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terça-feira, 28 de outubro de 2025

Attilio Zampiero – A Estrada da Esperança

 


Attilio Zampiero – A Estrada da Esperança


No ano de 1887, Attilio Zampiero deixou a pequena vila de Roverchiara, nas terras baixas de Verona, levando consigo apenas um punhado de roupas gastas, alguns utensílios herdados e a lembrança viva da pobreza que o esmagava desde menino. A vida na Itália já não oferecia nada além de dívidas e fome. O campo onde nascera não bastava para sustentar sequer uma cabra, e o suor da família escorria em vão nas pedras áridas da planície.

O Brasil surgia como promessa nos relatos que corriam de boca em boca. Falava-se de campos infinitos, madeira abundante e liberdade para cultivar o que se quisesse. Cartas mal escritas do tio Antonio, instalado havia alguns anos na colônia Dona Isabel, no Rio Grande do Sul, traziam sempre um convite insistente: vender o pouco que possuíam e atravessar o mar.

A decisão de partir foi dolorosa. A família vendeu a casa e o pedaço de terra, abandonando também os túmulos de gerações no cemitério da vila. A despedida, marcada por lágrimas silenciosas, carregava o peso de nunca mais rever a Itália. Embarcaram em Gênova no navio a vapor Colombo, abarrotado de emigrantes miseráveis. Foram trinta e dois dias de travessia. O cheiro de corpos confinados, a umidade do porão e a ameaça constante da doença tornavam cada amanhecer uma vitória. A morte rondava como um predador paciente, mas Attilio resistia com a teimosia de quem não tinha escolha.

Quando enfim alcançaram o porto de Rio Grande, descobriram que o sonho tinha um preço maior do que imaginavam. Foram alojados em barracões superlotados, à espera de embarcações fluviais que os levariam lentamente, contra a corrente, pelos rios Guaíba e Caí até Montenegro, onde descansaram apenas por uma noite antes de seguir viagem.

Daí em diante, não havia estradas, apenas trilhas abertas a facão que se perdiam no coração da mata. Attilio e a família seguiram a pé, carregando baús e trouxas improvisadas. Havia dias em que a chuva fazia do caminho um lamaçal, e, quando a noite caía, o mundo se fechava como uma cortina de escuridão sem estrelas. Cada parada era um acampamento improvisado, alimentado com fogueiras pequenas e o pouco de farinha de milho que restava.

Depois de um dia que parecia não ter fim, chegaram à Colônia Dona Isabel, onde o tio Antonio os aguardava. O reencontro trouxe alívio e lágrimas, mas a jornada ainda não estava concluída. Em uma carroça puxada a bois, avançaram mais de um dia até alcançar a recém-aberta Colônia Alfredo Chaves, o lugar destinado pelo governo. O que encontraram foi um terreno íngreme, tomado por pedras e árvores seculares, um mundo hostil que parecia zombar de qualquer tentativa de cultivo.

Attilio ergueu com as próprias mãos um rancho tosco de troncos e folhas de palmeira. Plantou milho e feijão, criou algumas galinhas e um porco. Cada dia era uma batalha contra a floresta, que parecia querer engolir de volta os homens. A saudade da Itália ardia, sobretudo quando lembrava o cheiro do pão fresco e o som dos sinos de Roverchiara. Mas a volta era impossível. O Brasil tornara-se, ao mesmo tempo, destino e prisão.

A vida em Alfredo Chaves exigia coragem dobrada. O Rio das Antas, de águas revoltas, separava a colônia da vizinha Dona Isabel. Para atravessá-lo, usavam canoas frágeis, arriscando-se contra a correnteza traiçoeira. Era ali que Attilio trocava sacos de milho por sal ou ferramentas, sempre com o medo de que a água lhe roubasse a vida, como já fizera com outros colonos.

Os invernos castigavam com geadas que queimavam plantações inteiras. Muitas vezes, Attilio misturava farinha de milho com raízes da mata para saciar a fome dos filhos. Mas a obstinação não lhe faltava. Com vizinhos, começou a cultivar videiras, pequenas mudas trazidas escondidas da Itália, sonhando com o dia em que o vinho das colônias pudesse rivalizar com o das tavernas de Verona.

Com o tempo, Alfredo Chaves começou a se organizar. Famílias ajudavam-se em mutirões para erguer casas de pedra e capelas de madeira. Attilio, respeitado por sua tenacidade, tornava-se presença constante nas derrubadas, nas colheitas e até nas arriscadas travessias do Rio das Antas.

Mesmo assim, a saudade permanecia. Nas noites frias, o vento que soprava da serra lhe trazia lembranças da Itália. Ainda que a miséria continuasse a rondar, cada árvore derrubada e cada videira enraizada representavam conquistas arrancadas à força de um mundo desconhecido.

Foi assim que Attilio Zampiero fincou raízes no Brasil: não como promessa de riqueza imediata, mas como a única chance de sobreviver e deixar aos filhos uma herança maior do que ouro — a certeza de que, mesmo entre rios perigosos e terras ingratas, a esperança podia florescer.

Anos mais tarde, quando Alfredo Chaves recebeu o nome de Veranópolis, Attilio já sabia que aquela era sua pátria definitiva. A Itália ficara para trás como lembrança distante, mas a vida seguia ali, onde cada pedra retirada do chão e cada parreira erguida eram páginas escritas de sua própria estrada da esperança.

Nota do Autor

A história de Attilio Zampiero – A Estrada da Esperança nasce do testemunho vivo de descendentes de imigrantes italianos que se estabeleceram na antiga Colônia Alfredo Chaves, hoje Veranópolis, no final do século XIX. O personagem central, Attilio Zampiero, é fictício apenas no nome; sua trajetória, marcada pela travessia do oceano, a chegada ao Rio Grande do Sul e a luta contra a mata e a solidão, reflete fielmente a experiência relatada por seus herdeiros de memória. Por respeito ao pedido de anonimato das famílias que compartilharam suas lembranças, os nomes verdadeiros foram preservados no silêncio. Ainda assim, tudo o que aqui se narra — a viagem, os sofrimentos, a travessia do Rio das Antas, o início da vida em terras íngremes e pedregosas — pertence à realidade daqueles que ousaram trocar a Itália pela incerteza do Brasil. Attilio, portanto, é mais do que um personagem: é o símbolo de tantos homens e mulheres que construíram suas estradas de esperança no coração da serra gaúcha.

Dr. Luiz Carlos B. Piazzetta


quinta-feira, 23 de outubro de 2025

Aldilà de la Promessa Verde

 


Aldilà de la Promessa Verde


Montefiorino, Modena, 1888

La decision la ze sta fata in silénsio. Gnanca le paroe del pàroco, gnanca i conséie del maestro del paese, gnanca i avisi imbusà del sìndaco i ga podesto scampar da la testa de Angelo Roncaglia l’imàgine che la ghe ronzava drento: ‘na pianura sensa fin, con i àlbari de fruti che nassea come erba mata, e ‘l sol che se ‘ndava a posar sora campi cusì verdi che ‘l stesso stanché parea sucarin. El ze stà quel Brasil là che i ghe ga fato vardà, stampà in carta bea, contornà da palme e risate. Un paradiso verde, disea — cusì pien che bastava tendar la man e catar.

Ma el paradiso, in verità, el tacava con un bilieto de navio pagà a rate, ‘na partensa sensa promesse e un toco de pan dur in ‘na strassa de juta. Angelo lu el ze partì da Montefiorino con el cuor diviso tra la paura e ‘l spìrito. El avea lassà drio un toco de tera sassosa eredità dal nono e la sagra verità che là, no saria mia gnente de più che un contadin in dèbito. El destin promesso zera l’interno de la provìnsia de São Paulo, ndove se diseva che un omo con vóia de laorar, con el tempo, podaria anca gaver la so tera.

Quando el ze rivà al porto de Génova, el ga capì che el no zera mia solo in sto sónio. Sentene de altri, famèie intere, vedove, òrfani, tosi con le spose e veci con l’òcio strachi, tuti i zera stà tocà da le stesse promesse con i disegni colorà. I agenti de le compagnie de navigssion i parlava forte e sicuri, contandoghe de teri bone e paron boni. Pochi i savea lèsere, ma tuti i savea cosa zera la fame — e tanto bastava par montar su.

Durante i trentaquatro zorni de traversra, el bastimento ghe bateva el stòmego e la speransa, butandoli sora onde che pareva volar riportarghe tuti indio. Su el vapor, quei fóie che prima i mostrava ‘l Eden, adesso i serviva par coprir i gómiti o par infagotar i corpi che scaldava la febre. Ghe moreva fiòi ogni setimana. E con lori, pian pianin, i moreva anca i soni.

Angelo el ze sbarcà a Santos con le man vode e i piè gonfi. El ga traversà la montagna su tren che spussava de suor, de carbon e de luto. Int ogni canton de la via de fero, se disfaceva un toco de l’ilusion verde che el portava da Montefiorino. Quando el xe rivà a la Fazenda Santa Aurora, là in campagna de Campinas, el ga trovà un mondo brusente, con paroni che no se mostrava e dèbiti scriti in quaderni che gnanca un colono el vardava.

El cafè no se colieva come le pomi del orto. Zera ‘na piantaion dura, che rompeva la schena, brusava la pele e tirava via el tempo. La tera rossa, tanto diversa da la promessa verde, la impastava tuto quel che tocava. Angelo el ga laorà con altri desene de italiani, quasi tuti imbroià come lu. El baracon dove che i dormiva spussava de mufo e marsume. Poca magnansa. Aqua tòrbida. E un silénsio che se leseva drento l’òcio.

Ma la colpa no zera solo de le imàgini false. Zera anca de la speransa che l’omo el porta drento, quela che vien fora quando no ghe ze pì gnente da perder. Zera el desidero de veder un segno e chiamarlo miràcolo. E ghe zera ancora chi credeva, anca là, che bastava ‘na racolta in pì, ´ns stagion in pì, un pagamento in pì — e dopo se podaria tacar da capo.

Angelo el ze restà in piè. El ga piantà manioca tra i piè de cafè. El ga tirà su un porsel in silénsio. El ga imparà a far i conti, a leser quel che el quaderno del capataz no el voleva mostrar. Dopo sei ani, el se ga trasferì con la so mòier in ‘na gleba scampà via, lì ‘ndove che el fiume Piracicaba el passava pian. Là el ga alsà ´na casa de rami e baro e el ga seminà formenton. El ga tegnesto fiòi. Gnanca un de lori i ga mia vardà l’Itàlia.

El tempo, là, no el curava — el cambiava. E anca quando el se ricordava de quele imàgini verdi de la propaganda, che ancora adesso la tegnia come ‘na relìchia de l´ ingano, Angelo no el sentiva pì rancore. L’ilusion zera stà el préssio da pagar par partir. E, in un modo o in altro, zera stà anca l’impeto che lo ga trato fora dal gnente.


Nota de l’Autor


Sto libro che vù tegni in man el ze nassesto no da la glòria, ma da ´na mancansa: la mancansa de memòria. No la memòria dei grandi, dei generài o dei paron, ma quela memòria bassa, de tera e sudor, che se perde tra ´na stagion e l’altra. El ze la memòria dei scampà, dei che i ga traversà el mar par ‘na promessa che, tropo spesso, la s’é slongà come l’ombra a sera.

Mi go scrivesto Aldilà de la Promessa Verde parché ogni parola falsa che lori i ghe ga contà a un contadin, ogni fólio colorà che i ghe mostrava el paradiso, ogni speransa che la ze vignesta pagà a rate — la ze sta parte de ´na storia vera. Quela che no la va scrita ´nte le cronache, ma che la vive ancora ´ntei oci strachi dei veci, ´nte le ossa rovinà, ´nte le case fate de baro, ´nte le vosi che parla metà italian, metà brasilian.

Parché? Parché contarla? Parché far tornar in boca el gusto de la fadiga e del ingano?

Parché no se po capir el presente, se no se conosse e onora el passà. E mi, che no son nato su ´na nave ma mi go sentì per ani el silénsio de chi no ga mia parlà, me son sentì in dovere de darghe parola.

No la ze ´na stòria de eroismo, ma de resistensa. No la ze ´na lode, ma ´na memòria. Scrivesta in talian rústego, con la léngoa che i nostri veci i parlava su le montane, tra i campi de cafè e i muri de baracon, parché anca le paroe, se no le se scrive, le sparisse.

Se sto libro el servirà a far vardar indrio con onestà, e in avanti con gratitùdine, lora ogni pàgina la ga trovà el so senso.

Dr. Luiz C. B. Piazzetta




quarta-feira, 15 de outubro de 2025


A Promessa de um Novo Horizonte

A Saga de Pietro Galvani em Terras Gaúchas

Na quase esquecida fração de Alberoro, no pequeno município de Monte San Savino, com somente uma dúzia de construções em pedra, nas planícies onduladas da Toscana, em 1884, a conversa sobre a "Merica” dominava as praças e os encontros em família. Pietro Galvani, um homem de 36 anos, ouvia atento as histórias contadas após a missa dominical na pracinha da localidade por algum vizinho que havia recebido cartas da Argentina ou do Brasil. Diziam que essas terras eram um paraíso onde o ouro fluía nas águas dos rios e as plantações cresciam sozinhas sob um sol generoso.

Piero era um agricultor modesto, casado com Francesca De Martino, uma mulher decidida e resiliente. Eles tinham quatro filhos: Emilio, de 12 anos, que já ajudava o pai no campo; Giulia, de 10, sonhadora e talentosa com agulhas e linhas; Antonio, de 7, sempre curioso e questionador; e o pequeno Luca, de apenas 2 anos. A vida na Toscana era muito dura naqueles anos. As terras estavam exauridas, os impostos eram sufocantes e os Galvani mal conseguiam alimentar a família. Quando o tio de Pietro, Domenico Galvani, escreveu do Brasil falando sobre a abundância de terras férteis e os salários pagos em ouro, Pietro e Francesca começaram a considerar o impensável: também emigrar, seguindo aquela corrente que desde 1875 engrossava a cada ano, de milhares de compatriotas que descontentes deixavam tudo em busca de uma nova vida do outro lado do oceano. 

Francesca hesitava. Deixar a Itália era abandonar o que restava de sua identidade, sua língua, suas tradições. Mas Pietro sabia que não tinham outra escolha. Em uma noite fria de final de novembro, com o vento uivando pelas frestas da janela, ele disse:

— Francesca, é agora ou nunca. Se ficarmos, não teremos futuro. Se formos, podemos dar às crianças uma vida que nunca sonharíamos aqui.

Com lágrimas nos olhos, Francesca concordou. Venderam tudo o que possuíam: os móveis, a mula, até mesmo os utensílios de cozinha. Em março de 1885, embarcaram no porto de Genova no navio a vapor Príncipe de Asturias, rumo ao Brasil.

A viagem foi uma provação. Por 33 dias, enfrentaram tempestades, enjôos e a monotonia do oceano. Luca, o mais jovem, contraiu uma febre durante o trajeto, e Francesca passava noites em claro cuidando dele. Apesar das dificuldades, Pietro mantinha a esperança viva, reunindo os filhos todas as noites para contar histórias sobre as terras que os aguardavam.

Chegaram ao porto de Santos em um dia chuvoso. A visão do cais, com suas multidões de imigrantes, trabalhadores e mercadores, foi ao mesmo tempo assustadora e emocionante. Após alguns dias de espera, foram transferidos para o sul, chegando ao Rio Grande em um outro navio menor, apertado, ao lado de outras famílias italianas. Finalmente, desembarcaram no Porto de Rio Grande, no dia 13 de maio de 1888, o mesmo dia em que a escravidão foi abolida no Brasil.

Os Galvani foram enviados para uma colônia em uma região de mata densa chamada Colonia Dona Isabel. Cada família adquiriu do governo em incontáveis prestações, um grande pedaço de terra coberto por árvores altas e cipós, e a primeira tarefa era desbravar a floresta. Pietro e Emilio trabalhavam incansavelmente, derrubando árvores e preparando o solo para plantar milho, trigo e feijão em pequenos espaços abertos na mata enquanto Francesca cuidava das crianças e sempre achava tempo de dar uma mão ao marido no trabalho duro da roça.

As noites eram longas e difíceis. Giulia, que sentia muita falta da avó e dos primos, chorava baixinho para não preocupar os pais. Antonio fazia perguntas intermináveis sobre os animais da floresta e sobre os diversos sons que ouvia à noite. E Francesca, apesar de sua resistência, às vezes murmurava em voz baixa:

— "Se eu encontrasse Cristóvão Colombo, eu o faria pagar por ter descoberto esse lugar".

Depois de alguns anos de luta constante, a família começou a ver os frutos de seu trabalho. A primeira colheita foi modesta, mas suficiente para sobreviver. Piero construiu uma pequena adega onde fermentava vinho com as primeiras uvas que plantaram. O vinho logo se tornou conhecido entre os colonos, e os Galvani ganharam um pouco de crédito com os comerciantes locais.

Em 1892, Emilio, agora com 19 anos, casou-se com Teresa Benvenuto, uma jovem da colônia vizinha de Caxias. Juntos, começaram a expandir os vinhedos da família, plantando novas variedades de uvas trazidas da Itália. Antonio, sempre curioso, tornou-se um talentoso carpinteiro, fabricando móveis que eram vendidos em Porto Alegre. Giulia, com seu talento, começou a ensinar outras jovens da colônia, enquanto Luca, o caçula, se tornou o contador da família.

Pietro faleceu em 1912, aos 63 anos, deixando um legado de perseverança e coragem. Francesca viveu até 1925, cercada pelos netos que a ouviam contar histórias da Itália e da travessia que mudou o destino da família. A colonia prosperou rapidamente, tornando-se o município de Bento Gonçalves, e a cantina dos Galvani é hoje uma das mais renomadas da região.

Os descendentes de Pietro e Francesca continuam a celebrar as tradições italianas, lembrando-se dos sacrifícios de seus antepassados e da coragem que os trouxe a esta nova terra.

Nota do Autor

Os personagens e nomes apresentados nesta narrativa são fictícios, mas a história é real. Ela nasceu a partir de uma carta familiar autêntica, escrita no final do século XIX, que chegou às minhas mãos durante uma pesquisa em um acervo museológico no Rio Grande do Sul — um lugar de memória onde se preservam cartas, diários, mensagens e objetos pessoais dos pioneiros imigrantes italianos que ajudaram a construir o sul do Brasil.

Ao decifrar a caligrafia desbotada e as palavras marcadas pela saudade e pela esperança, foi possível entrever o drama humano que se escondia nas entrelinhas: o medo da travessia, o choque com o desconhecido e a obstinada fé no trabalho como caminho para a dignidade. A carta original não mencionava apenas fatos, mas sentimentos — o desespero de deixar a pátria, a ternura pelos filhos, a coragem silenciosa das mulheres e a esperança renascida a cada amanhecer na nova terra.

Os nomes foram alterados para preservar a privacidade dos descendentes e para permitir liberdade literária na reconstrução dos eventos. No entanto, cada gesto, cada dor e cada conquista descritos nesta história pertencem verdadeiramente aos homens e mulheres que, com as próprias mãos, transformaram a mata bruta em vinhedos e vilas — e que, sem saber, escreveram um dos capítulos mais comoventes da saga da imigração italiana no Brasil.

Esta narrativa é, portanto, uma homenagem a eles: aos Galvani de todos os sobrenomes, cujas vozes ecoam ainda hoje entre os vales, nos sotaques mistos, nas celebrações familiares e no vinho que perpetua a memória dos que ousaram sonhar com um novo horizonte.

Dr. Luiz Carlos B. Piazzetta




terça-feira, 14 de outubro de 2025

Padre Colbacchini nas Colônias Italianas do Paraná


Padre Pietro Colbachini: 

o “Feroz Jesuíta” das Colônias do Paraná


O Padre Pietro Colbachini nasceu em 11 de setembro de 1845, na cidade de Bassano del Grappa, província de Vicenza, no coração do Vêneto, Itália. Desde jovem demonstrou inclinação para a vida religiosa, ingressando aos 18 anos na Companhia de Jesus. Formou-se dentro do rigor e da disciplina dos jesuítas, absorvendo o espírito inaciano de estudo, austeridade e serviço. Foi ordenado sacerdote em 26 de julho de 1869, aos 24 anos de idade, e exerceu por quinze anos funções pastorais na Itália, especialmente em comunidades rurais do norte do país.

Nos anos de 1880, Colbachini começou a acompanhar com inquietação o fenômeno da emigração italiana em massa. Milhares de famílias, em sua maioria camponesas do Vêneto, Lombardia e Friuli, deixavam a pátria em busca de terras e trabalho no Brasil e na Argentina. Desejoso de lhes prestar assistência espiritual, pediu permissão a seus superiores para partir em missão às colônias italianas da América do Sul. O pedido foi negado pela Companhia de Jesus, que considerava arriscado enviar sacerdotes a territórios ainda pouco estruturados e de clima insalubre.

Firme em sua convicção de que seu dever era acompanhar os mais desamparados, Colbachini deixou a ordem jesuíta e ingressou na Congregação dos Missionários de São Carlos (Scalabrinianos), fundada em 1887 por Dom Giovanni Battista Scalabrini, bispo de Piacenza. O novo instituto tinha precisamente como finalidade assistir espiritualmente os emigrantes italianos espalhados pelas Américas. Assim, em 1885, embarcou para o Brasil e estabeleceu-se no Paraná, onde passaria o restante de sua vida.

As Missões nas Colônias Italianas do Paraná

Logo após sua chegada, Padre Colbachini foi designado para atuar junto aos núcleos coloniais de Dantas (atual bairro Água Verde, em Curitiba), Santa FelicidadeAlfredo ChavesAntônio RebouçasCampo CompridoSanta Maria do Novo Tirol da Boca da SerraMurici e Zacarias. Todas essas colônias formavam o circuito da Capelania Curata Italiana, criada com o objetivo de reunir sob orientação religiosa os imigrantes dispersos nas redondezas de Curitiba.

Incansável, Colbachini percorria essas comunidades a cavalo, muitas vezes sob chuva e frio, levando sacramentos, conselhos e conforto aos colonos. Era um pregador vigoroso e exigente, e sua formação jesuítica marcava profundamente seu modo de agir e ensinar. Por isso, entre os fiéis e mesmo entre outros religiosos, ganhou o apelido de “o feroz jesuíta”— não por dureza de coração, mas pela firmeza com que defendia a fé e a disciplina moral.

Embora incorporado aos Scalabrinianos, Colbachini mantinha a independência de espírito e certa reserva crítica quanto à fusão entre o catolicismo e a italianidade — uma ideia promovida por alguns missionários como meio de reforçar o vínculo nacional dos colonos. Para ele, a fé devia transcender a pátria. Essa posição o colocava, às vezes, em tensão com seus superiores, mas também o tornava respeitado pela clareza de suas convicções.

Os Relatórios de 1892 e 1895

Além de seu ministério pastoral, Padre Colbachini deixou dois documentos fundamentais sobre a realidade da imigração italiana no Paraná e no Brasil. Ambos foram redigidos em italiano e enviados às autoridades de seu país, sendo posteriormente publicados em Piacenza e Roma.

O primeiro, datado de outubro de 1892, foi dirigido ao Marquês Giovanni Battista Volpe Landi, presidente da Sociedade Italiana de São Rafael, entidade que prestava apoio moral e material aos emigrantes. O texto, intitulado “Rapporto sulle Colonie Italiane nello Stato del Paranà”, descreve as duras condições de vida dos colonos no litoral paranaense — especialmente nas colônias Alexandra e Nova Itália, criadas entre 1875 e 1877.

Em suas próprias palavras, Colbachini escreveu:

“Li trovai in condizioni miserabili, afflitti dalle febbri, logorati dalle privazioni, dimenticati da tutti. Le capanne, fabbricate in mezzo alle paludi, erano circondate da insetti velenosi che portavano malattie mortali. Le madri piangevano i loro bambini morti, e gli uomini, ridotti alla disperazione, guardavano il mare come unica via di salvezza.”

 

(Tradução) — “Encontrei-os em condições miseráveis, atormentados pelas febres, abatidos pelas privações, esquecidos por todos. As choças, construídas em meio aos pântanos, eram cercadas por insetos venenosos que traziam doenças mortais. As mães choravam seus filhos mortos, e os homens, reduzidos ao desespero, olhavam o mar como única via de salvação.”

O relatório prossegue com observações lúcidas sobre as causas dessa tragédia:

“L’emigrazione senza guida è una piaga. Il povero contadino, strappato alla sua terra, è abbandonato in un mondo che non conosce. Senza sacerdote, senza medico, senza autorità, egli muore non solo di fame ma di abbandono.”

 

(Tradução) — “A emigração sem direção é uma chaga. O pobre camponês, arrancado de sua terra, é abandonado em um mundo que não conhece. Sem sacerdote, sem médico, sem autoridade, morre não apenas de fome, mas de abandono.”

Essas palavras, enviadas à Itália, tiveram grande repercussão entre associações católicas e círculos de caridade, sensibilizando o episcopado italiano e as autoridades do Ministério das Relações Exteriores sobre a urgência de organizar missões e conselhos consulares para proteger os emigrantes.

Três anos mais tarde, em 1895, Colbachini enviou novo relatório ao Ministério do Exterior do Reino da Itália, ampliando seu diagnóstico sobre a emigração italiana no Brasil. Nesse texto, manifestou preocupação com a perda de identidade e a desorientação espiritual dos colonos, mas também elogiou sua força moral e capacidade de reconstruir a vida com trabalho e fé.

“Il colono italiano in Brasile è un uomo di fede e di fatica. Egli pianta croci dove trova selva, e chiama casa anche una capanna di fango. Ma senza una mano che lo guidi, egli rischia di smarrire l’anima nel deserto morale della nuova terra.”

 

(Tradução) — “O colono italiano no Brasil é um homem de fé e de trabalho. Ele planta cruzes onde encontra selva e chama de lar até uma cabana de barro. Mas sem uma mão que o guie, corre o risco de perder a alma no deserto moral da nova terra.”

Esses relatórios, de alto valor documental, são hoje considerados fontes primárias essenciais para o estudo da imigração italiana no Paraná e no sul do Brasil. Revelam não apenas a compaixão de um missionário, mas também a visão social e crítica de um homem que compreendeu as contradições da colonização europeia em terras tropicais.

No seu relatório datado de 1892, o missionário ainda acrescentou um relato sobre as precárias condições daqueles colonos italianos que viviam no litoral paranaense, no período de 1875 e 1877. Entre outros tantos problemas, Colbacchini destacava principalmente as condições de saúde e as doenças que acometiam os imigrantes causadas pelos insetos. Assim descreveu a situação dos imigrantes das Colônias Alexandra e Nova Itália, ambas no litoral paranaense:

"...Durante o dia os trabalhos eram insuportáveis devido o calor excessivo e por enxames de mosquitos que fazem inchar as partes descobertas das pessoas e produzem fortes incômodos; à noite outra espécie do mesmo rompe o sono e sangra os pobres imigrantes. Entre a carne e a pele as picadas de um outro verme, que assume no seu desenvolvimento a grossura de um feijão, e que vem injetado por  uma mosca cor de ouro (berne). Nos pés, especialmente nas extremidades e no calcanhar, coceiras insuportáveis e feridas malcheirosas, produzidas por outro inseto (bicho de pé) que nidifica e incuba, e se desenvolve como uma pequena pulga. As crianças e os velhos são os mais susceptíveis a esta grave enfermidade, que não respeita, todavia, idade e sexo ou condição das pessoas. A isto acrescento as consequências produzidas diretamente pelo clima, isto é, tontura, enfraquecimento dos membros, falta de apetite, desânimo, preguiça e tédio da vida. Esta é a verdadeira condição daqueles que vivem no litoral do Paraná".


Legado e Memória


Padre Pietro Colbachini continuou servindo nas comunidades italianas do planalto curitibano até os últimos anos do século XIX. Sua presença moldou a vida religiosa e moral das colônias, especialmente em Santa Felicidade, onde permaneceu por longos períodos.

Ainda que tenha vivido em relativo anonimato, sua figura foi lembrada por sucessivas gerações de imigrantes e descendentes como símbolo de fé e resistência. Sua morte ocorreu, ao que tudo indica, em Curitiba, provavelmente no início do século XX, deixando um legado espiritual que perdura na história das primeiras comunidades italianas do Paraná.


Nota Explicativa

O padre Pietro Colbacchini foi uma das figuras centrais na história da colonização italiana no Paraná. Membro da Companhia de Jesus, chegou ao Brasil em um período de grandes transformações sociais e políticas, quando o Império buscava consolidar a ocupação e o desenvolvimento das terras do Sul. Sua atuação ultrapassou o campo religioso: Colbacchini foi educador, cronista, mediador cultural e defensor da dignidade dos imigrantes italianos, que começavam a chegar em grande número às regiões de Palmeira, Santa Felicidade, Antônio Rebouças e, posteriormente, ao entorno de Guarapuava. O jesuíta compreendeu, desde cedo, que a presença italiana não seria apenas uma solução agrícola, mas um projeto de povoamento e civilização que moldaria o caráter do futuro Estado. Em seus escritos e relatórios, Colbacchini deixou valioso testemunho sobre as dificuldades enfrentadas pelos colonos — o isolamento, as doenças, a luta contra o clima e a mata — e, sobretudo, sobre a força moral e espiritual que mantinha vivas aquelas comunidades. Foi também um dos primeiros a registrar a interação entre os imigrantes europeus e as populações locais, descrevendo a formação de uma nova sociedade mestiça, baseada no trabalho, na fé e na solidariedade. A obra de Pietro Colbacchini representa, portanto, uma ponte entre o Velho e o Novo Mundo. Seu legado ajudou a consolidar os fundamentos culturais e sociais que dariam identidade ao Paraná moderno, onde a influência italiana permanece visível na agricultura, na arquitetura, na religiosidade e nos costumes. Assim, sua figura se inscreve não apenas na história da Igreja, mas também na gênese do Estado e na memória viva de seu povo.

Dr. Luiz Carlos B. Piazzetta








A Vida de Edoardo Bellino



Edoardo Bellino – De Lonigo a Limeira


No final do verão de 1890, Edoardo Bellino partiu de Lonigo, uma pequeno município agrícola na província de Vicenza, ao lado de sua jovem esposa Rosetta Ferri, do irmão Giuseppe com sua família e do pai viúvo e já idoso. Lonigo, outrora próspera em vinhas e campos de trigo, vivia sob a sombra da crise que assolava o Vêneto: terras cada vez mais fragmentadas, salários insuficientes e perspectivas reduzidas para os mais jovens. Para Edoardo, permanecer significava condenar-se à repetição da pobreza, deixando aos filhos apenas a herança das dificuldades.

O apelo de um futuro melhor no Brasil tornara-se irresistível. Relatos de terras férteis, lavouras promissoras e oportunidades de trabalho corriam de boca em boca, inflamando sonhos que cruzavam o Adriático e o Atlântico. A decisão de partir não foi tomada de um dia para o outro; nasceram dela muitas noites em claro, nas quais o dilema se impunha: abandonar a pátria, com seus vínculos e memórias, ou arriscar tudo na promessa de sobrevivência e dignidade.

Depois de venderem o pouco que possuíam, os Bellini concentraram-se apenas no essencial para a longa travessia. Embarcaram em Gênova, no vapor Príncipe de Asturias, abarrotado de homens, mulheres e crianças que, como eles, buscavam um futuro longe da penúria europeia. Desde os primeiros dias no mar, a viagem mostrou-se dura e implacável: cubículos apertados, ar rarefeito, higiene precária, alimentação insuficiente. Rosetta, grávida de seu primeiro filho, suportou a travessia com um silêncio corajoso, escondendo o cansaço atrás de gestos firmes e discretos.

No meio da jornada, trouxe ao mundo um menino, pequeno e frágil. O choro breve da criança misturou-se ao rumor do oceano, mas a vida recém-nascida se apagou pouco após o desembarque. A perda abriu uma ferida profunda, mas não apagou a chama da esperança que mantinha a família erguida.

Após quarenta dias de mar, a família chegou ao porto de Santos e, em seguida, iniciou nova jornada por trem até uma pequena estação isolada e quase perdida. Depois um longo trecho de carroça rumo ao interior de São Paulo. O destino era Limeira, uma região marcada pelo cultivo da cana e pela presença crescente de imigrantes italianos. A paisagem que encontraram era exuberante e, ao mesmo tempo, intimidante: terras extensas e férteis, mas que exigiam braços fortes para serem domadas, e uma infraestrutura quase inexistente.

Nos primeiros meses, Edoardo contou com a ajuda do pai e do irmão. A dureza da adaptação, porém, revelou-se insuportável para o velho Bellini e para seu filho Giuseppe, de saúde frágil. Incapazes de resistir às privações crescentes da nova terra, ambos decidiram regressar à Itália, levando consigo o peso do fracasso e a renúncia ao sonho americano. Sobre os ombros de Eduardo, ainda jovem mas já marcado pela responsabilidade, recaiu a missão de conduzir a família no desconhecido e imenso Brasil. A partida do pai e do irmão representou uma perda dolorosa, mas também uma lição de que o caminho exigia firmeza e renúncia.

Edoardo e Rosetta ergueram uma pequena casa de madeira, limparam o terreno e semearam milho, feijão e mandioca. Cada amanhecer trazia consigo uma nova batalha: insetos devastadores, o clima imprevisível, a exaustão do corpo. À noite, a saudade da Itália e a memória do filho perdido pairavam no silêncio. Mas Rosetta, com mãos calejadas e espírito inquebrantável, transformava o improviso em lar, conservando viva a cultura italiana em cada refeição, canto e reza.

O tempo trouxe novos filhos — ao todo, seriam onze, cada um representando não apenas responsabilidade, mas também esperança. A lavoura prosperava pouco a pouco, e o casal aprendia a explorar o solo brasileiro, diversificar colheitas e negociar excedentes no mercado local. A rede de vizinhança com outros imigrantes tornou-se vital: a cooperação mútua garantia não só sobrevivência, mas também identidade coletiva.

Com os anos, Edoardo revelou-se mais que agricultor. Investiu em pequenos empreendimentos ligados à cana-de-açúcar, construindo instalações para moagem e transformação. Sua visão empreendedora, aliada à disciplina herdada do Vêneto, consolidou a posição da família na região. O sobrenome Bellino tornou-se sinônimo de trabalho e perseverança em Limeira.

Em 1924, mais de três décadas após a partida, Edoardo e Rosetta puderam regressar à Itália por alguns meses. Encontraram um Vêneto transformado, ainda marcado por dificuldades, mas reconheceram que seu destino estava irrevogavelmente atado ao Brasil. Trouxeram de volta memórias e saudades, mas retornaram ao lar definitivo: a terra paulista onde haviam fincado raízes.

A história de Edoardo e Rosetta Bellino sobreviveu ao tempo como um símbolo de coragem e resiliência. Sua descendência multiplicou-se por todo o Brasil, espalhando não apenas sangue e sobrenome, mas a herança de uma luta que atravessou oceanos. Mais do que terras ou patrimônio, deixaram como legado a prova de que a fé no futuro e a determinação podem transformar gerações inteiras.

Nota do Autor

A narrativa que o leitor tem em mãos baseia-se em uma história real, transmitida de geração em geração pelos descendentes de imigrantes italianos que chegaram ao Brasil no final do século XIX. Os fatos relatados — a travessia do Atlântico, a chegada a São Paulo, as lutas e conquistas no novo país — correspondem fielmente às experiências vividas por uma família que enfrentou as agruras da emigração e conseguiu, com coragem e trabalho, transformar sofrimento em esperança.

Por razões de privacidade, os nomes dos personagens, bem como alguns detalhes específicos de localidades de origem, foram modificados. A família, cujos membros compartilharam essas memórias, preferiu não se identificar, mas autorizou que sua trajetória fosse contada para que não se perdesse no silêncio do tempo.

Assim, este relato não é apenas a história de Edoardo e Rosetta, mas também a de milhares de homens e mulheres que, entre lágrimas e esperanças, deixaram a Itália em busca de um futuro no Brasil. Trata-se de um testemunho de resiliência, amor e legado, preservado pela oralidade familiar e agora eternizado em palavras.

Dr. Piazzetta


segunda-feira, 6 de outubro de 2025

A vida de Matteo Oste – Da planície de Rovigo às terras vermelhas do Brasil


 

A vida de Matteo Oste – Da planície de Rovigo às terras vermelhas do Brasil


Matteo Oste nasceu em Lendinara, pequena localidade da província de Rovigo, no Vêneto, em 1º de novembro de 1861. A infância dele desenrolou-se em meio a campos de arroz que cintilavam ao sol como lâminas douradas e às extensas planícies onde o milho, plantado com sacrifício, sustentava famílias inteiras. Mas por trás da paisagem fértil escondia-se a amarga realidade: a terra já não bastava para todos, e cada colheita parecia menor que a anterior.

Desde menino, Matteo cresceu cercado por histórias de miséria e endividamento. As conversas nas tavernas falavam de impostos que esmagavam os camponeses, de senhores de terra cada vez mais ricos e de famílias inteiras que não tinham mais o que comer. À noite, quando o silêncio caía sobre a aldeia, ele via homens despedindo-se às pressas, partindo em direção a Turim, Milão ou até mais longe, em busca de trabalho nas fábricas nascente da revolução industrial. Ficavam as mulheres, imóveis nos umbrais das portas, com crianças agarradas às saias, olhando para o horizonte como se esperassem que de lá viesse algum milagre.

Para Matteo, essas imagens tornaram-se parte da vida cotidiana. O som dos sinos da igreja misturava-se ao murmúrio de rezas pedindo fartura, enquanto os campos, castigados ora pelas enchentes do Pó, ora pela seca implacável, entregavam colheitas incertas. Na memória do menino, a abundância era apenas um lampejo breve: algumas semanas de saciedade logo substituídas pela dureza do inverno e pela monotonia da polenta, servida dia após dia como único sustento.

Essa infância moldou nele duas certezas. A primeira era que a terra natal, por mais bela que fosse, não oferecia futuro. A segunda, ainda vaga e silenciosa, era que um destino diferente o aguardava além das fronteiras invisíveis de Lendinara.

Foi nesse cenário de penúria e de esperanças frágeis que Matteo conheceu Rosa Zanetti, nascida também em Lendinara, em 8 de setembro de 1867. Ela crescera entre os mesmos arrozais alagados e os mesmos campos de milho castigados pelas enchentes do Pó. Desde menina aprendera a lidar com o peso dos baldes de água, a paciência de ceifar trigo sob o sol inclemente e a resignação de ordenhar vacas magras, cujo leite mal bastava para alimentar os irmãos menores.

A juventude dos dois foi marcada pelo trabalho incessante, de sol a sol. Matteo passava as manhãs inclinado sobre a terra, com a enxada cavando sulcos estreitos, enquanto Rosa, ao lado da mãe, cuidava da horta e das galinhas, preparando a refeição escassa que sustentaria a família até o anoitecer. A mãe de Rosa trabalhava também em arrozais como "mondina". Os dois se viam nas colheitas de arroz, nas festas paroquiais, nos domingos em que a missa reunia toda a comunidade. Entre olhares tímidos e breves conversas à sombra da igreja, nasceu um afeto silencioso, sólido como as pedras que sustentavam as casas da aldeia.

Casaram-se cedo, não apenas por amor, mas também porque o casamento parecia ser, naquela época, um abrigo contra a precariedade da vida. Para Rosa, significava trocar a casa paterna por um lar próprio; para Matteo, significava ter alguém com quem dividir o peso da terra ingrata. Mas nem a união, nem a juventude dos corpos, nem a obstinação dos braços eram suficientes para conter a realidade que se espalhava como uma sombra sobre o Vêneto.

A região mergulhava em uma crise silenciosa: a terra, dividida geração após geração, tornava-se cada vez menor; os impostos devoravam os parcos lucros; e as más colheitas traziam fome ano após ano. A miséria não respeitava lares. Havia dias em que o prato de polenta era o único alimento disponível, e noites em que Matteo e Rosa iam para a cama com o estômago vazio, consolando-se apenas com a esperança de que a manhã seguinte fosse menos dura.

No coração deles, contudo, começava a germinar uma semente de inquietação. O Vêneto, com seus campos dourados e suas aldeias de pedra, era belo demais para ser abandonado — mas, ao mesmo tempo, cruel demais para ser o destino final de suas vidas.

Em 1886, Matteo e Rosa tomaram a decisão que mudaria para sempre o destino de sua linhagem: deixar Lendinara e cruzar o oceano rumo ao Brasil. Não foi escolha fácil. Durante semanas, as conversas na pequena casa de pedra giraram em torno de dívidas impagáveis, colheitas insuficientes e do medo de ver os filhos crescerem na mesma pobreza que eles haviam conhecido. Partir significava arriscar tudo; ficar significava definhar lentamente. A esperança, ainda que remota, venceu o medo.

Com dois filhos pequenos, apresentaram-se ao porto de Gênova, junto a centenas de outros camponeses vindos do Veneto e Lombardia. Ali, diante do gigante de ferro que os esperava, Rosa sentiu um frio no peito, como se estivesse prestes a romper para sempre com o mundo que conhecia. Matteo, firme, segurou-lhe a mão: já não havia retorno.

O navio estava abarrotado de homens exaustos, mulheres assustadas e crianças inquietas. Nos porões, o ar era denso, impregnado de suor, de sal e de um leve odor de mofo que parecia grudar na pele. Cada família defendia com unhas e dentes um pequeno espaço onde espalhava cobertores e trouxas de roupas. O barulho incessante das ondas misturava-se ao ranger das madeiras e ao resfolegar das máquinas, criando uma sinfonia áspera que embalava os dias.

À noite, quando o convés se tornava um palco de ventos fortes e céu estrelado, os imigrantes reuniam-se para rezar, cantar ou simplesmente chorar em silêncio. Lá embaixo, no porão, as crianças choravam de fome ou de enjoo. Rosa embalava seus pequenos contra o peito, murmurando cantigas em dialeto vêneto para disfarçar a própria angústia. Matteo permanecia acordado por horas, deitado sobre o chão duro, ouvindo o som pesado das ondas que batiam contra o casco como se quisessem arrancar o navio do mar.

A travessia parecia interminável. Dias de calor sufocante alternavam-se com tempestades que faziam o navio inteiro estremecer. Houve noites em que o medo percorreu cada olhar: uma única onda mais forte poderia engolir tudo. Mas havia também manhãs de calma, em que os passageiros subiam ao convés e, pela primeira vez em semanas, sentiam o sol e o vento livres no rosto. Nessas horas, Matteo erguia os olhos para o horizonte e imaginava o futuro. Não via riquezas nem facilidades — apenas a chance de oferecer aos filhos uma vida em que a fome não fosse companheira diária.

No coração de Rosa, o medo convivia com a esperança. Enquanto cantarolava baixinho, ela se perguntava se algum dia veria novamente os campanários de Lendinara ou os arrozais de sua infância. Mas quando olhava para Matteo, imóvel, com o rosto endurecido pela determinação, sabia que não havia mais recuo: a travessia já não era apenas geográfica, mas também de destino.

E assim, embalados entre rezas e tempestades, suor e saudade, o casal Oste avançava para um continente desconhecido — um mundo novo que os receberia com a dureza da terra vermelha e, ao mesmo tempo, com a promessa silenciosa de um futuro possível.

Após semanas de tormenta e calor sufocante, finalmente avistaram o Brasil. O destino era uma grande fazenda chamada Santa Gertrudes, no interior de São Paulo, onde o nome do Conde do Prado já se impunha sobre vastas áreas plantadas com café. Ali os Oste foram lançados num mundo de trabalho sem descanso. O sol queimava como fogo, a terra parecia não ter fim, e o idioma dos feitores soava áspero aos ouvidos dos recém-chegados.

O peso do destino mostrou-se cruel: Matteo e Rosa em poucos meses perderam os dois filhos para febres desconhecidas e incuráveis com os remédios caseiros que conseguiram. A dor foi silenciosa, sufocada no trabalho diário, mas nunca esquecida.

Com o tempo, a vida se recompôs. Nasceram-lhes outros filhos: Guerino, Domingos, José, Albino e Teresa. A pequena casa de madeira, perdida entre laranjais, encheu-se outra vez de vozes infantis. Matteo, homem prático, instituiu uma disciplina rígida: a mesa de sua família teria apenas o necessário — polenta de milho, que ele adquiria no armazém da própria fazenda. Alguma carne de porco de a de aves que criavam completavam a dieta. Nada era desperdiçado. Cada moeda era guardada como se fosse ouro.

Durante anos, o casal trabalhou de sol a sol, suportando calos, dívidas com o patrão, e o peso de uma vida que parecia nunca melhorar. Mas Matteo carregava consigo uma obstinação férrea. Aos poucos, juntou pequenas economias, fruto do sacrifício de cada um dos dias vividos.

Finalmente, depois de quase seis anos, o momento chegou. Deixaram para trás o trabalho assalariado e adquiriram um pedaço de terra fértil em local promissor conhecido como Mombuca. Aquele chão representava não apenas propriedade, mas dignidade. Ali, Matteo e Rosa reuniram filhos e netos, erguendo casas, plantando lavouras, transformando o mato em cultivos e o medo em esperança. Apenas Teresa não os acompanhou: casara-se com Ângelo Mariani, descendente de italianos, e permanecera mais alguns anos na Santa Gertrudes, junto do marido.

Matteo Oste envelheceu cercado pela família, vendo no rosto dos netos a prova de que sua decisão de emigrar não fora em vão. Partiu deste mundo em 11 de abril de 1942, em Rio Claro. Rosa sobreviveu mais de uma década, falecendo em 19 de janeiro de 1953. Seus olhos se fecharam longe da Itália, mas seu coração estava enraizado no Brasil.

A trajetória dos Oste é um retrato do destino de milhares de imigrantes: camponeses pobres que trocaram o frio de Rovigo pelo calor abrasador das terras paulistas. Homens e mulheres que suportaram perdas inimagináveis, mas legaram aos seus descendentes não apenas a memória da dor, e sim o valor do trabalho, da esperança e da terra conquistada com suor.

Nota do Autor

A história de Matteo Oste e de sua esposa Rosa Zanetti é uma recriação literária, construída a partir de relatos orais que chegaram até mim por meio de uma de suas netas. Foi ela quem, com emoção na voz e brilho nos olhos, narrou a trajetória de seus avós, emigrantes vindos de Rovigo, no Vêneto, em 1886, que deixaram a pátria e atravessaram o oceano rumo ao Brasil.

Embora os nomes tenham sido modificados para preservar a intimidade das famílias envolvidas, os fatos aqui relatados guardam raízes verdadeiras. A pobreza da Itália setentrional no final do século XIX, a travessia em navio abarrotado de imigrantes, as primeiras jornadas em fazendas de café do interior paulista, a perda dolorosa de filhos, a persistência no trabalho agrícola, a vida marcada pela polenta, pelas laranjeiras e pela disciplina severa à mesa, tudo isso é parte de uma memória transmitida de geração em geração.

A neta de Matteo, ao reconstituir a história, não apenas ofereceu datas e lugares, mas também o sentimento de quem cresceu ouvindo sobre o sacrifício dos antepassados. Coube a mim, como escritor, vestir essas lembranças com a roupagem da narrativa, ampliando-as em forma de romance histórico, sem nunca trair a essência do vivido.

Assim, esta obra não é biografia, mas tampouco é invenção gratuita. É a fusão entre memória familiar e literatura, um gesto de respeito aos que partiram do Vêneto em busca de uma vida melhor e acabaram por construir, no interior de São Paulo, raízes tão profundas quanto as árvores que plantaram.

Dr. Luiz C. B. Piazzetta


domingo, 5 de outubro de 2025

Da Terra do Pó às Terras Vermelhas de Rio Claro – De Ramodipalo a Mombuca


 

Da Terra do Pó às Terras Vermelhas de Rio Claro 

De Ramodipalo a Mombuca


O ano de 1886 trouxe consigo um vento gelado sobre os campos alagadiços de Ramodipalo Rasa, pequena localidade do município de Lendinara, na província de Rovigo. Domenico Azzolino, nascido em 1º de novembro de 1861, sabia que sua vida já estava marcada pelas águas do Pó e pela miséria sem fim que assolava aquelas terras. Sua esposa, Giudite Osti, nascida em 8 de setembro de 1867, compartilhava da mesma resignação. O solo parecia fértil apenas para a fome: milho mirrado, trigo que se perdia com as chuvas, e os vastos arrozais de Ramodipalo, embora abundantes, raramente beneficiavam os camponeses, que trabalhavam neles apenas como diaristas, sem jamais provar da prosperidade que produziam. Nada havia para os filhos pequenos, e nada haveria no futuro. A emigração não era escolha, era a última esperança. A decisão foi tomada como se fosse sentença. Venderam o pouco que tinham, juntaram as moedas, despediram-se da antiga casa de pedra e barro que guardavam memórias e partiram. A travessia do Atlântico começava.

No porto de Gênova, uma multidão de camponeses amontoava-se em filas desordenadas. Homens de mãos calejadas, mulheres de olhos cansados, crianças agarradas às saias das mães. Os navios eram fortalezas flutuantes, carregados não apenas de corpos, mas de ilusões. Domenico embarcou com Giudite e os dois filhos pequenos, levando na mala alguns utensílios, uma muda de roupas e um punhado de sementes de milho, como se pudesse, com aquilo, transportar um pedaço da pátria. A bordo, o tempo dissolvia-se em dias intermináveis. O espaço exíguo no porão cheirava a suor, maresia e doença. A comida, distribuída em porções miseráveis, misturava caldo ralo com pedaços de carne salgada. O mar, ora espelho, ora monstro, lembrava-os de que a viagem não tinha retorno. Crianças choravam noite adentro, velhos gemiam com febres. A cada enterro no oceano, quando um corpo era lançado às ondas envolto em lençóis brancos, o silêncio dos passageiros tornava-se mais pesado que o barulho das ondas.

Quando, finalmente, a silhueta do litoral brasileiro surgiu no horizonte, uma onda de alívio percorreu os emigrantes. Mas o desembarque em Santos trouxe mais medo que esperança: palmeiras se erguiam como sentinelas estranhas, o calor sufocava, os mosquitos zuniam em enxames. Dali, reunidos em um grande grupo, foram levados de trem para o interior de São Paulo, até Rio Claro, onde a Fazenda Bela Vista os aguardava.

A fazenda, propriedade dos irmãos Ribeiro, brasileiros de origem portuguesa, era um verdadeiro império de café. Fileiras intermináveis de pés verdes cobriam o horizonte, como um mar vegetal sem fim. Mas por trás da grandiosidade escondia-se a realidade brutal: trabalho incessante, dívidas no armazém da fazenda, alojamentos improvisados. Domenico e Giudite não tiveram escolha. Assinaram com as mãos trêmulas o contrato de colonos, sem entender cada cláusula, mas conscientes de que não havia outra saída.

A lida começava antes da luz da aurora, quando o sino da fazenda convocava os trabalhadores. Os colonos avançavam para o campo com enxadas, sacos e cestos, sob a vigilância dos feitores. O calor do meio-dia queimava a pele até abrir feridas; a chuva transformava o terreno em lama onde se afundava até os joelhos. O café exigia força, paciência e uma resistência quase sobre-humana.

Foi nesse ambiente que a tragédia se aprofundou. Domenico e Giudite já haviam perdido dois filhos na Itália, mas não imaginavam que as febres do Brasil arrancariam deles também os dois pequenos que haviam trazido. Enterraram as crianças em covas rasas, sob uma cruz improvisada, enquanto o trabalho não cessava. O luto era sufocado pelo toque do sino, que obrigava a todos a voltar ao campo.

A vida, porém, teimava em continuar. Vieram novos filhos: Guerino, Domingos, José, Albino e Teresa. Cada nascimento era uma vitória contra a terra hostil. Mas as dívidas cresciam no armazém da fazenda, onde cada saco de farinha, cada punhado de sal, era anotado com rigor no livro dos feitores. Para escapar à ruína, Domenico reduziu o sustento da família ao essencial. A polenta tornou-se o alimento de cada refeição, acompanhada apenas pelo suco das laranjas que apanhavam. O milho para a farinha ele conseguia trocando milhete no engenho de açúcar da Fazenda Itaúna.

Ainda assim, persistiam. Com permissão dos patrões, criavam dois porcos e algumas galinhas. Giudite enchia os quintais de vozes infantis e de canto de pássaros. O pouco transformava-se em muito, pela obstinação com que se agarravam à sobrevivência.

Anos de suor, silêncio e economia renderam frutos. Domenico e Giudite conseguiram juntar o suficiente para abandonar a condição de colonos assalariados. Compraram um terreno de terra fértil em Mombuca, não muito distante. Ali, pela primeira vez, respiraram o ar da liberdade. Construíram uma casa simples, cercada de lavouras próprias, e receberam de volta os filhos já casados, que ergueram suas famílias ao redor. Netos correram pelo pátio de terra batida, enchendo de risos o espaço que antes fora marcado pela morte.

Somente Teresa, a filha, não os acompanhou. Casada com Angelo Marino, também de origem italiana, fixou-se na Fazenda Santa Gertrudes, onde o marido trabalhava como um capataz. Ainda assim, a união familiar resistia à distância, como um fio invisível que mantinha todos ligados àquele núcleo fundado pelo sacrifício dos pais.

Em Mombuca, a vida encontrou um ritmo mais lento, sem, contudo, perder o peso da luta cotidiana. A pequena propriedade não lhes ofereceu riqueza, mas deu-lhes autonomia. Ali, já não eram obrigados a responder ao sino dos feitores, nem a comprar fiado no armazém da fazenda. Plantavam o que precisavam, criavam animais, e o que sobrava era trocado ou vendido nas feiras da região.

O tempo corria, trazendo casamentos dos filhos e o nascimento de netos que enchiam o terreiro com brincadeiras barulhentas. A casa, feita de madeira e barro, nunca foi grande, mas era suficiente para abrigar visitas frequentes. Ao redor, ergueram-se outras moradias simples, construídas pelos filhos, até que o pequeno núcleo familiar tomou ares de comunidade.

A velhice, porém, não trouxe apenas satisfação. Domenico carregava nos ossos o cansaço de décadas de trabalho duro, e seus silêncios prolongados denunciavam as lembranças que nunca se apagavam: a travessia pelo oceano, a fome dos primeiros anos e, sobretudo, os filhos perdidos ainda pequenos. Giudite, mais resistente, sustentava a rotina da casa, mas também se deixava vencer por recordações amargas, especialmente ao recordar os enterros apressados em solo estrangeiro.

As noites eram longas. Sentados sob o alpendre, ouviam os sons da mata misturados ao burburinho distante das vozes dos filhos. Às vezes, o silêncio pesava tanto quanto o trabalho dos tempos de colônia. Não falavam das dores, mas elas estavam presentes, invisíveis, em cada olhar cansado, em cada suspiro.

Aos poucos, Domenico e Giudite passaram a ser vistos como referências entre os filhos e vizinhos. Não porque fossem figuras grandiosas, mas porque haviam sobrevivido a tudo: ao desterro, à perda, ao trabalho sem fim. Tornaram-se testemunhas vivas de uma época em que milhares haviam cruzado o mar, e em cada ruga de seus rostos havia a marca dessa travessia.

Quando os anos avançaram ainda mais, e a vida começou a se esvair em silêncio, o casal já estava cercado por gerações que não haviam conhecido Rovigo, nem as águas do Pó, nem o medo dos primeiros dias no Brasil. Esses descendentes corriam livres pelos campos de Mombuca, alheios ao peso da história. Para Domenico e Giudite, essa era talvez a única vitória possível: deixar para os filhos e netos uma terra onde já não fosse preciso recomeçar do nada.

E assim se encerrou o percurso de dois imigrantes comuns, nem mais fortes nem mais fracos do que tantos outros, que viveram e morreram no interior paulista. A vida deles não foi marcada por glórias, mas por sobrevivência. E, no silêncio das suas memórias, encontrava-se a verdade mais dura e mais simples da grande imigração italiana: abandonar tudo, perder muito e, ainda assim, permanecer.

Nota do Autor

A trajetória de Domenico Azzolino e Giudite Osti não foi isolada. Entre 1870 e 1920, mais de um milhão e meio de italianos atravessaram o Atlântico em direção ao Brasil, muitos deles vindos do Vêneto, da Lombardia e do Piemonte. Assim como eles, deixaram para trás aldeias pobres, campos alagadiços ou montanhosos, e encontraram nas fazendas de café do interior paulista uma nova forma de sobrevivência. A vida dos Azzolino refletia a experiência de milhares: contratos mal compreendidos, dívidas no armazém, a fome vencida com polenta, a perda de filhos ceifados por doenças tropicais. Mas também revelava a lenta conquista da terra própria, a criação de novas gerações enraizadas no Brasil e a construção de pequenas comunidades familiares que se multiplicaram ao redor das antigas fazendas. Seus descendentes, espalhados hoje por diferentes cidades e regiões, carregam em silêncio essa herança feita de trabalho, sacrifício e persistência. E, na memória coletiva da imigração italiana, histórias como a de Domenico e Giudite são lembradas não como epopeias grandiosas, mas como a essência mesma da sobrevivência: homens e mulheres comuns que, ao abandonar sua terra natal, ajudaram a transformar o Brasil em um país de muitas pátrias.

Dr. Luiz C. B. Piazzetta


sábado, 4 de outubro de 2025

A Vida de Pietro Zanotelli

 


A Vida de Pietro Zanotelli

Das Colinas de Vicenza às Terras Vermelhas de São Paulo

Pietro Zanotelli nasceu em San Pietro Mussolino, Vicenza, no dia 14 de março de 1900. O vilarejo era pobre, mas os bosques que se erguiam ao redor ofereciam o sustento possível. Com somente os três anos do ensino básico concluídos, desde criança, Pietro aprendera a manejar o machado, a serrar troncos e a arrastar toras pelas encostas. Sua juventude foi marcada pelo cheiro da resina dos pinheiros e pela aspereza das mãos feridas pela madeira.

A pequena aldeia se resumia a algumas ruas tortuosas e estreitas, uma antiga igreja, dominando a praça e pequenas casas de pedra úmidas salpicadas de liquens, onde as famílias se apertavam em meio à escassez. As colheitas raramente bastavam, e a maioria dos jovens partia ainda muito cedo, deixando atrás de si velhos e mulheres. Era um retrato de um Vêneto pobre que ainda lutava contra as feridas deixadas pela guerra.

Em 1922, como tantos outros jovens da região, partiu para a França em busca de uma vida melhor. Encontrou trabalho nos túneis do Jura, onde o corpo era consumido pela umidade e pela escuridão. Foram três anos de labuta subterrânea, até que a saudade o empurrou de volta a San Pietro Mussolino. O retorno, porém, trouxe-lhe apenas a constatação amarga: ainda não havia futuro possível em sua aldeia natal.

A ideia da América começou a rondá-lo. Já não era uma emigração em massa, como a dos tempos de seus pais e avós. Agora, cada partida era um gesto individual, uma tentativa desesperada de escapar do desemprego e da fome que a Itália do pós-guerra ainda não conseguira resolver. Pietro observava as cartas que chegavam de parentes já instalados no Brasil, com relatos de dificuldades, mas também de terras férteis e novas oportunidades.

Na madrugada de 2 de julho de 1926, o dia da partida chegou. Pietro levantou-se cedo. A pequena maleta de papelão, já meio consumida, o passaporte recém-emitido e algumas moedas no bolso eram tudo o que carregava. Os parentes o acompanharam até o ponto de onde partia uma carroça que fazia o transporte de passageiros. Quando o cocheiro gritou a ordem de embarque, sentiu um nó na garganta. O silêncio pesou mais do que qualquer palavra. Virou-se uma última vez para olhar sua terra, e num sussurro apenas para si mesmo disse: “Adio Mussolino, chissà quando ti rivedrò”.

Seguiu então de trem para Gênova. Instalado em um hotel barato em uma rua lateral não muito longe do cais, dividiu pão e salame com três companheiros de viagem. Ao passear pelo porto, ficou paralisado diante do navio Giulio Cesare, uma fortaleza de aço erguida sobre as águas, pronta para atravessar o oceano. O porto fervilhava de vozes em diferentes dialetos, famílias chorando separações definitivas, vendedores ambulantes aproveitando o último instante de comércio, padres abençoando os que partiam.

No 30 de junho, as formalidades se sucederam: corte de cabelo, banho obrigatório, inspeção médica, vacina. Quando finalmente embarcou, desceu a escadaria de ferro até o porão, onde se alinhavam beliches numerados. Aquele seria seu mundo durante semanas.

Ao soar os três apitos da partida, o navio começou a afastar-se do cais. Do porto, a multidão cantava hinos patrióticos; no convés, emigrantes agitavam lenços encharcados de lágrimas. O barulho da música e dos gritos se misturava ao choro sufocado. Pietro permaneceu imóvel, carregando no peito o peso da separação.

A travessia foi marcada pelo enjoo dos primeiros dias, pela comida escassa e pelo cheiro sufocante dos camarotes. Os limões comprados em Gênova ajudaram a suportar o mal-estar. No convívio com outros passageiros, surgiam histórias semelhantes: jovens arrancados pela necessidade, velhos em busca de filhos que já haviam partido, mulheres levando crianças pequenas na esperança de recomeçar. Todos unidos pela mesma esperança de um futuro do outro lado do mar. Havia também as noites em que o mar se revoltava, e o balanço violento lançava os corpos contra as paredes de ferro, lembrando a todos que a travessia era uma aposta de vida e morte.

Ao desembarcar no porto de Santos sem conhecer a língua do Brasil, Pietro não encontrou promessas fáceis, mas sim o desafio de recomeçar do nada. Seguiu de trem para o interior de São Paulo, onde já existiam comunidades italianas estabelecidas. Encontrou trabalho em armazéns, em pequenas indústrias, em roças arrendadas, mudando de ofício conforme apareciam as oportunidades.

O Brasil não foi para ele uma terra de riqueza, mas sim de sobrevivência e continuidade. Casou-se com Ana Luísa Marchette, filha de imigrantes, com quem teve filhos e netos. Sua vida tornou-se um equilíbrio entre o trabalho incessante e a saudade que nunca se apagou. O sotaque do Vêneto nunca o deixou, e até os últimos dias mantinha o hábito de cantarolar canções antigas, como se cada nota fosse um elo com sua terra perdida.

Morreu em Campinas, no ano de 1972, aos 72 anos. Foi enterrado sob uma cruz simples, com a frase escolhida pela família:

“Partiu da Itália por necessidade, viveu no Brasil por esperança.”

Assim se encerrou a trajetória de Pietro Zanotelli, um homem que carregou no coração o peso da despedida e a coragem da travessia, testemunha de uma geração que deixou o Vêneto não por escolha, mas por obrigação da vida.

Nota do Autor

Este relato nasceu da necessidade de dar carne e voz a uma geração que, apesar de ter marcado profundamente a história, corre o risco de ser esquecida. Pietro Zanotelli, personagem central desta narrativa, não é um homem isolado: ele representa milhares de italianos que, nas primeiras décadas do século XX, foram forçados a abandonar seus vilarejos, suas famílias e o chão onde aprenderam a caminhar.

Não partiram por aventura ou ambição, mas pela imposição da vida. A Itália que emergiu da Grande Guerra estava exausta: os campos devastados, o trabalho escasso, as promessas do Estado vazias. Para muitos, a única saída era olhar para o horizonte do Atlântico e imaginar que, do outro lado, pudesse existir uma chance de sobrevivência.

Foi esse gesto — levantar-se de madrugada, despedir-se em silêncio, carregar uma mala pobre de roupas e memórias — que fundou a epopeia anônima de tantos homens e mulheres. Eles não eram heróis, mas trabalhadores comuns. E ainda assim, sua coragem os tornou extraordinários.

Ao recriar a trajetória de Pietro, não busquei apenas relatar fatos, mas também reconstruir atmosferas: o peso das despedidas, o cheiro acre dos portos, o som metálico dos apitos de partida, a claustrofobia dos porões de navio e, sobretudo, a saudade que atravessava oceanos. A saga de Pietro é uma chave para compreendermos a dor e a força daqueles que transformaram o Brasil em sua nova pátria.

Esta narrativa não é uma biografia literal. É um romance baseado em cartas, documentos e testemunhos, tecido com o fio da ficção para iluminar o que os registros oficiais não contam: o silêncio, o medo e a esperança.

Que a vida de Pietro Zanotelle, aqui narrada, seja lembrada como símbolo de todos os que cruzaram o mar não para enriquecer, mas para sobreviver — e, ao fazê-lo, construíram as bases de um futuro que hoje chamamos de nosso.

Dr. Luiz C. B. Piazzetta