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segunda-feira, 21 de setembro de 2020

A Religiosidade do Imigrante nas Colônias Italianas do Sul do Brasil


As colônias agrícolas que se estabeleceram nos estados do sul do Brasil, representaram um transplante bem sucedido da civilização camponesa. No estado do Rio Grande do Sul, as colônias agrícolas formadas por italianos conseguiram, em poucos anos, se firmarem como verdadeiras áreas agrícolas. Os imigrantes, chegados ao seus destinos, após jornadas longas e exaustivas, eram deixados sozinhos no meio do nada, cercados de florestas, com pouca comida, munidos de alguns poucos utensílios de trabalho, ainda sem uma moradia para abrigar a família e sem qualquer tipo de assistência médica, assim como também  ocorria para toda a população rural brasileira da época. Nessas colônias os emigrantes italianos transferiram seu patrimônio de conhecimentos e habilidades técnicas profissionais, as quais constituíram a espinha dorsal do desenvolvimento futuro daqueles territórios, a partir do equilíbrio entre o desejo de manter a originalidade cultural do país de origem e a necessidade de adaptação às condições econômicas e sociais do ambiente na nova Pátria. 


Apesar de se sentirem muito contentes com a realização do sonho da propriedade que estava finalmente se realizando, sofriam desde o primeiro momento da chegada, com o distanciamento e a falta do conforto religioso que estavam habituados. A quase totalidade dos imigrantes eram católicos e quando estavam na Itália eram cumpridores assíduos das obrigações religiosas, especialmente, a freqüência à missa dominical e a participação dos sacramentos obrigatórios como batismo, confissão, comunhão e matrimônio. Essa adesão às normas da igreja era completada pela participação das principais atividades litúrgicas e a observação do descanso dominical. Nos primeiros anos na nova pátria isso não mais existia e se transformava em motivo de angústia para todos. A 
religiosidade sempre era para eles a fonte de energia, não só para ajudar superar as adversidades da vida, mas também para definir todo processo de desenvolvimento das suas atividades sociais, culturais e econômicas. Era a crença baseada em sólidos conhecimentos da doutrina cristã e na vivência convicta das práticas religiosas. A religião católica, de fato, acompanhava aquele imigrante pioneiro desde o berço e assim a grande maioria deles não colocava em dúvida seu pertencimento à Igreja católica. Para minimizar a falta que sentiam do conforto religioso, nos primeiros anos da chegada, era compensada pela récita do terço diário no ambiente familiar, especialmente antes de dormir. Já instalados em suas colônias, nos momentos mais difíceis, os imigrantes apelavam invariavelmente para a proteção divina. Quando sentiam saudades da pátria, da terra natal, dos familiares e amigos que lá deixaram, ou mesmo, de tudo aquilo que recordava o seu vilarejo; quando sentiam a solidão, o sofrimento ao enfrentar um novo  desconhecido mundo; quando surgiam conflitos familiares, doenças ou frustrações nos negócios, suas mentes se dirigiam, em especial, a Nossa Senhora e aos Santos de sua devoção. A Igreja, para o imigrante italiano, era a referência primeira de sua vida. Nela estavam concentrados todos os seus projetos. A Igreja, para eles, num primeiro sentido, tinha o mesmo que de religião. Num segundo sentido, igreja era o prédio onde se reuniam para rezar. Tanto a igreja, como religião, quanto a igreja, como local de oração, completavam-se. As práticas religiosas encontrariam sua plena realização no interior de um local consagrado, que podia ser capitel, oratório, capela, igreja, catedral ou santuário. A Igreja constituiu, de maneira visível, junto com a propriedade e a família, o tripé da vida social dos imigrantes. Para eles três eram acontecimentos fundamentais de cada pessoa, o nascimento, o casamento e o falecimento. O nascimento era o batismo. O casamento era a cerimônia religiosa. O falecimento era o momento de receber os últimos confortos da religião. Para os primeiros imigrantes a preocupação maior sempre foi com o batismo e o casamento religioso, pois, aquele civil poderia ser feito mais tarde, por questões legais e direito dos filhos. No caso de falecimento se preocupavam antes de tudo com a falta de um padre para celebrar os rituais fúnebres.

Assim uma das mais urgentes providências que ocorria aos primeiros imigrantes, era a construção de um local para as práticas religiosas e a solicitação de um padre às autoridades, tanto eclesiásticas quanto governamentais. Desde o início da colonização, estes imigrantes privados de toda a assistência religiosa, pediam sacerdotes para viver no meio deles, partilhar sua vida e guardar viva, nos seus corações, a fé, que despertava neles tantas recordações da pátria distante

Nos primeiros anos, devido as dificuldades encontradas para suprir a grande falta de padres ordenados, os imigrantes pioneiros recorreram ao que então se denominava padre leigo, o qual  chegou a ter  enorme importância, pelo trabalho desenvolvido entre eles para manter viva a fé e preservar as práticas religiosas. Em todas as colônias, sempre havia um regente das atividades litúrgicas. A este se passou a chamá-lo de padre leigo. Ele não era uma indicação do clero regular, mas sim, uma escolha espontânea da comunidade. Cada uma delas tinha os seus critérios para os escolher, mas, em geral, sempre se exigia que soubessem ler e escrever, e fossem exemplo de valores morais e religiosos. Geralmente eram pessoas que já haviam exercido a função de sacristão em sua paróquia de origem, ou haviam participado de um coral de igreja, ou ainda tivesse sido ajudante em cerimônias litúrgicas da semana santa e do canto das vésperas na Itália. A eles era atribuída a regência de todas as funções litúrgicas, como recitar o terço aos domingos à tarde e ensinar o catecismo da primeira comunhão, batizar recém nascidos em perigo de morte, conduzir os ritos fúnebres. Quanto maior a capacidade do padre leigo, mais solenes eram as celebrações, em certos casos, eles vestiam os paramentos e celebravam partes da missa, que, para os imigrantes, tinha tanto valor e obrigatoriedade como as missas verdadeiras. A maioria dos padres leigos eram homens valorosos que exerciam suas funções de um modo muito correto, com fé e piedade. Em nenhum momento os padres leigos pretenderam ocupar o lugar dos padres ordenados. Assim mesmo, não faltaram mais tarde o surgimento de conflitos, geralmente por falta de compreensão de muitos sacerdotes e bispos. 

O padre sempre foi o mais poderoso elemento de ordem, moralidade e estabilidade social para os emigrantes, os quais, mais tarde, puderam constatar que a vida deles apesar de seu enorme prestígio junto aos colonos, nem sempre era fácil. Desde o início tiveram que enfrentar grandes desafios, em parte, muito semelhantes a de todos os imigrantes. Primeiro precisavam se adaptar ao novo mundo. Uma das grandes dificuldades que os primeiros padres tiveram que enfrentar, foi a falta de quase tudo para exercer sua missão. A começar pelas precárias condições de realizar as celebrações, em especial, a santa missa. As igrejas eram bem poucas e muito precárias. Os paramentos e os objetos sacros ou eram deficientes ou inexistentes. O meio de locomoção, na melhor das hipóteses, era o cavalo. As precárias estradas eram péssimas e nos períodos de chuvas se transformavam em atoleiros quase intransponíveis. Não existiam pontes. As distâncias a percorrer eram infinitas. A força, para enfrentarem todas essas adversidades, provinha da  acolhida sempre carinhosa das comunidades, sedenta das benções divinas, e, em especial, pela sua satisfação de levar uma palavra de conforto a tanta gente desprotegida. Uma outra dificuldade apareceu um pouco mais tarde, no enfrentamento com grupos anti clericais. Esses aconteceram em diferentes localidades, com maior ou menor intensidade. Não podemos esquecer que os padres, como os imigrantes, sofriam também com o isolamento. Para encontrar um colega precisava vencer grandes distâncias. Também o convívio com pessoas de menos cultura agravava muito essa solidão. 

Diante da insuficiência de padres disponíveis do clero secular, tanto brasileiro quanto estrangeiro, a solução foi apelar para as ordens religiosas. Os Capuchinhos, chegaram no Rio Grande do Sul em 1896, embora de origem francesa, se integraram perfeitamente com os imigrantes italianos, tanto que no ano seguinte já receberam a primeira turma de filhos de imigrantes. A primeira casa de formação da ordem foi em Garibaldi e logo em  seguida foi fundada a de Flores da Cunha, com total aprovação dos moradores. Na seqüência foram fundadas várias outras, geralmente, com apoio das comunidades. Foram chamados de “frati”, pelos imigrantes, para distingui-los dos “preti”. No mesmo ano, 1896, chegou a Congregação dos Missionários de São Carlos, conhecidos por Carlistas ou Scalabrinianos, organizados pelo visionário ex bispo de Piacenza, Monsenhor Scalabrini, que tiveram sua  atuação  junto aos imigrantes italianos. Por outro lado, os Franciscanos e os Jesuítas se instalaram, preferencialmente,  nas colônias de imigrantes alemães. 

Dom Giovanni Battista Scalabrini, nascido em 1839 e falecido em 1905, foi bispo de Piacenza, e o primeiro a perceber o grave problema humanitário provocado pelas emigrações em massa. Dom Scalabrini, não só levantou sua voz para denunciar os abusos, mas tomou medidas concretas para intervir em favor dos emigrantes, abandonados pelos governos do país de origem e da pátria adotiva. Por isso foi autorizado pela Igreja a intervir junto aos políticos e aos governos. Entretanto, sabia que sozinho pouco podia fazer, o que o levou a fundar duas Congregações para ajudá-lo, a dos Missionários de São Carlos Borromeo e a da Congregação das Irmãs Missionárias de São Carlos Borromeo. Mais conhecidas como Irmãs Carlistas ou Scalabrinianas. Dom Scalabrin estimulava os seus padres para o atendimento, não só espiritual, mas também na defesa dos direitos básicos dos imigrantes junto aos poderes públicos. Nos seus estudos preparatórios que realizavam no seminário, ainda na Itália, aprendiam também diversos ofícios e habilidades práticas que se mostraram de grande valia quando já estavam atuando junto as várias comunidades italianas, assentadas na imensidão de florestas, onde faltava tudo.

Podemos imaginar a importância e a maneira como nas primeiras colônias foram, aos poucos, surgindo os oratórios, as pequenas capelas e igrejas. Esses momentos envolveram toda a comunidade de imigrantes, que entre as primeiras atividades teve que se unir e decidir o local de construção e os nomes a serem dados aquelas casas de culto, a que santo ela deveria ser dedicada não raro depois de duros confrontos, entre aqueles que lembravam dos santos de devoção nas suas antigas vilas e cidades de origem.  Nas colônias italianas a capela e mais para a frente a pequena igreja, era o grande ponto de atração. A reza do terço, aos domingos à tarde, não era apenas uma liturgia quase obrigatória em substituição à missa, mas também um atrativo para as atividades de lazer. O jogo de bochas, a mora e o baralho eram os jogos dos homens. As cantorias poderiam animar a tarde dominical. As mulheres passavam horas conversando. A criançada brincava nos arredores. As moças passeavam em grupos, na expectativa de encontrar um pretendente, talvez até  vindo de uma outra comunidade vizinha. A igreja, como organização religiosa e social, substituía o papel do Estado. Os imigrantes eram antes de tudo cidadãos da Igreja, mais do que do Estado.  Foi graças a Igreja que eles preencheram o vazio encontrado na pátria adotiva, estruturando o tempo e o espaço numa singular civilização ítalo sulriograndese. A igreja, como templo, era o centro da paisagem religiosa, social e cultural do imigrante italiano no Rio Grande do Sul. Colocada sempre em lugar topograficamente elevado, além de apontar para os valores do alto, ela era referência para todos. Em torno dela foram crescendo os aglomerados urbanos. Entretanto, ainda sentiam falta de uma coisa e a paisagem dos imigrantes só ficou completa com os sinos e o campanário. Os sinos, certamente, tiveram um sentido quase tão importante quanto a Igreja, O campanário era um complemento para as igrejas e capelas, onde a arquitetura não previa torres. Para a compra dos sinos, geralmente, o padre fazia  diversas coletas e festas para arrecadar o dinheiro necessário para importá-los da Itália. Quando, mais de um ano após, eles finalmente chegavam a comunidade fazia feriado para recebe-los. No dia da inauguração a festa era ainda maior,  a multidão aguardava comovida e recolhida. Quando os sinos receberam ordem de repicar, numa harmonia poderosa e nova, o povo  emocionado, silencioso escutava como se estivesse no momento da consagração. Acontecia então o fiel transplante da terra natal. Agora sim, podiam reviver o ambiente da vida italiana que tinham deixado para trás, reacendendo as suas esperanças acima de tudo. o repique dos sinos significava, a quebra da solidão e do silêncio, ambos tão assustadores, que até então os massacrava. 

A Igreja, no ponto geográfico mais nobre da colônia, o campanário, ou as torres, e os sinos, preenchendo o vazio com suas badaladas, transplantaram, em solo gaúcho, o ambiente afetivo e familiar dos vilarejos de origem. Agora o cenário estava montado para a segunda fase dos ideais ítalo religiosos dos imigrantes, as celebrações litúrgicas conforme os padrões das solenidades, praticados nas melhores igrejas e catedrais italianas. Nas capelas, a paisagem era a mesma, embora mais simples. O sino, ainda que pequeno, e num campanário improvisado, convocava a todos para a reza do terço que, dependendo das condições da comunidade, adquiria maior solenidade através das cantorias. 

Em toda colônia italiana quatro datas mereciam ser celebradas com todos os recursos litúrgicos possíveis. A solene celebração da missa, preferivelmente oficiada “in terço”, ou seja o celebrante, o diácono e subdiácono, e cantada em latim, era o centro das festividades. As solenidades litúrgicas principais aconteciam na Páscoa, com dois momentos mais significativos: a Sexta Feira Santa, que concentrava as maiores atenções dos fiéis, e o Domingo da Ressureição. O segundo momento de maior participação estava dividido entre a festa de Corpus Christi e a Sagra, a festa do padroeiro da igreja ou capela. Finalmente o Natal, com a tradicional Missa do Galo e o presépio, sempre momentos especiais para as famílias de imigrantes aproveitarem para usarem as roupas novas que tinham confeccionado. 

A contribuição dada à igreja brasileira pela italiana foi muito positiva, a julgar principalmente pela produtividade da igreja local, como evidenciado pela considerável expansão de vocações e obras religiosas nos assentamentos de imigrantes europeus. O grande apego à Igreja, por parte das famílias dos imigrantes, e o desenvolvimento das congregações masculinas e femininas, tanto que nos primeiros vinte anos do século XX a maioria dos alunos dos seminários de Porto Alegre eram de origem alemã ou italiana.


Dr. Luiz Carlos Piazzetta
Erechim RS