente do campo e, como os curas e os padres eram os únicos intérpretes de sua inteligência (...) vilipendiar os seus padres era vilipendiar aquele que tinha fé, gritar pela sua morte foi o mesmo que atentar contra a moralidade e a religião de todo um povo."
Meeiros, colonos, trabalhadores braçais, viviam sob a ameaça de perder a casa e o trabalho pela disdetta patronal no dia de S. Martinho, 11 de novembro, data que marcava o início do ano agrário e a renovação dos contratos.
A dureza do trabalho diário naquela época é documentada pela importante Pesquisa agrária e sobre as condições da classe agrícola, que o Parlamento italiano iniciou em 1877 e cujos resultados, publicados entre 1880 e 1885, revelaram a condição desesperada dos trabalhadores nos campos italianos. O cálculo das horas de trabalho do camponês vêneto é informado assim:
"... o camponês trabalha, no verão, das 4 da manhã às 8 da noite e, no inverno, das 7 da manhã às 5 da tarde; note-se, no entanto, que ambos os períodos de trabalho incluem duas horas de repouso, de modo que, em média, o camponês tem 14 horas de trabalho no verão e 8 no inverno, aí compreendido o tempo ocupado para ir e retornar do local de trabalho (que às vezes é distante) e calculando como horas de repouso aquelas passadas nas reuniões iemali" (isto é, as ‘filò’, ou seja, as vigílias noturnas no estábulo, ao calor dos animais, que na verdade eram horas de trabalho para mulheres e homens, aquelas ocupadas em fiar e estes em construir ou consertar implementos) ..."
"As horas de repouso na cama, por outro lado, podem ser calculadas em 6, tanto no verão como no inverno, por causa das reuniões noturnas que se prolongam até entre 11 da noite e meia-noite, e das quais costumam participar todos, fuorché crianças e velhos. ... Talvez não exista nenhuma classe social que, como a dos camponeses, utilize assim longamente as crianças e obrigue as mulheres a dividirem os esforços com os homens."
A agrura do trabalho ... era acompanhada do medo, para aqueles que não tinham a propriedade da terra, de perder casa e atividade. In agguato estava a miséria de viver na base da jornada, sem poder contar com algumas galinhas, com um porco, com uma horta, com aquele pouco de lenha que podia ser recolhido das árvores ao longo dos fossos, com um teto, malfeito talvez, mas seguro.
Os emigrantes partiam em grupos de vizinhos, às vezes povoados inteiros. Os senhores falavam de "americomania" e talvez até vissem com algum alívio o esvaziamento do campo, o que livraria campos e praças dos arrendatários mais exigentes e obstinados nas reivindicações. O hábito mental da arrogância, denunciado por Nievo, os tornava, havia séculos, indiferentes às agruras dos "vilões", tidos na conta de não-pessoas, ignorantes, ávidos, sórdidos, teimosos como bodes e sempre hostis às novidades.
O Brasil sempre foi um dos destinos mais importantes deste emigrantes. Dos 3,8 milhões de imigrantes que entraram no Brasil no período de 1870 a 1925, cerca de 1,5 milhões eram italianos. Isto significa que dez por cento de toda a emigração italiana do período destinou-se ao Brasil. Do ponto de vista do Brasil, a imigração italiana foi, por tempo longo tempo, a mais importante: no período considerado, uma terça parte do total de pessoas entradas no Brasil (os outros países importantes de proveniência foram Alemanha, Espanha, Portugal, Polônia, Rússia e, a partir de 1908, Japão) são imigrantes italianos. Mas em certos anos, o percentual de italianos na imigração total para o Brasil alcança quase oitenta porcento!
O Estado de São Paulo foi o que recebeu a maior quota de italianos. Não dispomos de estatística exata. Mas como este estado recebeu, no conjunto, a metade de toda a imigração estrangeira para o Brasil, e como certas nacionalidades se concentraram mais pesadamente em outros estados (por exemplo, os alemães em Santa Catarina e Rio Grande do Sul, os poloneses e russos no Paraná, os espanhóis no Rio de Janeiro e assim por diante), pode-se raciocinar que o estado de São Paulo tenha recebido pelo menos a metade de todos os italianos que entraram no Brasil.
Segundo o Ministério das Relações Exteriores da Itália, em 1966 o total de italianos e descendentes no Brasil era de 22.753.000 pessoas. E segundo a Embaixada da Itália no Brasil esse total havia subido para 25.000.000 no ano 2000.
No Estado de São Paulo, e particularmente na cidade de São Paulo, muito mais que em outros estados brasileiros que receberam imigrantes italianos, duas circunstâncias, entre outras, causaram a perda da consciência das raízes italianas, a perda do sobrenome italiano e a perda da italianidade:
com os casamentos "inter-raciais" (de mulheres italianas com homens de diversas outras nacionalidades) muitos sobrenomes italianos desapareceram;
durante a segunda guerra, o medo de ser tratado como "inimigo" levou muitas famílias italianas a "aportuguesarem" seus sobrenomes.
Mesmo assim, a estimativa do Consulado Italiano em São Paulo segundo a qual o total de italianos e descendentes, no estado, seja de apenas 6.000.000 parece-nos conservadora.
É impossível, com os dados disponíveis saber quantos são os vênetos e descendentes no Brasil ou no Estado de São Paulo. A presença em São Paulo de imigrantes (e descendentes) provenientes de todas as regiões da Itália favoreceu o aparecimento de uma "raça italiana" local, resultante dos numerosos casamentos "inter-regionais". Muitos dos descendentes de vênetos da atual geração, em São Paulo, têm também ancestrais provenientes de outras regiões da Itália e não poucos têm ancestrais não-italianos (portugueses, alemães, japoneses, russos etc). É comum que esses vênetos mesclados de São Paulo, ao buscar a obtenção de uma segunda cidadania, optem pela cidadania italiana através do ancestral vêneto. Será que eles se consideram mais vênetos do que outra coisa? Está aí um interessante tema que requer uma abordagem não apenas sociológica mas também psicológica ...
É uma longa história, a da emigração vêneta, parte integrante do fluxo imponente que foi a emigração italiana. Nos cem anos que se seguiram à unificação nacional, estima-se que mais de vinte e três milhões de italianos conheceram os caminhos da emigração. Partiam dos antigos reinos desaparecidos, mas também das ricas províncias dos Sabóia, da fértil planície do Pó e dos montes desolados do Sul, dos territórios conquistados aos Habsburgos na Grande Guerra e das terras beneficiadas em que o sonho da propriedade se tinha dissolvido na agregação em latifúndios. Entre 1876 e 1925, em cinqüenta anos de adaptações políticas, aventuras coloniais, industrialização pesada, guerra na Europa e na África, já haviam partido quinze milhões de italianos: oito do Norte e sete do Sul. Fugiam da mortificação da pelagra, das taxas sobre o sal e sobre a moagem que encareciam demais até mesmo a polenta dos pobres, dos privilégios de uma burguesia urbana rapaz e absenteísta que odiava os camponeses pelo seu fervor religioso."
O escritor vêneto Ippolito Nievo acusava os "progressistas da cidade": "Não temo afirmar que aquela cruzada do liberalismo contra o clero do campo foi uma injustiça, foi uma improntitudine contra a gente do campo e, como os curas e os padres eram os únicos intérpretes de sua inteligência (...) vilipendiar os seus padres era vilipendiar aquele que tinha fé, gritar pela sua morte foi o mesmo que atentar contra a moralidade e a religião de todo um povo."
Meeiros, colonos, trabalhadores braçais, viviam sob a ameaça de perder a casa e o trabalho pela disdetta patronal no dia de S. Martinho, 11 de novembro, data que marcava o início do ano agrário e a renovação dos contratos.
A dureza do trabalho diário naquela época é documentada pela importante Pesquisa agrária e sobre as condições da classe agrícola, que o Parlamento italiano iniciou em 1877 e cujos resultados, publicados entre 1880 e 1885, revelaram a condição desesperada dos trabalhadores nos campos italianos. O cálculo das horas de trabalho do camponês vêneto é informado assim:
"... o camponês trabalha, no verão, das 4 da manhã às 8 da noite e, no inverno, das 7 da manhã às 5 da tarde; note-se, no entanto, que ambos os períodos de trabalho incluem duas horas de repouso, de modo que, em média, o camponês tem 14 horas de trabalho no verão e 8 no inverno, aí compreendido o tempo ocupado para ir e retornar do local de trabalho (que às vezes é distante) e calculando como horas de repouso aquelas passadas nas reuniões iemali" (isto é, as ‘filò’, ou seja, as vigílias noturnas no estábulo, ao calor dos animais, que na verdade eram horas de trabalho para mulheres e homens, aquelas ocupadas em fiar e estes em construir ou consertar implementos) ..."
"As horas de repouso na cama, por outro lado, podem ser calculadas em 6, tanto no verão como no inverno, por causa das reuniões noturnas que se prolongam até entre 11 da noite e meia-noite, e das quais costumam participar todos, fuorché crianças e velhos. ... Talvez não exista nenhuma classe social que, como a dos camponeses, utilize assim longamente as crianças e obrigue as mulheres a dividirem os esforços com os homens."
A agrura do trabalho ... era acompanhada do medo, para aqueles que não tinham a propriedade da terra, de perder casa e atividade. In agguato estava a miséria de viver na base da jornada, sem poder contar com algumas galinhas, com um porco, com uma horta, com aquele pouco de lenha que podia ser recolhido das árvores ao longo dos fossos, com um teto, malfeito talvez, mas seguro.
Os emigrantes partiam em grupos de vizinhos, às vezes povoados inteiros. Os senhores falavam de "americomania" e talvez até vissem com algum alívio o esvaziamento do campo, o que livraria campos e praças dos arrendatários mais exigentes e obstinados nas reivindicações. O hábito mental da arrogância, denunciado por Nievo, os tornava, havia séculos, indiferentes às agruras dos "vilões", tidos na conta de não-pessoas, ignorantes, ávidos, sórdidos, teimosos como bodes e sempre hostis às novidades.
O Brasil sempre foi um dos destinos mais importantes deste emigrantes. Dos 3,8 milhões de imigrantes que entraram no Brasil no período de 1870 a 1925, cerca de 1,5 milhões eram italianos. Isto significa que dez por cento de toda a emigração italiana do período destinou-se ao Brasil. Do ponto de vista do Brasil, a imigração italiana foi, por tempo longo tempo, a mais importante: no período considerado, uma terça parte do total de pessoas entradas no Brasil (os outros países importantes de proveniência foram Alemanha, Espanha, Portugal, Polônia, Rússia e, a partir de 1908, Japão) são imigrantes italianos. Mas em certos anos, o percentual de italianos na imigração total para o Brasil alcança quase oitenta porcento!
O Estado de São Paulo foi o que recebeu a maior quota de italianos. Não dispomos de estatística exata. Mas como este estado recebeu, no conjunto, a metade de toda a imigração estrangeira para o Brasil, e como certas nacionalidades se concentraram mais pesadamente em outros estados (por exemplo, os alemães em Santa Catarina e Rio Grande do Sul, os poloneses e russos no Paraná, os espanhóis no Rio de Janeiro e assim por diante), pode-se raciocinar que o estado de São Paulo tenha recebido pelo menos a metade de todos os italianos que entraram no Brasil.
Segundo o Ministério das Relações Exteriores da Itália, em 1966 o total de italianos e descendentes no Brasil era de 22.753.000 pessoas. E segundo a Embaixada da Itália no Brasil esse total havia subido para 25.000.000 no ano 2000.
No Estado de São Paulo, e particularmente na cidade de São Paulo, muito mais que em outros estados brasileiros que receberam imigrantes italianos, duas circunstâncias, entre outras, causaram a perda da consciência das raízes italianas, a perda do sobrenome italiano e a perda da italianidade:
com os casamentos "inter-raciais" (de mulheres italianas com homens de diversas outras nacionalidades) muitos sobrenomes italianos desapareceram;
durante a segunda guerra, o medo de ser tratado como "inimigo" levou muitas famílias italianas a "aportuguesarem" seus sobrenomes.
Mesmo assim, a estimativa do Consulado Italiano em São Paulo segundo a qual o total de italianos e descendentes, no estado, seja de apenas 6.000.000 parece-nos conservadora.
É impossível, com os dados disponíveis saber quantos são os vênetos e descendentes no Brasil ou no Estado de São Paulo. A presença em São Paulo de imigrantes (e descendentes) provenientes de todas as regiões da Itália favoreceu o aparecimento de uma "raça italiana" local, resultante dos numerosos casamentos "inter-regionais". Muitos dos descendentes de vênetos da atual geração, em São Paulo, têm também ancestrais provenientes de outras regiões da Itália e não poucos têm ancestrais não-italianos (portugueses, alemães, japoneses, russos etc). É comum que esses vênetos mesclados de São Paulo, ao buscar a obtenção de uma segunda cidadania, optem pela cidadania italiana através do ancestral vêneto. Será que eles se consideram mais vênetos do que outra coisa? Está aí um interessante tema que requer uma abordagem não apenas sociológica mas também psicológica ...
2 comentários:
Excelente relato! Realmente no principio venetos se casavam com venetos, lombardos com lombardos e assim por diante como se fosse uma regra.
Só com o tempo com a questão de italianidade e não mais de regionalidade, é que os italianos foram se misturando e acabaram virando um só povo, uma só nação, sem mais levarem em conta dialetos próprios, culturas e questões da própria região de origem.
Vejo exemplo da minha família onde venetos se casaram com lombardos.
Excelente relato! Realmente no principio venetos se casavam com venetos, lombardos com lombardos e assim por diante como se fosse uma regra.
Só com o tempo com a questão de italianidade e não mais de regionalidade, é que os italianos foram se misturando e acabaram virando um só povo, uma só nação, sem mais levarem em conta dialetos próprios, culturas e questões da própria região de origem.
Vejo exemplo da minha família onde venetos se casaram com lombardos.
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