domingo, 13 de maio de 2018

Nós Os Ítalos-Gaúchos

Nós, Os Ítalos Gaúchos
  Darcy Loss Luzzatto







Nossos antepassados, aqui chegados no último quarto do século XIX, não eram, em sua grande maioria, italianos.
Paradoxal afirmação, quando “sabemos” que as três Colônias da Serra e a quarta de Santa Maria eram constituídas de “italianos”! Disse paradoxal porque a afirmação parece absurda, mas não é. Efetivamente, nossos antepassados não eram italianos. Quase todos os componentes das primeiras levas de imigrantes – pelo menos os adultos - , nasceram em território não italiano. Eram vênetos, lombardos, friulanos, trentinos, piemonteses... Explico melhor.

O Norte da atual Itália era, na época em que esses imigrantes adultos nasceram, governados por estrangeiros, direta ou indiretamente (o fantoche Reino Lombardo-Vêneto, Império Austro-húngaro). Essa região passou a fazer parte efetiva da Itália, do reino da Itália, tão somente em 1859 (o Piemonte e a maior parte da Lombardia), em 1866 (o Vêneto, o Friuli e o resto da Lombardia), como consequência da Unificação, e em 1918 (o Trentino e a Venécia Júlia), como resultado da Primeira Grande Guerra. Antes dessas datas, essas regiões nunca haviam sido Itália, pelo simples fato que a Itália, como país, jamais havia existido! Portanto, os nossos “velhos”, que nasceram sob outras bandeiras e nacionalidades foram “tornados” italianos. Não o eram de fato! Insisto: eram vênetos, lombardos, friulanos, trentinos, istrianos, ...

Cada um falava o idioma de sua cidade, de sua província, de sua região, isto é, utilizavam falares vênetos – belunês, trevisano, vicentino, veronês, veneziano... -, os vênetos; idiomas lombardos – mantuano, cremonês, milanês -, os lombardos; dialetos da língua friulana, os friulanos; um vêneto arcaico, os istrianos; o trentino – variante do vêneto -, os tiroleses; falares piemonteses, os que vieram do Piemonte. Praticamente ninguém falava o toscano, transformado em língua oficial italiana com a Unificação. Basta dizer que, em 1870, em toda a Itália, menos de 2% da população falava toscano, o idioma oficial, e menos de 1% sabia escrevê-lo!

Com isso, quero reforçar o que já disse: nossos antepassados não eram italianos! Eles não eram portadores de uma cultura italiana! Insisto: eles eram vênetos, ou lombardos ou friulanos ou trentinos ou piemonteses e possuíam a sua própria cultura, própria deles, de suas regiões, que nada têm a ver com as culturas das outras regiões que hoje constituem a Itália. (Não existe, ao meu ver, uma nação italiana, mas muitas nações dentro de um pequeno-grande país denominado Itália).

Pois essa gente, que pertencia a “nações” diferentes, que falava idiomas diferentes e que era portadora de culturas diferentes, ao chegar à “terra prometida”, foi assentada em colônias, linhas e travessões, no meio da selva inóspita, ao bel prazer do “chefe” da Colônia. Assim, um trentino de Primiero passou a ter por vizinhos um vêneto de Oderso e um lombardo da Mântua. Era preciso comunicar-se, entender-se. Era uma questão de sobrevivência! Foi dessa necessidade de comunicar-se, para poderem-se auxiliar, para sobreviver, que nasceu nosso belo idioma, o talian ou vêneto brasileiro, mescla bem dosada dos falares de nossos antepassados, com a língua do país de adoção, o português.
O talian, a koiné aqui surgida, que permitiu que piemonteses, treninos, friulanos, lombardos e a maioria veneta pudessem entender-se, não nasceu de repente e nem por decreto. Passaram-se anos e anos antes de tornar-se a verdadeira língua de comunicação em que se transformou. Os sotaques característicos de cada região persistiram por muito tempo. Os casamentos mistos – vênetos versus lombardos, trentinos versus friulanos – permitiram que, mais rapidamente, se uniformizasse a koiné. Algumas palavras, talvez por soarem estranhamente a certos participantes do grupo, foram sendo substituídas quase sempre pela correspondente portuguesa, embora devidamente venetizada, é claro! Em certas linhas onde a predominância fosse lombarda, por exemplo, a língua de comunicação local assumia uma forma acentuadamente lombarda, mas nas vilas (nte i paesi), em vista da preponderância veneta, apresentava já no inicio do século, forma semelhante ao talian atual. A inclusão de mais termos portugueses se acentuou com o desenvolvimento tecnológico: as novas palavras entraram íntegras no linguajar local, embora com sintaxe taliana.
Nos anos de 30 e 40, antes que o Brasil declarasse guerra ao Eixo (Alemanha – Itália – Japão), em toda a região dita de colonização italiana do Rio Grande do Sul, o talian era não apenas a língua mais falada, mas praticamente a única, pois apenas os mais velhos ainda utilizavam seu “dialeto” de origem, e pouquíssimos eram aqueles que se “defendiam” em português. Os professores (maestri), quase todos taliani, embora quisessem ensinar em português ou em italiano (leia-se toscano), não o conseguiam pelo simples fato de desconhecerem esses idiomas. É claro que havia exceções, mas eram exceções! Assim o nosso idioma, o talian, ficava cada vez mais forte – porque era ensinado! – e cada vez mais nosso.
Com a guerra iniciou-se o nosso calvário: não podíamos mais fazer uso de nossa língua materna! Muitos dos que se aventuraram a fazê-lo sofreram as consequência: foram presos. Nos tornamos gringos (particularmente, abomino esta expressão. Considero-a tremendamente depreciativa), isto é, estrangeiros em nossa própria pátria! Os mais renitentes, além da cadeia, eram chamados de Quintas-colunas, isto é traidores!
E, a partir de então, muitos baixaram a cabeça e sentiram vergonha de falar a nossa língua; hoje, inclusive, fingem nem sequer entendê-la. Pobres coitados! Deveriam ter orgulho, não vergonha. Um que fala tão somente uma língua é pouco mais que mudo! (A não ser que seja o inglês, dada a importância atual deste idioma). Nós que, além do português, falamos o talian, sabemos mais do que aqueles que falam exclusivamente o português, não acham? Imaginem, ter vergonha de falar o idioma que, por mais de mil anos, foi a língua oficial da “Sereníssima” República de Veneza! Seria simplesmente ridículo, se não fosse tão trágico. (Para os que não são “chegados” à História, um lembrete: Portugal não existia, e muito menos a língua portuguesa, quando os vênetos já dominavam as águas interiores do mar Adriático ao mar Negro, e sua língua, pouco diferente do nosso talian, era língua de comunicação nos portos e entrepostos comerciais!)
Os jovens – pessoas, países, nações – costumam cometer um grande erro: pensam que sabem tudo! E como tudo sabem, desprezam tudo aquilo que cheire a ontem, e pior ainda, a anteontem.
- Falar Vêneto? Isso é coisa de velho e de colono ignorante! Eu falo português e para mim basta!
Coitados, não sabem o que dizem. Que Deus Nosso Senhor os perdoe!
Alguém já disse que se a gente só consegue expressar as emoções mais profundas utilizando a língua materna. Santa verdade! Do carinho ao desprezo, da oração à blasfêmia, do amor ao ódio, do pasquim ao poema, são mais fortes, mais intensos, quando sussurrados/gritados/escritos/grafados na língua materna que aprendemos no colo de nossas mães, sentados nos joelhos de nossas avós! O talian me soa como uma música! É a língua do coração, a minha língua, a língua com a qual consigo expressar meus melhores/piores sentimentos. Ela me lembra a primeira infância, a adolescência, o tempo de liberdade, o não compromisso.
E então, com desrespeito, dizem que minha língua é um patuá de colonos ignorantes, de pobres coitados, que é um dialeto de segunda categoria! Será que essa gente enlouqueceu? O talian é a “nossa” língua e nós temos a obrigação não apenas de utilizá-la, mas também ensiná-la, a fim de que a mesma se perpetue, preservando dessa maneira a “nossa” cultura.
- Agora eu não falo mais o “dialeto”. Estou aprendendo italiano, o italiano gramatical!, disse-me um conhecido.
- Bravo! Respondi-lhe. Quanto mais línguas falares, mais saberás e maior facilidade terás em aprender outros idiomas! Mas não deverias deixar de falar a nossa língua, o vêneto brasileiro, que pode inclusive auxiliar-te a aprender não apenas o italiano, mas, e principalmente, as línguas irmãs do talian, o francês e o espanhol.
- Mas não é o que minha professora nos disse. Ela nos informou que devemos “esquecer o dialeto”, se quisermos aprender corretamente o italiano!
Santa ignorância! Isso contraria toda e qualquer técnica de aprendizagem de idiomas!
Depois de muito pensar, dei-me conta que não se trata apenas de ignorância, mas de uma bem orquestrada forma de tentar destruir/substituir a nossa cultura. Será que estão ressurgindo os movimentos fascistas? Temos ainda bem presentes as tropelias varguistas, aqui, e mussolinescas, lá. – as línguas e culturas regionais devem ser banidas! Lembram?
Com tantas maneiras de “vender” a importância de conhecer-se o italiano optam por menosprezar os outros idiomas. Convenhamos, é um não entender nada de marketing!
Poderiam dizer, por exemplo: “O italiano é a língua mais sonora do mundo!”, ou, Alguém já disse que se a gente só consegue expressar as emoções mais profundas utilizando a língua materna. Isso seria suficiente. Muita gente dedicaria algumas horas por dia para dominar esse belo idioma. Apenas não inventem que é a língua de nossos antepassados, pois é mentira.
Todos nós deveríamos falar com fluência, pelo menos, uma outra língua, além da nacional. Tanto pode ser o inglês, o espanhol, o francês, o alemão, alguma língua eslava...ou, por que não, o nosso talian?
Se quisermos manter nossa cultura – e temos o dever de fazê-lo -, devemos ensinar aos jovens a nossa língua, pois, enquanto nossa língua viver, nossa cultura não perecerá.


Texto parcial de Darcy Loss Luzzatto, extraído do seu livro “Nós, os Ítalo-Gaúchos”, coordenado por Mário Maestri, 1996.



Dr. Luiz Carlos B. Piazzetta
Erechim RS