Mostrando postagens com marcador emigraçao veneta. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador emigraçao veneta. Mostrar todas as postagens

terça-feira, 28 de outubro de 2025

Attilio Zampiero – A Estrada da Esperança

 


Attilio Zampiero – A Estrada da Esperança


No ano de 1887, Attilio Zampiero deixou a pequena vila de Roverchiara, nas terras baixas de Verona, levando consigo apenas um punhado de roupas gastas, alguns utensílios herdados e a lembrança viva da pobreza que o esmagava desde menino. A vida na Itália já não oferecia nada além de dívidas e fome. O campo onde nascera não bastava para sustentar sequer uma cabra, e o suor da família escorria em vão nas pedras áridas da planície.

O Brasil surgia como promessa nos relatos que corriam de boca em boca. Falava-se de campos infinitos, madeira abundante e liberdade para cultivar o que se quisesse. Cartas mal escritas do tio Antonio, instalado havia alguns anos na colônia Dona Isabel, no Rio Grande do Sul, traziam sempre um convite insistente: vender o pouco que possuíam e atravessar o mar.

A decisão de partir foi dolorosa. A família vendeu a casa e o pedaço de terra, abandonando também os túmulos de gerações no cemitério da vila. A despedida, marcada por lágrimas silenciosas, carregava o peso de nunca mais rever a Itália. Embarcaram em Gênova no navio a vapor Colombo, abarrotado de emigrantes miseráveis. Foram trinta e dois dias de travessia. O cheiro de corpos confinados, a umidade do porão e a ameaça constante da doença tornavam cada amanhecer uma vitória. A morte rondava como um predador paciente, mas Attilio resistia com a teimosia de quem não tinha escolha.

Quando enfim alcançaram o porto de Rio Grande, descobriram que o sonho tinha um preço maior do que imaginavam. Foram alojados em barracões superlotados, à espera de embarcações fluviais que os levariam lentamente, contra a corrente, pelos rios Guaíba e Caí até Montenegro, onde descansaram apenas por uma noite antes de seguir viagem.

Daí em diante, não havia estradas, apenas trilhas abertas a facão que se perdiam no coração da mata. Attilio e a família seguiram a pé, carregando baús e trouxas improvisadas. Havia dias em que a chuva fazia do caminho um lamaçal, e, quando a noite caía, o mundo se fechava como uma cortina de escuridão sem estrelas. Cada parada era um acampamento improvisado, alimentado com fogueiras pequenas e o pouco de farinha de milho que restava.

Depois de um dia que parecia não ter fim, chegaram à Colônia Dona Isabel, onde o tio Antonio os aguardava. O reencontro trouxe alívio e lágrimas, mas a jornada ainda não estava concluída. Em uma carroça puxada a bois, avançaram mais de um dia até alcançar a recém-aberta Colônia Alfredo Chaves, o lugar destinado pelo governo. O que encontraram foi um terreno íngreme, tomado por pedras e árvores seculares, um mundo hostil que parecia zombar de qualquer tentativa de cultivo.

Attilio ergueu com as próprias mãos um rancho tosco de troncos e folhas de palmeira. Plantou milho e feijão, criou algumas galinhas e um porco. Cada dia era uma batalha contra a floresta, que parecia querer engolir de volta os homens. A saudade da Itália ardia, sobretudo quando lembrava o cheiro do pão fresco e o som dos sinos de Roverchiara. Mas a volta era impossível. O Brasil tornara-se, ao mesmo tempo, destino e prisão.

A vida em Alfredo Chaves exigia coragem dobrada. O Rio das Antas, de águas revoltas, separava a colônia da vizinha Dona Isabel. Para atravessá-lo, usavam canoas frágeis, arriscando-se contra a correnteza traiçoeira. Era ali que Attilio trocava sacos de milho por sal ou ferramentas, sempre com o medo de que a água lhe roubasse a vida, como já fizera com outros colonos.

Os invernos castigavam com geadas que queimavam plantações inteiras. Muitas vezes, Attilio misturava farinha de milho com raízes da mata para saciar a fome dos filhos. Mas a obstinação não lhe faltava. Com vizinhos, começou a cultivar videiras, pequenas mudas trazidas escondidas da Itália, sonhando com o dia em que o vinho das colônias pudesse rivalizar com o das tavernas de Verona.

Com o tempo, Alfredo Chaves começou a se organizar. Famílias ajudavam-se em mutirões para erguer casas de pedra e capelas de madeira. Attilio, respeitado por sua tenacidade, tornava-se presença constante nas derrubadas, nas colheitas e até nas arriscadas travessias do Rio das Antas.

Mesmo assim, a saudade permanecia. Nas noites frias, o vento que soprava da serra lhe trazia lembranças da Itália. Ainda que a miséria continuasse a rondar, cada árvore derrubada e cada videira enraizada representavam conquistas arrancadas à força de um mundo desconhecido.

Foi assim que Attilio Zampiero fincou raízes no Brasil: não como promessa de riqueza imediata, mas como a única chance de sobreviver e deixar aos filhos uma herança maior do que ouro — a certeza de que, mesmo entre rios perigosos e terras ingratas, a esperança podia florescer.

Anos mais tarde, quando Alfredo Chaves recebeu o nome de Veranópolis, Attilio já sabia que aquela era sua pátria definitiva. A Itália ficara para trás como lembrança distante, mas a vida seguia ali, onde cada pedra retirada do chão e cada parreira erguida eram páginas escritas de sua própria estrada da esperança.

Nota do Autor

A história de Attilio Zampiero – A Estrada da Esperança nasce do testemunho vivo de descendentes de imigrantes italianos que se estabeleceram na antiga Colônia Alfredo Chaves, hoje Veranópolis, no final do século XIX. O personagem central, Attilio Zampiero, é fictício apenas no nome; sua trajetória, marcada pela travessia do oceano, a chegada ao Rio Grande do Sul e a luta contra a mata e a solidão, reflete fielmente a experiência relatada por seus herdeiros de memória. Por respeito ao pedido de anonimato das famílias que compartilharam suas lembranças, os nomes verdadeiros foram preservados no silêncio. Ainda assim, tudo o que aqui se narra — a viagem, os sofrimentos, a travessia do Rio das Antas, o início da vida em terras íngremes e pedregosas — pertence à realidade daqueles que ousaram trocar a Itália pela incerteza do Brasil. Attilio, portanto, é mais do que um personagem: é o símbolo de tantos homens e mulheres que construíram suas estradas de esperança no coração da serra gaúcha.

Dr. Luiz Carlos B. Piazzetta


sexta-feira, 10 de outubro de 2025

Entre Raízes e Horizontes


Entre Raízes e Horizontes

A Vida de Bartolomeo Mussioni


Bartolomeo Mussioni nasceu em 1868 na pequena localidade de San Giacomo di Veglia, pertencente ao município de Vittorio Veneto, na província de Treviso. O lugar era um recanto modesto do Vêneto, protegido pelas colinas, repletas de parreirais, que se erguiam como guardiãs silenciosas sobre os campos cultivados. Ali, a vida seguia o compasso antigo do trabalho rural, com sinos de igreja marcando os dias e as estações ditando o destino das famílias.

Desde cedo, Bartolomeo aprendera que a terra podia ser ao mesmo tempo generosa e cruel. As planícies ao redor da vila, recortadas por fileiras de trigo e vinhedos ralos, exigiam esforço sem tréguas. A cada verão, o calor secava os campos até quase matá-los; a cada inverno, a geada queimava o que havia sobrevivido. Havia anos em que a colheita não passava de um punhado de grãos, insuficiente para alimentar a família durante os meses mais duros. Nessas épocas, o silêncio da casa se tornava pesado, quebrado apenas pelo som das lamúrias abafadas das mães e pelo ranger dos arados puxados a custo pelos bois magros.

Mas o mundo de Bartolomeo não se limitava às dificuldades da lavoura. Desde a adolescência, rumores atravessavam os vales e corriam de boca em boca: histórias de terras distantes, de uma nova vida além do oceano. Nos encontros na pequena praça de Vittorio Veneto, entre o murmúrio dos anciãos e a curiosidade dos mais jovens, surgiam relatos de famílias que haviam partido rumo à América. Falava-se de um continente fértil e sem fim, onde a terra não precisava ser pedida em arrendamento e onde as colheitas se multiplicavam como bênçãos.

Essas histórias, muitas vezes exageradas e envoltas em mistério, alimentavam a imaginação dos camponeses. Para Bartolomeo, que desde cedo conhecia a incerteza da subsistência, a ideia de uma terra em que o pão e o mel pareciam brotar da própria natureza ganhava contornos de promessa divina. Era como se o destino oferecesse, além das colinas familiares de Treviso, um horizonte novo, vasto e luminoso, capaz de resgatar sua família da penúria e garantir-lhe um futuro de abundância. 

Em 1884, quando Bartolomeo completou dezesseis anos, sua vida sofreu o primeiro grande abalo. Naquele ano, seu tio Santo, homem de espírito inquieto e coragem rara, decidiu romper os limites da tradição e tentar a sorte além-mar. Partiu de Vittorio Veneto levando consigo a esposa e as duas filhas pequenas, deixando para trás a velha casa de pedra e os vinhedos que já não sustentavam a família. A despedida foi marcada por lágrimas contidas e pelo som pesado dos sinos da paróquia, que naquela manhã pareciam dobrar não apenas para os que ficavam, mas também para o fim de uma era.

Meses depois, começaram a chegar as primeiras notícias da travessia. Relatos inflamados descreviam um Brasil exuberante, onde a terra se abria generosa diante de quem tivesse braços fortes para cultivá-la. Falava-se de rios largos como mares, de campos tão vastos que os olhos não alcançavam o fim, de colheitas que superavam qualquer expectativa. Para os que viviam sob a penúria das encostas vênetas, tais notícias soavam como revelações de um Éden reencontrado.

A cada palavra que chegava, crescia no coração de Bartolomeo um turbilhão de sentimentos. Entre a dura realidade de San Giacomo di Veglia e as promessas de um continente sem fronteiras, instalava-se nele uma inquietação que não lhe permitia mais dormir em paz. O jovem, ainda marcado pela inocência dos dezesseis anos, começou a enxergar o mundo como uma bifurcação inevitável: permanecer preso às colinas que moldaram sua infância ou arriscar tudo na incerteza de terras desconhecidas.

A decisão foi se formando lentamente, como as estações que amadurecem a vinha. Movido por uma mistura de curiosidade, esperança e o desejo quase instintivo de quebrar o ciclo da escassez, Bartolomeo se uniu à onda migratória que se espalhava por sua região como uma maré silenciosa. No dia da partida, deixou Vittorio Veneto com o coração dividido: de um lado, a saudade pungente da pátria, das colinas familiares, dos rostos que jamais veria outra vez; de outro, a expectativa ardente do desconhecido, que o atraía como uma promessa de renascimento.

A travessia foi longa, trinta dias sobre o mar revolto até o porto de Santos. Mal desembarcou, Bartolomeo solicitou ser transferido para a Colônia Caxias, no Rio Grande do Sul, onde a família de seu tio já começava a se estabelecer. Chegaram a Porto Alegre em 13 de maio de 1888, um dia que entraria para a história do Brasil pela abolição da escravatura. Para Bartolomeo e os que chegavam, no entanto, o mundo novo era ainda cru e desafiador: não havia dinheiro, não havia crédito, não havia garantias. O peso da realidade pesava mais que o sonho da América.

Enquanto seu avô e seu tio Giovanni, ainda na Itália, sugeriam o retorno à pátria, Bartolomeo ouviu a determinação de seu pai Vittore e do tio Prosdocimo: a família já estava ali, e a oportunidade deveria ser cultivada, mesmo que lenta e penosamente. Embora Bartolomeo e sua tia Lucia inicialmente desejassem retornar à Itália, a persistência do pai e a força da comunidade os fizeram permanecer. Entre resmungos e lamentações, Lucia expressava seu desdém pela “terra de selvagens”, enquanto Bartolomeo, emocionado, buscava aceitar a vontade divina e o curso inevitável da vida.

O tempo, implacável e paciente, trouxe consigo a adaptação e os primeiros frutos do esforço. As mãos calejadas de Bartolomeo e de sua família começaram a transformar a terra bruta em campos ordenados. Onde antes havia apenas mato cerrado e chão pedregoso, surgiram fileiras de milho que se erguiam como estandartes verdes sob o sol tropical. As sementes de trigo, importadas em pequenas quantidades, encontraram resistência, mas aos poucos aprendeu a crescer naquele solo novo, como se também fosse um emigrante em busca de raízes. Outros cereais, plantados em parcelas menores, completavam a paisagem agrícola que se expandia a cada estação.

A grande virada veio com a implantação do primeiro vinhedo. Entre enxadas, estacas de madeira e paciência quase infinita, Bartolomeo via brotar não apenas videiras, mas o elo simbólico com a terra de onde viera. As parreiras, ainda frágeis, balançavam ao vento como lembranças vivas das colinas de Vittorio Veneto. Cada ramo que vingava representava mais que uma promessa de colheita: era a prova de que, mesmo longe, era possível reconstruir um pedaço da pátria.

Com o trabalho incessante, vieram os primeiros sinais de progresso. Os comerciantes locais, antes desconfiados, passaram a conceder crédito. O nome dos Mussoni começou a circular nos registros da colônia, associado à perseverança e ao cultivo bem-sucedido. Uma sensação discreta de estabilidade se insinuava, ainda frágil como um fio de vidro, mas suficiente para dar à família um novo alicerce.

Cada passo, cada colheita, cada pequeno progresso consolidava a presença dos Mussoni naquele solo estrangeiro. As casas de madeira erguiam-se ao redor dos campos, os armazéns guardavam os frutos de meses de trabalho, e a terra que no início parecia hostil começava a revelar-se parceira. Ainda assim, no fundo do coração de Bartolomeo permanecia um vazio insondável. A saudade da pátria natal nunca o abandonava: nas noites silenciosas, enquanto o vento atravessava as frestas da casa simples, ele sentia-se de novo em San Giacomo di Veglia, ouvindo o soar dos sinos da pequena igreja e vendo as colinas do Vêneto se tingirem de dourado ao entardecer.

A vida lhe ensinava que era possível criar raízes em terras distantes, mas jamais arrancar da alma a lembrança daquilo que havia sido perdido.

Bartolomeo, moldado por desafios e esperanças, aprendeu que a verdadeira viagem não estava apenas na travessia do Atlântico, mas na construção de uma vida digna em terras que, embora distantes e inóspitas, podiam tornar-se lar para aqueles que perseverassem. Entre a memória das colinas de Treviso e os horizontes abertos do Rio Grande do Sul, encontrou seu destino — uma existência de trabalho árduo, conquistas tímidas e, acima de tudo, a promessa de um futuro construído com suas próprias mãos.

Nota do Autor

Escrever esta história foi, para mim, mais do que um exercício de imaginação: foi um mergulho profundo na memória coletiva de milhares de famílias que, como Bartolomeo Mussioni, deixaram sua terra natal em busca de uma vida melhor. Ao revisitar os caminhos de um personagem ficcional, inspirado na realidade de tantos imigrantes do Vêneto e de outras regiões da Itália, procurei dar voz à experiência universal de quem se vê dividido entre o amor pelas raízes e a necessidade de olhar para novos horizontes.

A escolha por narrar a vida de Bartolomeo nasceu do desejo de compreender o drama silencioso da emigração: o peso da fome, das colheitas incertas, das despedidas carregadas de lágrimas, mas também a esperança quase teimosa que movia homens e mulheres a atravessarem o oceano. Escrever sobre ele foi, portanto, uma forma de homenagear não apenas uma geração de italianos que ajudou a construir o Brasil, mas também as histórias de luta, adaptação e fé que permanecem vivas na memória de seus descendentes.

Ao longo da narrativa, busquei mostrar que a travessia de Bartolomeo não se restringiu ao Atlântico: ela foi também uma travessia interior. Cada vinhedo plantado, cada pedaço de terra cultivado, representava não só um gesto de sobrevivência, mas também uma tentativa de recriar, em solo estrangeiro, a pátria que ficara para trás. É nesse ponto que a história se torna universal: todos nós, em algum momento da vida, precisamos aprender a equilibrar aquilo que carregamos de origem com aquilo que nos espera adiante.

Decidi escrever Entre Raízes e Horizontes porque acredito que a literatura tem a força de resgatar aquilo que o tempo muitas vezes tenta apagar. A saga de Bartolomeo Mussioni é, no fundo, um tributo à coragem, à persistência e à saudade. É também um convite ao leitor para refletir sobre suas próprias raízes e horizontes — sobre o que deixamos para trás e sobre aquilo que nos move a seguir em frente.

Dr. Luiz Carlos Piazzetta



quarta-feira, 10 de setembro de 2025

A Língua que Cruzou o Oceano

 


A Língua que Cruzou o Oceano 

O Talian como herança, resistência e identidade no Brasil


O Talian nasceu no Rio Grande do Sul do encontro de vozes que atravessaram o Atlântico com os imigrantes italianos, sobretudo a partir de 1875, quando milhares de famílias deixaram suas vilas no Vêneto, em Trento, no Friuli, na Lombardia e no Piemonte em busca de um futuro no Brasil. Esses homens e mulheres traziam nas malas pouco além da memória de suas aldeias, da fé que os sustentava, dos costumes herdados e dos dialetos que moldavam seu cotidiano. Foi na Serra Gaúcha, em localidades como Caxias do Sul, Garibaldi e Bento Gonçalves, que essas falas diversas começaram a se entrelaçar.

Embora o veneto tenha se imposto como base principal dessa comunicação, outros dialetos logo se misturaram a ele, formando uma fala híbrida que também recebeu a marca do português. Assim surgiu um idioma novo, profundamente ligado à Itália, mas já enraizado no Brasil, chamado de forma carinhosa e popular de Talian.

Essa língua floresceu entre roçados e parreirais, nas cozinhas aquecidas pelos fogões a lenha, nos bancos das igrejas e nas feiras comunitárias. Durante muitas décadas foi a primeira língua das crianças descendentes de imigrantes italianos: a língua das cantigas improvisadas no trabalho, das rezas ao entardecer e das histórias contadas de avós para netos.

O caminho do Talian, no entanto, não esteve livre de provações. No período do Estado Novo, entre 1937 e 1945, quando o governo de Getúlio Vargas buscava impor a uniformidade cultural pelo uso exclusivo do português, falar o Talian em público passou a ser motivo de sanções severas, inclusive motivo para prisão do infrator. Ainda assim, a língua sobreviveu. Dentro das casas, atrás de portas fechadas, continuava a ser transmitida como gesto de afeto e como resistência à homogeneização cultural.

A persistência dessas comunidades acabou sendo oficialmente reconhecida no século XXI. Em 2009, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional declarou o Talian patrimônio cultural do Brasil. Poucos anos depois, em 2014, o município de Serafina Corrêa, no Rio Grande do Sul, deu um passo simbólico ao adotá-lo como língua cooficial. Desde então, placas, documentos e iniciativas culturais passaram a refletir essa herança que não pertence apenas ao passado, mas que se projeta como parte viva da identidade atual.

Hoje, o Talian ainda ecoa em mais de uma centena de municípios, não apenas no Rio Grande do Sul, mas também em Santa Catarina, Paraná, e até em regiões distantes. Ele se manifesta em missas celebradas na língua, em programas de rádio que preservam a sonoridade dos antepassados, em grupos de dança, canto e teatro que mantêm vivo o imaginário da imigração. Com gramática própria já consolidada, o Talian conta hoje com diversas publicações, entre elas dicionários, obras didáticas e centenas de outros livros e artigos que reforçam sua vitalidade como língua.

Mais do que um simples dialeto de origem italiana, o Talian é uma língua de memória e pertencimento. É o eco das colinas vênetas transportado para as montanhas do Sul do Brasil, a voz dos que lavraram a terra vermelha com as próprias mãos e nela encontraram uma nova pátria. Ele revela que a língua é mais que instrumento de comunicação: é um território afetivo, onde se preservam raízes e se constroem horizontes de uma identidade mestiça, ao mesmo tempo italiana e brasileira.

De modo geral, os vênetos na Itália costumam afirmar que o Talian nada mais é do que uma variação de seu próprio dialeto — em outras palavras, que o Talian seria o próprio vêneto transplantado. Em parte, têm razão: como a maioria dos imigrantes italianos instalados no Rio Grande do Sul era de origem vêneta, é natural que o veneto se tornasse a base predominante desse idioma. Ainda assim, o Talian não se limita a uma mera reprodução. Recebeu contribuições de outros dialetos trazidos por imigrantes de regiões vizinhas, embora em número menor. No essencial, é quase todo ele de origem veneta, mas enriquecido por essas sutis influências. O resultado é que tanto os falantes do veneto na Itália quanto os do Talian no Brasil se compreendem sem dificuldade, pois as duas formas de falar se aproximam e se complementam.


domingo, 7 de setembro de 2025

Entre a Planície do Pó e o Novo Mundo


 

Entre a Planície do Pó e o Novo Mundo


Vittorio Belinazzo nasceu em 1875, em Fratta Polesine, um pequeno município da província de Rovigo. A infância se desenrolara na monotonia das terras planas do Polesine, onde os campos, cortados pelos canais e cercados pelas cheias do Pó, sustentavam com dificuldade as famílias camponesas. A vida era feita de um trabalho constante e de recompensas escassas. O pai, Giuseppe, ganhava a vida como diarista nos vastos arrozais da região, passando os dias dobrado sobre a enxada em terras que nunca seriam suas. A mãe, Rosa, governava a casa e mantinha unidos os sete filhos, enquanto o tempo parecia arrastar-se em um ciclo de pobreza resignada.

Quando a Itália se unificara, muitos em Fratta esperaram por um futuro mais justo. Mas o que chegara às portas da aldeia não fora prosperidade, e sim impostos mais pesados e as crises do trigo que minavam qualquer esperança. Na juventude, Vittorio viu vizinhos e parentes partirem em grupos rumo à América. A ideia o perseguia: deixar a planície, os rios e os arrozais, atravessar o mar e tentar a sorte em terras onde a fome não fosse companheira diária.

No início dos anos 1890, tomou a decisão de partir junto com a família de um seu tio materno. Despediu-se dos pais e dos irmãos menores com a promessa de jamais esquecê-los e embarcou no porto de Genova para o Brasil. A travessia foi longa, marcada pelo aperto dos porões e pelo cheiro sufocante de corpos amontoados. Mas, ao desembarcar em Santos e seguir para São Paulo, sentiu que uma nova vida começava.

Instalou-se primeiro como operário em pequenas oficinas. O trabalho era duro, mas o ritmo frenético da cidade crescia junto com suas oportunidades. Com o tempo, aprendeu o ofício de relojoeiro, profissão que exigia paciência, precisão e um olhar atento aos detalhes, virtudes que lhe serviriam pela vida inteira.

Foi nessa época que conheceu Elisa, filha de imigrantes de Brescia. Casaram-se em 1898. A casa modesta que ergueram em São Paulo foi o primeiro refúgio estável que Vittorio conheceu. Pouco depois, nasceram os filhos: Maria, em 1899, e Alfredo, em 1901. O orgulho de ser pai dava-lhe forças para suportar a exaustão das longas horas de trabalho.

A lembrança da família em Fratta, contudo, jamais o abandonou. O irmão mais novo, Giulio, permanecera na Itália e buscava aprender um ofício. Para Vittorio, ele simbolizava uma esperança: que as gerações seguintes pudessem escapar do destino de servidão ao campo. A irmã Teresa, casada com um funcionário público de Rovigo, representava a estabilidade que ele mesmo buscava no Brasil. E até os sobrinhos, crianças que jamais vira, ocupavam um lugar no seu coração.

Apesar do esforço diário, a prosperidade não vinha. Os ganhos eram sempre consumidos pelas necessidades da família. O Brasil oferecia uma vida mais segura do que o Polesine, mas estava longe das promessas de abundância que haviam circulado nas aldeias italianas. Vittorio, realista, aceitava essa condição. Entendia que sua verdadeira conquista não estava em enriquecer, mas em oferecer aos filhos uma vida que não começasse já marcada pela fome.

Os anos se sucederam, e sua identidade passou a ser dividida entre dois mundos. No Brasil, era marido, pai e artesão. Na Itália, permanecia filho e irmão, ligado por laços invisíveis que nem a distância do oceano conseguia romper. Era a vida de um emigrante: suspensa entre a memória de uma terra perdida e a construção de outra, que nunca deixava de ser estrangeira.

O tempo avançou rápido sobre a vida de Vittorio Belinazzo. A oficina de relojoeiro, modesta mas respeitada, tornara-se seu refúgio durante décadas. Entre engrenagens, ponteiros e cordas de aço, ele via o tempo passar não apenas nos relógios que consertava, mas também no rosto que se transformava diante do espelho.

Os filhos cresceram. Maria, a primogênita, herdara da mãe a firmeza e do pai a delicadeza dos gestos. Tornou-se professora, ocupação que enchia Vittorio de orgulho, pois simbolizava a ruptura com o destino de servidão que ele conhecera na infância. Alfredo, inquieto e enérgico, não quis seguir o ofício paterno; preferiu o comércio, atraído pelo movimento das ruas do centro de São Paulo.

Aos poucos, a cidade mudava. Bondes elétricos substituíam os puxados por mulas, fábricas se multiplicavam, e a enxurrada de imigrantes continuava a transformar o cenário urbano. Vittorio, já homem maduro, sentia-se parte dessa transformação, mas guardava dentro de si uma nostalgia persistente das planícies do Polesine.

Durante anos alimentou a ideia de voltar a Fratta Polesine, ainda que apenas em visita. Imaginava a mãe diante da velha casa de pedra, o irmão Giulio já adulto, talvez dono de uma oficina própria, e os sobrinhos, crescidos sem jamais conhecê-lo. Mas a vida não lhe deu essa chance. A morte da mãe chegou-lhe pela notícia tardia de um vizinho que regressara à Itália. Depois, a guerra de 1915 a 1918 devastou a Europa, tornando impossível qualquer retorno. O sonho de rever a aldeia desfez-se em silêncio.

A velhice chegou discreta. Elisa, companheira de todas as lutas, adoeceu primeiro. Vittorio cuidou dela até o último instante, com a mesma paciência com que cuidava de um relógio frágil. Sua partida abriu um vazio irreparável. Viúvo, continuou vivendo na mesma casa, cercado de lembranças e da presença esporádica dos filhos e netos.

Com os anos, o ofício deixou de ser necessidade e passou a ser companhia. Continuava sentado à bancada, ajustando engrenagens com mãos já trêmulas, como se os relógios fossem testemunhas silenciosas de sua própria resistência. A memória, porém, permanecia viva. Em certos fins de tarde, fechava os olhos e via-se de novo menino em Fratta, correndo pelos campos encharcados, ouvindo a voz da mãe chamando para casa.

Assim viveu Vittorio Belinazzo, homem comum e anônimo, mas cuja coragem em atravessar o mar e recomeçar do nada ecoaria nas gerações seguintes. O sacrifício silencioso de sua existência fazia parte de uma história maior: a de milhares de italianos que, como ele, trocaram as margens do Po pelas ruas de São Paulo, levando consigo saudades, esperanças e a obstinada fé no futuro.

Morreu em 1949, com setenta e quatro anos, cercado pelos filhos e netos. Não deixou riquezas, mas legou à família algo mais duradouro: a coragem de ter cruzado o oceano e a dignidade de uma vida erguida sobre trabalho, fidelidade e amor.

Na pequena sepultura de São Paulo, longe das margens do Pó, repousou Vittorio Belinazzo. Mas, na memória dos descendentes, sua figura jamais ficou confinada ao cemitério. Para eles, ele era o elo entre dois mundos, o homem que carregara na alma a planície de Rovigo e a plantara, invisível, no solo do Brasil.

Nota do Autor

Esta história é baseada em fatos verídicos, embora os nomes tenham sido alterados a pedido de um de seus descendentes, aquele que generosamente forneceu os dados que tornaram possível reconstruir a vida de Vittorio. O objetivo desta narrativa não é apenas preservar a memória de sua trajetória, mas também transformá-la em algo mais amplo: uma homenagem a todos aqueles que, como Vittorio, enfrentaram as adversidades com coragem, honra e perseverança. Ao compartilhar esta história, espero que ela transcenda os limites de uma família, tocando a todos que reconhecem a força e a dignidade de quem se aventura a construir uma vida nova, mesmo diante das dificuldades. 

Dr. Piazzetta




quarta-feira, 3 de setembro de 2025

Settimo Manfrino – Entre as Dolomitas e os Cafezais

 


Settimo Manfrino

Entre as Dolomitas e os Cafezais


Settimo Manfrino nasceu em 1870, em Sappade, uma pequena localidade encravada nas Dolomitas, no comune de Falcade, província de Belluno. Era o sétimo filho de Masueto e Giuseppina, batizado com um nome que carregava tanto a marca da numerosa família quanto o peso da esperança de sobrevivência em uma terra dura. Ali, os campos eram estreitos, pedregosos, de cultivo ingrato. O trigo rareava, o centeio crescia baixo e os invernos cobriam tudo com neve densa, que transformava as montanhas num espetáculo belo e cruel. As casas de pedra lutavam contra o frio que descia noite após noite a temperaturas que congelavam até as fontes.

A vida era trabalho incessante e ganhos mínimos. Nos últimos anos, a instabilidade climática havia trazido ainda mais dificuldades. Colheitas já escassas se tornaram quase inexistentes. Os celeiros, outrora modestos mas suficientes, agora guardavam apenas restos. O pão de cada dia vinha misturado com batata e farinha de castanha, numa luta contra a fome. O pai, envelhecido pelo peso da enxada e das dívidas, sabia que os filhos não teriam futuro ali.

Foi Giuseppe, o primogênito, quem primeiro tomou a decisão: partir para o Brasil, onde, diziam, as terras eram fartas e o trabalho garantido. A notícia correu pelas encostas como um murmúrio de esperança. Settimo, ainda rapaz de dezessete anos, sem laços de matrimônio, aceitou seguir o irmão. Deixaria para trás a paisagem familiar das montanhas, o cemitério dos antepassados, a pequena igreja de Falcade onde fora batizado.

Em 1887, atravessaram a Itália em trem até o porto de Gênova, levando um baú de madeira e duas pequenas malas de couro, pão seco, queijo curado e as lembranças de uma vida inteira. No navio, uma travessia longa e penosa até Santos trouxe febres, enjoos e a saudade da terra natal. Mas ao pisarem no cais paulista, não houve tempo para contemplações. Junto de outras vinte famílias de emigrantes italianos, embarcaram no trem da Mogiana. O percurso pelos campos tropicais, sob um sol abrasador, mostrou um mundo radicalmente oposto às neves das Dolomitas.

Ribeirão Preto, destino final, era uma terra de horizontes planos, marcados por fileiras intermináveis de cafeeiros. A fazenda que os acolheu, imensa e isolada, impunha regras severas. Contratados por quatro anos, substituíam a mão de obra escrava recém-liberta. Logo compreenderam a realidade: a distância até a cidade tornava impossível buscar auxílio em caso de doença, e quando recebiam seus pagamentos, os colonos eram obrigados a deixar grande parte deles no armazém da própria fazenda, que, por ser o único existente, praticava preços elevados. 

Settimo, ainda franzino e sem a experiência do irmão, conheceu logo o peso do trabalho. As jornadas começavam antes do sol nascer e terminavam quando a lua já brilhava sobre os cafezais. O calor lhe queimava a pele, as mãos se cobriam de calos, e os pés, acostumados a trilhas de montanha, sangravam nos sulcos da terra vermelha. A fazenda era um universo fechado: não existiam médicos, remédios eram luxo, e a solidão corroía a todos.

Apesar disso, o jovem guardava uma força silenciosa. Ao lado de Giuseppe, de Chiara e dos sobrinhos — os meninos Lorenzo e Paolo, e a pequena Bianca —, sustentava-se na ideia de futuro. Aprendeu a manejar a enxada, a colher os grãos maduros, a suportar as longas fileiras sob o sol impiedoso.

Os anos no Brasil moldaram Settimo. Aos poucos, perdeu o aspecto de rapaz e se fez homem, com o corpo marcado pela labuta. Guardava, entretanto, um olhar profundo, herança das montanhas que o viram nascer. Cada dia resistido era também um tributo aos que haviam ficado em Sappade.

Quando o contrato de quatro anos terminou, a família não tinha muito mais que dívidas e fadiga. Mas Settimo já não era o mesmo. A miséria de Falcade havia ficado para trás, e diante dele se abria um novo caminho. Permaneceria no Brasil, na esperança de conquistar um pedaço de terra próprio, onde pudesse finalmente plantar não apenas para sobreviver, mas para viver.

A história de Settimo Manfrino confundia-se com a de milhares de italianos que trocaram as montanhas da Europa pelos cafezais do Brasil. Entre a beleza congelada das Dolomitas e a vastidão quente do interior paulista, sua vida se inscreveu como um testemunho da dureza e da perseverança de uma geração que buscou nos horizontes distantes aquilo que sua pátria não pôde oferecer.

Quando o contrato na fazenda expirou, Settimo Manfrino tinha pouco mais de vinte anos. Não possuía quase nada além das roupas gastas, algumas moedas mal guardadas e o corpo endurecido pelo esforço. Mas possuía também algo que não tinha ao deixar as Dolomitas: a certeza de que o Brasil seria sua pátria definitiva. Voltar não fazia parte de seus pensamentos.

Giuseppe, mais cauteloso, permaneceu na fazenda, aceitando novo contrato. Tinha mulher e filhos para sustentar, não podia arriscar. Settimo, livre de responsabilidades familiares, arriscou o passo seguinte. Juntou-se a outros colonos solteiros que haviam decidido tentar a sorte nos arredores das pequenas vilas que cresciam ao redor dos trilhos da Mogiana.

Foi trabalhar como meeiro em uma pequena plantações da região. Plantava milho e feijão trabalhando sem descanso, movido pela lembrança de sua terra natal, onde os campos pedregosos nunca lhe permitiram sonhar com algo além da sobrevivência. Ali, no interior paulista, a terra parecia infinita, vermelha e fértil, esperando apenas a persistência de quem a cultivasse.

Aos poucos, formou uma rede de amizades com outros imigrantes: vênetos, lombardos, piemonteses, cada um carregando seu sotaque e suas histórias de miséria deixadas para trás. Juntos construíam capelas improvisadas, partilhavam as festas religiosas, ajudavam-se nas colheitas. O Brasil os moldava, mas a Itália permanecia em seus gestos, na língua misturada e nas comidas que preparavam.

Em 1893, já com vinte e três anos, Settimo conseguiu sozinho arrendar um pequeno pedaço de terra. Foi o início de sua independência. O contrato era precário, mas para ele simbolizava vitória. O solo respondia ao esforço, e colheitas regulares lhe garantiam não apenas o sustento, mas algum lucro. Guardava cada moeda com disciplina, sonhando em comprar a própria gleba.

O tempo, no entanto, não era generoso. Febres tropicais rondavam os colonos. Muitos tombaram sem jamais ver cumprido o sonho de possuir terras. Settimo resistiu, ainda que debilitado em algumas temporadas. A lembrança da carta que lera em Ribeirão Preto — avisando sobre a falta de médicos e a solidão das fazendas — se confirmava ano após ano. Mas havia também uma energia nova, uma sensação de que aquele sacrifício poderia finalmente romper o ciclo de pobreza herdado.

No início da década de 1890, reencontrou a família do irmão Giuseppe. As crianças haviam crescido, Bianca já se tornava moça. A vida seguia dura para eles, ainda presos a contratos de fazenda, mas também sonhando com um futuro independente. A união entre as duas famílias tornou-se ainda mais forte. Juntos, arrendavam terras maiores, trocavam dias de trabalho, ajudavam-se a resistir às crises.

Foi nesse período que Settimo conheceu a filha de outro imigrante vêneto, vinda de Treviso. O casamento lhe trouxe estabilidade e, pouco depois, filhos que nasceram já em solo brasileiro. A vida mudava de rumo: da condição de colono sem nada, transformava-se em pequeno agricultor.

Em 1898, após mais de dez anos no Brasil, Settimo conseguiu comprar suas primeiras braças de terra, pagando com a economia de colheitas passadas. Era pouco, mas para ele equivalia a uma conquista histórica. Sobre o lote ergueu uma casa simples de madeira, coberta com telhas de barro que comprara na vila próxima. Ao redor, cercou o quintal, plantou frutas, levantou um pequeno galinheiro.

Os anos seguintes consolidaram a transformação. Settimo já não era apenas o rapaz de dezessete anos que chegara perdido e atônito à fazenda de Ribeirão Preto. Tornara-se um homem de respeito, conhecido entre os vizinhos pela coragem e pelo silêncio. Seus filhos corriam pelos cafezais, falando já mais português que o vêneto dos pais, sinal de que uma nova geração se enraizava naquela terra distante das montanhas dolomitas.

A memória da Itália permanecia como uma sombra distante. O frio de Sappade, as neves que cobriam os telhados, os campos estreitos e inférteis já não eram lembrados com dor, mas com uma melancolia suave. A vida agora estava no Brasil, e a terra vermelha, conquistada com suor e esperança, era a pátria real que ele escolhera.

Settimo Manfrino encerrou o século XIX como proprietário de seu próprio pedaço de mundo. Ainda pequeno, ainda modesto, mas conquistado com a dignidade de quem, ao atravessar o oceano, não levou consigo mais que o desejo de sobreviver.

O século XX encontrou Settimo Manfrino já como um homem feito, dono de um pequeno lote que conquistara com suor e disciplina. A casa de madeira, simples, tornara-se ponto de referência para vizinhos e parentes. O quintal era vivo: galinhas ciscavam soltas, pés de laranja e de goiaba cresciam junto ao cercado, e a horta fornecia milho verde, mandioca e feijão. O café, espalhado em linhas retas pelo terreno, começava a produzir com regularidade, transformando-se na base da renda familiar.

Sua esposa, mulher de temperamento firme, cuidava da casa e dos filhos, impondo uma ordem que lembrava a rigidez das vilas italianas. O sotaque vêneto ainda dominava dentro de casa, mas fora dela os filhos se adaptavam ao português, à escola improvisada na capela e ao convívio com outras famílias, algumas italianas, outras de imigrantes espanhóis e até de libertos que haviam recebido lotes pequenos.

Os filhos de Settimo cresceram entre as fileiras de café e os campos de milho. Aprendiam desde cedo a capinar, colher e transportar. Mas também traziam novidades: a leitura, ensinada por professores itinerantes, e a curiosidade pelo mundo além da colônia. Um deles sonhava em ser comerciante, outro falava em estudar na cidade, e a menina, ainda pequena, repetia o desejo de ser professora. Settimo observava essas mudanças com uma mistura de orgulho e estranheza. Na sua juventude, ninguém tivera escolha; o destino era apenas sobreviver ao frio e às pedras da montanha. Agora, seus filhos ousavam sonhar com horizontes mais largos.

A vida no interior paulista seguia dura, mas o tempo começava a recompensar os colonos. As ferrovias avançavam, as vilas cresciam, e o café transformava-se em ouro verde. Settimo, que começara como colono sem nada, agora vendia parte de sua produção a compradores que chegavam de trem, carregando o café em sacas até Santos. Cada safra bem-sucedida lhe permitia ampliar o lote, comprar ferramentas melhores e garantir uma reserva contra os anos ruins.

Por volta de 1910, Settimo já era considerado um pequeno proprietário respeitado. Não era rico, mas estava longe da miséria que marcara sua infância em Sappade. Os vizinhos o procuravam para conselhos, e os mais novos viam nele um exemplo de perseverança. A barba grisalha e o corpo curvado pelo trabalho davam-lhe uma presença austera. Ainda assim, carregava consigo uma serenidade que vinha da consciência de ter vencido a adversidade. 

Com o tempo, a comunidade italiana ao redor se organizou. Construíram igrejas maiores, fundaram sociedades de auxílio mútuo e até pequenas escolas mantidas pelos próprios colonos. As festas religiosas, como a de São José, reuniam famílias inteiras, que levavam vinho caseiro, polenta e queijos produzidos nos quintais. Nessas ocasiões, Settimo sentia novamente a Itália presente, não nas paisagens, mas nas vozes e gestos dos conterrâneos.

Os anos, porém, também cobraram seu preço. Epidemias de gripe e febre amarela rondaram a região. Settimo perdeu amigos, vizinhos e até parentes, lembrando-se sempre do aviso que ouvira décadas antes: as fazendas estavam distantes dos médicos, e muitas vezes a doença levava os mais fortes sem dar chance de resistência. Ele próprio enfrentou febres que o deixaram de cama, mas sobreviveu, sustentado pela robustez construída em anos de labuta.

Ao aproximar-se dos cinquenta anos, via os filhos trilharem caminhos próprios. Um se tornara tropeiro, transportando mercadorias entre vilas; outro abriu uma pequena venda, misturando português e vêneto com clientes brasileiros; a filha mais velha, como sonhara, tornou-se professora numa escola rural. Para Settimo, cada conquista deles era uma prova de que a travessia do oceano não fora em vão.

No fundo da memória, ainda guardava as imagens das Dolomitas cobertas de neve, da aldeia de Sappade onde nascera, dos campos pedregosos que nunca deram sustento. Mas agora essas lembranças não lhe traziam dor. Pelo contrário, davam-lhe a medida da distância percorrida. Do sétimo filho sem herança, condenado a um destino estreito, erguera-se um homem com terra, família e raízes fincadas em outra pátria.

Quando a primeira década do novo século terminou, Settimo Manfrino já podia olhar para trás e reconhecer: sua vida era o retrato de uma geração que abandonara a miséria da Europa para reinventar-se nas planícies tropicais. Não tivera facilidades, não fora poupado da dureza, mas alcançara aquilo que seus pais jamais imaginaram possível: um futuro.

As décadas de 1920 e 1930 trouxeram para Settimo Manfrino o tempo da colheita tardia da vida. Ele já passava dos cinquenta anos, os cabelos grisalhos se confundindo com o pó vermelho da terra, as mãos deformadas pelos calos de décadas de trabalho. Caminhava devagar entre os cafezais, apoiado num bastão, mas sua presença ainda impunha respeito entre os vizinhos. Era um dos colonos mais antigos da região, daqueles que haviam chegado quando Ribeirão Preto ainda não passava de uma promessa e a terra era apenas selva e lavoura bruta.

O café continuava sendo o sustento, mas o mundo ao redor começava a mudar. A ferrovia levava as sacas até Santos, os armazéns das vilas cresciam, e o dinheiro circulava com mais frequência. Alguns imigrantes prosperaram, tornando-se grandes fazendeiros. Settimo permaneceu como pequeno proprietário, fiel à rotina, sem jamais aspirar ao luxo. A ele bastava ter garantido terra para plantar, casa para os filhos e a segurança de que a miséria das Dolomitas não se repetiria em sua linhagem.

Na década de 1920, viu os filhos formarem famílias próprias. A filha professora mudou-se para uma vila maior, onde lecionava para crianças de diferentes origens — filhos de italianos, portugueses, espanhóis e brasileiros pobres. O filho comerciante ampliou sua venda, que já era ponto de encontro de toda a colônia, lugar onde notícias da Itália e do Brasil se misturavam em vozes altas e risadas. O tropeiro, inquieto como sempre, tornou-se carreteiro, transportando mercadorias entre fazendas e cidades. Cada um seguiu seu destino, mas todos retornavam nas festas religiosas e nos domingos de missa, quando a mesa da casa de Settimo voltava a encher-se de vozes e de pão.

O ano de 1929 trouxe um golpe inesperado. A crise econômica mundial derrubou o preço do café. Sacas inteiras foram queimadas ou lançadas fora, e os pequenos produtores viram o valor de sua produção se reduzir a nada. Settimo, já envelhecido, sofreu o impacto, mas resistiu com a mesma tenacidade de sempre. Plantou milho e feijão nos espaços entre os cafezais, garantiu comida antes de pensar em lucro. Os filhos o ajudaram a atravessar os anos difíceis, dividindo recursos e apoiando-se mutuamente. A pobreza ameaçou, mas não venceu.

Com a Revolução de 1930 e a instabilidade política, o interior paulista viveu tempos de tensão. Os colonos ouviam falar de conflitos e de mudanças nas cidades, mas no campo a vida seguia marcada pelo ritmo das colheitas. Settimo já não trabalhava como antes; suas forças haviam diminuído. Passava mais tempo sentado à sombra de um pé de jabuticaba, observando os netos correrem pelo quintal. O sorriso das crianças lhe trazia uma paz que não conhecera na juventude.

Naqueles anos, começou a recordar com mais frequência a aldeia de Sappade. Pedia aos filhos que lhe descrevessem novamente as cartas enviadas por parentes que haviam ficado na Itália. Lia nelas a fome e a guerra que ameaçavam a Europa, e sentia uma estranha mistura de tristeza e alívio. Tristeza por saber que sua terra natal continuava a sofrer; alívio por ter escolhido partir em 1887, garantindo aos seus uma vida diferente.

Ao final da década de 1930, Settimo já não saía mais de casa com frequência. Caminhava pouco, falava menos, mas ainda tinha nos olhos o brilho dos que sabem que venceram a luta essencial da vida. Vivia cercado de filhos e netos, cada um carregando nos gestos uma parte da Itália que ele trouxera consigo.

Quando morreu, por volta de 1938, aos sessenta e oito anos, a comunidade inteira se reuniu. O corpo foi velado na capela erguida pelos imigrantes, e a missa atraiu colonos de todas as redondezas. Muitos o consideravam símbolo de uma geração que atravessara o oceano sem nada e deixara no Brasil raízes profundas. Sua sepultura, simples e de cruz de madeira, foi coberta por coroas de flores trazidas pelos vizinhos e parentes.

Settimo Manfrino partira, mas sua vida já estava impressa no solo vermelho do interior paulista. Os filhos e netos dariam continuidade ao que ele começara, misturando o sangue das Dolomitas ao destino brasileiro. A travessia de 1887, feita por um rapaz franzino de dezessete anos, agora se revelava como o marco fundador de uma nova linhagem. Entre as montanhas pedregosas da Itália e os cafezais do Brasil, Settimo construíra uma ponte eterna.

terça-feira, 15 de julho de 2025

El Talian – ‘Na léngoa che no se perde


El Talian – ‘Na léngoa che no se perde


El Talian no el ze mia stà soltanto ‘na maniera de parlar. Lu el ze stà, un prinssìpio, ‘na forma de restar vivi in tera straniera. No ze mia un dialeto: lu el ze un fil che unisse generassion, un sùpio che vien da lontan, che passa par la boca dei veci, par le cusine fumeganti, par le famèie numerose, par le preghiere bisbiglià prima de ndar a dormir. La ze ‘na léngoa nata in tera véneta ma crià in tera brasilian, mescolà con el sudor del laoro e con la fame de ‘na vita mèio.

El Talian, fin da pochi ani, no el zera mia stà insegnà in scola. Se imparava con le récie, stando ziti in canton, sentindo le paroe che scampava tra i veci mentre i batevla manara, mentre la nona impastava, mentre el nono parlava de le robe passà. Ogni parola ze un segno, un resto de ‘na stòria che i emigranti no ga mia volesto perder. No importa se i fiòi ghe diseva che no serviva pì, che el portoghese el zera la léngoa del futuro. Loro, i veci, continuava a parlarlo, non par orgòio, ma par amore. Parché el Talian, par loro, la zera casa. E casa no se abandona.

El Talian ze stà la voce de chi no gavea altro. Quela léngoa la zera tuto quel che restava a chi ga lassà indrio i paesi, le campagne, le montagne del Véneto. El brasilian i lo dovea imparar, ma el Talian el zera già so, drento. El zera la léngoa che se parlava par ciamar i fiòi, par lodar el Signor, par contar le pene, par rider e par star uniti. Zera la léngoa che restava dopo la morte, ´ntei funerài silensiosi, ´ntei testamenti deti a vose, ´ntei nomi scriti sui croxi de legno.

Con el tempo, tante paroe se le ga perse. Tante altre se le ga trasformà. Ma el senso, el fondo, el cuor de la léngoa la ze restà. La ze restà ´nte la forma de contar ‘na stòria, ´nte la maniera de saludar, ´nte la forma de dir “ghe penso mi”. Anca quando no se parla pì ogni zorno, el Talian resta ´nte la carne, nte la memòria, ´nte le scelte pìcole. Lu el ze come ‘na mùsica che no se scorda, che torna in testa quando se meno aspeta.

No serve che tuto el mondo lo capisse. Basta che un, un solo, el lo continuì a portar. Basta che ‘na nona la conti ‘na olta ancora, che un zòvane el lo scriva, che un libro el venga stampà, che ´na comunità el se trovi assieme par cantar. El Talian no morirà. El se trasforma, el riposa, el va in fondo, ma el no sparisse mia. Parché el Talian lu el ze la léngoa de chi ga resistesto, de chi ga costruì tuto con le man, de chi no s’é mia desmentegà da ndove el vien.

No ze orgòio. Ghe ze fedeltà. No ze folclore. Ghe ze verità. El Talian ze la prova che ‘na léngoa no la vive solo finché la se parla, ma finché la se ricorda, finché la se sente vera drento. E finché ghe sarà memòria, finché ghe sarà ‘na famèia che lo ciama “nostro modo de parlar”, finché ghe sarà qualcuno che lo scrive, el Talian continuerà a esister. Parché el Talian el ze Brasil, ma lu el ze anca Véneto. Lu el ze campo, lu el ze sudor, lu el ze canto. Lu el ze dolore e cuor. Lu el ze radise. Lu el ze vita.

Luiz C. B. Piazzetta



segunda-feira, 9 de junho de 2025

A Liberdade de Cismon


A Liberdade de Cismon
Um romance de esperança, terra e destino


Capítulo I — A Voz de Deus no Vento


Quando Alessandro Bellarossi escreveu à família de Cismon, não o fez apenas com a pena — mas com a alma inteira. Cada palavra daquela carta parecia gotejar suor, esperança e o eco de uma travessia ainda recente. Mais do que uma mensagem, era um testamento de fé: a promessa sul-americana não era mito, era chão — e ele já o havia pisado. Vinte dias antes, com a mulher Annetta e os três filhos ao lado, Alessandro finalmente tocara a terra escura e úmida da Colônia Dona Isabel, aninhada nas brumas altas do Rio das Antas, onde a mata parecia antiga como a própria criação.

Ele viera de um lugar onde os vales mal respiravam entre as rochas dos Alpes Vênetos — um vilarejo modesto e esmagado pela indiferença do tempo e a ganância dos senhores da terra. Ali, mesmo depois da unificação da Itália, a liberdade seguia sendo apenas uma palavra dita em voz baixa, nas esquinas. Os ricos ganharam bandeiras e exércitos. Os pobres, dívidas, fome — e filhos demais para alimentar.

A travessia não foi apenas uma viagem: foi um corte profundo entre dois mundos. O Vapor Roma, abarrotado de camponeses, zarpou de Gênova como um navio de promessas — mas flutuava sobre um oceano de incertezas. Na segunda semana, o cheiro de corpos e medo era mais forte que o sal do mar. Morreram quatro crianças e duas mães. As preces sussurradas à noite misturavam-se aos lamentos abafados nas redes, enquanto o balanço do casco lembrava a todos que a terra firme era um privilégio distante.

Mas Alessandro não se deixava vencer. Alimentava a família com pão duro e coragem. E, quando avistou as primeiras araucárias, altas como campanários e mergulhados em névoa, soube, com uma clareza que tocava o fundo da alma, que tinha chegado. Não a um fim — mas a um começo.

Foi então que se recordou das palavras do velho padre Giustino, ditas numa manhã fria, antes da partida:

— “Às vezes, a voz de Deus sopra do Sul.”

E naquele instante, entre a cerração da serra gaúcha e os gritos dos homens abrindo picadas na mata com machados rombudos, Alessandro ouviu essa voz. Não era alta, nem miraculosa. Mas era clara. E dizia, simplesmente: "Fique. Aqui se planta o destino."


Capítulo II — Terra Prometida

Colônia Dona Isabel ainda era um esboço de civilização — uma fronteira onde tudo estava por fazer. Clareiras abertas à machadada rasgavam a mata como feridas frescas. Os caminhos eram lamaçais trêmulos, moldados pelas rodas de carroças e pelas botas de imigrantes. A terra, embora selvagem, era deles. Pela primeira vez na vida, Alessandro podia chamar um pedaço do mundo de seu.

Cem hectares por família. Um sonho inimaginável nas colinas magras do Vêneto. E agora, ali, entre troncos de araucária e o sussurro distante de bugios, ele e os outros colonos erguiam casas com os próprios braços. Cada tábua pregada era uma oração. Cada parede, um escudo contra o medo do desconhecido. A farinha era feita moendo milho em pedras improvisadas. O pão tinha gosto de suor, mas também de liberdade.

A carta que Alessandro escrevera ao pai, semanas antes, começava com entusiasmo quase infantil:

"Bea posission, tera fèrtile, ària sana, e il governo assiste noialtri."

E pela primeira vez na vida, ele não exagerava. O Império do Brasil, ansioso por povoar o sul, fornecia sementes, ferramentas rudimentares, bois magros, e o mais precioso de todos os recursos: tempo. Nove meses de auxílio antes que a terra exigisse resposta. Nove meses para transformar selva em lavoura, barracos em lar. Era pouco, mas era algo. Era mais do que a pátria lhes dera em séculos.

Lucia, sua esposa, começava a sorrir de novo — ainda tímida, como quem teme a própria esperança. Os pés estavam sempre cobertos de lama até os tornozelos, os dedos inchados de tanto lavar e carregar, mas os olhos… os olhos haviam reencontrado o brilho que ela tivera no altar de Cismon. Havia algo na mata, talvez o ar espesso da manhã, que lhe dava ânimo. Talvez fosse o silêncio sem fome.

Matteo e Elvira, seus dois mais velhos, corriam pelos campos como animais livres. Exploravam o novo mundo como se fosse um quintal de infância eterna, sem muros nem limites. Criavam cabanas com galhos e imitavam o som dos tropeiros. Chamavam os vizinhos alemães de “gigantes loiros” e riam com sotaques misturados. Elvira falava de plantar flores silvestres. Matteo, de construir uma roda d’água.

Até o pequeno Paolo, nascido na travessia em meio ao cheiro de sal, enjoo e orações sufocadas, parecia já parte da terra. Tinha os pulmões fortes, os olhos atentos — e as mãos cerradas como se segurassem já, com teimosia, as raízes daquele novo mundo.

À noite, quando o fogo de lenha aquecia o chão de terra batida e o vento das araucárias sussurrava entre as frestas da madeira crua, Alessandro olhava ao redor e pensava: "Não é o paraíso. Mas é um começo. E o começo, às vezes, é mais sagrado que o fim."


Capítulo III — Giacomo e o Barro de Sangue

Chegou ao entardecer, quando o sol se escondia lento por trás das cristas da Serra e o céu se tingia de cobre e vinho. A carroça improvisada descia aos solavancos o trilho escavado no barro, puxada por dois bois magros e coberta por uma lona manchada de sal e tempo. Em cima, com os olhos cavados pela travessia e a barba crescida até o peito, vinha Giacomo Bellarossi, o irmão mais novo de Alessandro.

Lucia foi a primeira a vê-lo, aparando água com um balde no córrego. Correu. E gritou. Os filhos vieram atrás, descalços e sujos, como cães de matilha reencontrando o dono ausente. Alessandro largou o machado onde estava e caminhou, ainda incrédulo, até o irmão.

Abraçaram-se em silêncio por longos minutos. O abraço dos que carregam a mesma cruz e a mesma fé — a fé de que o outro não teria vindo se o destino ainda fosse incerto. Mas os olhos de Giacomo não brilhavam. Não como os de quem encontrou paz, mas como os de quem fugiu de uma guerra.

— “Cismon está mais vazio, Sandro. E mais velho. O padre faleceu. Mamma ficou. Disse que o coração dela não atravessaria o mar... e talvez tenha razão.”
— “Você vem por esperança... ou por desespero?”
— “Qual a diferença?”

Instalaram-no na pequena cabana de tábuas atrás da casa principal. Na primeira semana, Giacomo pouco falava. Ajudava no que podia — cerrava madeira, cavava valas, cuidava das crianças quando Lucia precisava ir ao rio. Mas havia nos seus gestos uma tensão dura, como se esperasse o chão desabar a cada passo.

E então veio o dia da desgraça.

Foi numa manhã encharcada de neblina, quando Giacomo seguiu com Matteo ao campo mais baixo, junto ao limite da propriedade, para levantar cercas. Um grupo de colonos vizinhos, de origem alemã, trabalhava do outro lado da linha marcada. Houve palavras. Depois, gritos. Depois, o som seco de um murro.

Matteo voltou correndo, aos prantos, coberto de lama e sangue. Giacomo havia sido golpeado na cabeça com um pedaço de madeira. Estava caído no barro, imóvel, o rosto desfigurado por um corte profundo na testa. Os vizinhos diziam que ele avançara primeiro. Que fora tomado por um acesso de fúria.

— “Disse que a terra era nossa, que o marco estava errado. Xingou o nome de Deus. Depois pegou o facão...”

Alessandro chegou a tempo de impedir o linchamento. Levou o irmão de volta arrastado, enquanto Lucia gritava ordens e Elvira corria buscar água quente. Paolo berrava no berço, sem entender o caos.

Durante três dias, Giacomo ficou entre a febre e a sombra da morte. Delirava em italiano, murmurava o nome da mãe, contava os filhos que não teve. Alessandro não saiu do seu lado. Lucia rezava.

Na noite do quarto dia, quando os grilos voltaram a cantar, ele abriu os olhos.

— “Tanta terra, Sandro… e ainda assim… brigamos por um palmo.”
— “Talvez não seja a terra, Giacomo. Talvez ainda carreguemos dentro de nós as correntes de onde viemos.”

Foi então que ambos entenderam: a terra era fértil, sim. Mas também selvagem. E o sangue, uma semente que não podiam deixar brotar. 


Capítulo IV — O Arado e a Promessa

A cicatriz na testa de Giacomo não desapareceu. Tornou-se uma linha torta e roxa, cruzando a sobrancelha como um lembrete gravado a ferro: até mesmo a terra prometida exige sangue em troca de paz.

Nos dias seguintes à briga, Alessandro reuniu os vizinhos — italianos, alemães e alguns poucos luso-brasileiros — sob o velho galpão do coronel Gasparini, o administrador da colônia. Era preciso mais que madeira e barro para se construir um povoado. Era preciso estabelecer respeito, regras simples, e sobretudo, confiança.

— “Ninguém veio do outro lado do oceano pra começar outra guerra aqui,” disse Alessandro, de pé sobre um caixote, a voz rouca e carregada de sotaque. “Viemos pra construir algo que nossos filhos não precisarão fugir pra encontrar.”

Não houve aplausos. Apenas acenos de cabeça. Mas no dia seguinte, o colono Hans Jäger — o mesmo que ameaçara Giacomo — deixou na varanda dos Bellarossi uma cesta com pão preto e um saco de sementes de centeio.

Na lavoura, o barro começou a se transformar em sulcos. O arado emprestado dos colonos vizinhos gemia atrás dos bois, abrindo veias na terra escura. Giacomo, com a cabeça coberta por um chapéu velho de aba larga, era o primeiro a erguer-se com o sol e o último a largar a enxada. Como se tentasse redimir-se diante dos deuses da nova terra.

Lucia cuidava da roça de feijão e das galinhas, e ainda encontrava tempo para ensinar Elvira a ler, usando um velho catecismo que trouxera escondido entre as roupas da travessia. Matteo crescia rápido, com os ombros já duros como madeira. Paolo aprendia a andar sobre a terra batida da varanda, tropeçando nos degraus de tábua e rindo como se o mundo fosse apenas aquilo: sol, milho, e o cheiro da mãe.

No final do outono, antes que os ventos frios cortassem a serra como lâminas, veio a primeira colheita. Pequena, modesta. Mas deles. Os sacos de milho e batata-doce foram levados ao galpão comum, onde uma tábua improvisada de madeira servia de altar para os agradecimentos. O padre Celestino, recém-chegado de Caxias, celebrou uma missa ao ar livre, sob uma cruz cravada entre dois pinheiros bravos.

— “A terra é dura, meus filhos. Mas é virgem. E como todas as virgens, precisa de paciência, cuidado... e fé,” disse ele, enquanto o vento soprava entre as tábuas do telhado ainda inacabado.

Naquela noite, houve música. Um velho violino, duas gaitas e vozes roucas cantando canções do Vêneto. Os risos ecoaram pela mata. Pela primeira vez desde que cruzaram o oceano, os Bellarossi se permitiram dançar. Mesmo Giacomo. Sob as estrelas, com um copo de vinho ácido nas mãos e as calças sujas de terra, ele olhava para o céu como se pedisse perdão por ter duvidado.

Foi nesse momento que Alessandro pegou uma estaca, gravou nela o nome da família — "Bellarossi, 1888" — e a cravou junto à entrada do terreno.

Era mais que um marco de posse.

Era uma promessa.


Capítulo V — A Sombra na Serra

O inverno chegou silencioso, como um cão de caça espreitando ao longe. Nas encostas da Serra Gaúcha, o frio descia pelas árvores como uma névoa viva, cobrindo as plantações com um véu de orvalho gelado e apertando os ossos dos mais velhos como um torno invisível.

O milho secava antes do tempo. O feijão apodrecia na palha. E os bois, que antes eram músculos em movimento, agora mirravam as costelas sob a pele como esqueletos ambulantes.

Lucia acordava tossindo, enrolada num xale remendado com linha de tear. Paolo — que mal começara a andar — tinha febres noturnas. Alessandro cavava valas para escoar a água que se acumulava no terreno, mas era como tentar esvaziar o oceano com uma colher. E quando a comida começou a faltar nas mesas dos vizinhos, a sombra mais temida se insinuou pelas frestas das janelas: a dúvida.

— “E se a promessa for mentira?” cochichavam alguns nas reuniões noturnas.

— “E se o imperador nos abandonou como fizeram os senhores da Itália?”

E então, chegaram os rumores.

Diziam que em Porto Alegre o império tremia. Que os abolicionistas exigiam o fim do trabalho escravo, e que os fazendeiros, temendo perder a mão-de-obra, olhavam com desconfiança para os imigrantes livres que agora recebiam terras e apoio do governo.

A tensão subia como a fumaça dos fogões a lenha. Alessandro sentia no ar: algo estava por vir.

Na segunda semana de julho, Gasparini — o velho administrador da colônia — apareceu a cavalo, encharcado e com o rosto mais branco que as neves do Vêneto. Trazia más notícias: os auxílios seriam suspensos.

— “A ordem veio da Corte. Dizem que o erário está seco. Que é preciso cortar as despesas nas colônias.”

O silêncio que se seguiu à frase pesava mais que o frio que entrava pela porta escancarada do galpão.

— “Mas e os nove meses de ajuda prometidos?” perguntou um dos colonos alemães, franzindo a testa.

Gasparini não respondeu. Apenas puxou o capote e saiu. Os cascos do cavalo sumiram no barro como se a notícia quisesse se esconder.

Lucia apertou a mão de Alessandro. Ele não disse nada. Apenas olhou para os filhos, que brincavam com gravetos perto do fogo.

Foi naquela noite, depois que todos dormiram, que ele tomou uma decisão.

No silêncio da cozinha, sob a lamparina a óleo, puxou o velho caderno de anotações que trouxera da Itália — a única herança do pai. Ali, entre receitas de vinho e contas de colheitas, ele começou a rascunhar um plano. Não um plano para resistir. Mas para prosperar, mesmo sem o império, mesmo sem promessas.

Ele escreveria aos parentes que ainda estavam na Itália. Mandaria sementes, relatos, fotografias. Organizaria uma cooperativa rudimentar com os vizinhos, para que os que colhessem mais sustentassem os que colhessem menos.

— “A terra nos quer aqui,” murmurou ele para si mesmo, como se confessasse um segredo à noite.

No dia seguinte, reuniu dez homens no campo aberto atrás da capela. Era o começo de uma nova fase: sobrevivência pela união. Estavam sozinhos agora. Mas não impotentes.

Na entrada da casa, Giacomo afiava uma enxada. As faíscas saltavam como vagalumes no fim da tarde. Matteo, já com treze anos, construía uma armadilha para tatus com madeira de galhos. E Elvira, entremeando letras no chão com um graveto, começava a escrever o nome da mãe.

Lucia, olhando tudo da janela, apertou Paolo contra o peito e sussurrou:

— “A sombra pode até vir, mas nós... somos feitos de luz.”


Capítulo VI — Fumaça na Capela

O sino da capela soou três vezes — um toque lento, fúnebre, que não anunciava missa, mas luto.

A fumaça ainda dançava entre os pinheiros quando Alessandro chegou, o coração aos pulos e a enxada nos ombros. A capela de madeira, erguida com doações e esforço coletivo, estava parcialmente queimada. Não fora consumida por completo, mas o altar estava negro de fuligem, os bancos enegrecidos, e a imagem da Virgem havia caído, rosto rachado, olhos voltados ao chão.

Padre Giustino, pálido e ofegante, caminhava em círculos diante da porta semiaberta. Ao seu lado, Giacomo cerrava os punhos com tanta força que os nós dos dedos pareciam ossos de vidro.

— “Cheguei cedo para rezar a missa… e encontrei isso.”

Alessandro passou a mão pelo rosto. Havia um cheiro agridoce no ar — madeira queimada misturada ao óleo das velas e algo mais: ódio.

— “Foi fogo posto?” perguntou, sem rodeios.

Giacomo respondeu por entre os dentes:

— “Não foi o acaso que acendeu esse inferno.”

Naquela noite, a colônia inteira se reuniu sob o galpão dos Brandt — os primeiros alemães que chegaram ali antes mesmo dos italianos. Havia tensão nos olhos, medo nos murmúrios e uma pergunta que atravessava todos os silêncios: quem faria isso... e por quê?

Padre Giustino levantou-se.

— “Estamos sendo vigiados. Há gente que não nos quer aqui. Nem os nossos cultos, nem nossas escolas. Muito menos nosso progresso.”

Gasparini, o administrador, chegou tarde, com dois soldados brasileiros a cavalo e um olhar incomodado. Tentou acalmar os ânimos com promessas: o governo investigaria, a segurança seria reforçada, nada justificava atos de vandalismo. Mas ninguém acreditava de fato. O que era uma capela queimada diante da vastidão do império?

Alessandro, de pé junto à porta, disse em voz baixa, mas firme:

— “Se querem nos intimidar, erraram de povo. Viemos de uma terra que ardeu em guerras e fome. Sobrevivemos ao mar, à peste e à lama. Não será o fogo de covardes que nos fará recuar.”

As palavras dele foram como brasas caindo na palha seca do ânimo dos colonos. Matteo, que escutava com os olhos arregalados, apertou o punho do pai em silêncio.

Na manhã seguinte, começaram a reconstruir a capela.

Cada homem trouxe uma tábua, um prego, um martelo. Cada mulher, uma vela ou uma imagem salvada do fogo. Até as crianças ajudaram, catando pedras para a fundação. Padre Giustino sorriu pela primeira vez em dias.

Lucia, enquanto sovava o pão com farinha minguada, disse baixinho a Alessandro:

— “Eles tentaram apagar a fé, e acenderam a coragem.”

No entanto, nem todos reagiram com força.

Famílias começaram a falar em desistir. Uma carroça carregada deixou a colônia ao entardecer. Eram os Cortese, que não resistiram à sequência de perdas: um filho com febre tifoide, uma colheita perdida, e agora… medo.

Mas quando a carroça passou pelo campo de Alessandro, ele ergueu Paolo no colo e acenou. Não em despedida, mas em advertência.

— “Se partirmos cada vez que o mundo treme, nunca teremos chão firme.”

Na noite em que a nova cruz foi erguida sobre o telhado da capela, os sinos tocaram outra vez. Não de luto. Mas de resiliência.

Sob o céu estrelado do sul, enquanto os colonos cantavam em vozes cruzadas — italiano, alemão, português —, uma certeza crescia em Alessandro: a colônia não era mais um abrigo, era uma pátria feita de barro, fé e feridas.

E toda pátria, cedo ou tarde, exige seus heróis.


Capítulo VII — As Vozes do Silêncio

O verão vinha quente demais, seco demais, e os ventos do Sul que antes traziam alívio agora sopravam apenas poeira. A terra endurecia. As plantações de milho encolhiam sob o sol impiedoso. E com a estiagem, vinha outro mal: o silêncio.

Não o silêncio da paz, mas o que precede a explosão.

Desde o incêndio da capela, as noites na Colônia Dona Isabel tornaram-se longas demais. Os homens recolhiam-se cedo, com espingardas encostadas à cabeceira. As mulheres cochichavam atrás das cortinas. Até as crianças pareciam caminhar com mais cuidado — como se seus pés pudessem acordar um monstro adormecido.

Giacomo passava mais tempo nos campos do que em casa. Trabalhava com fúria. Batia enxadas no solo como se pudesse vingar-se dele. Não falava do incêndio. Nem da ausência crescente de Gasparini, o administrador. Apenas cerrava os dentes.

Alessandro observava tudo com inquietação. Cada gesto calado era um alerta. Um povo que deixa de falar está à beira do colapso — ou da revolta.

Foi Matteo quem primeiro percebeu a diferença. Voltava da casa de um colono alemão, Hans Müller, quando ouviu vozes abafadas vindas do paiol. Era noite. Lá dentro, sombras agitavam-se sob a luz fraca de uma lamparina. Reconheceu uma: o próprio Giacomo.

— “Eles vêm por nós”, dizia uma voz. “Querem nossa terra. Primeiro queimam a capela, depois intimidam os pequenos. Aos poucos, vão nos forçando a recuar.”

— “Precisamos agir antes que seja tarde.”

Matteo prendeu a respiração. Um plano estava sendo armado. E seu pai, Alessandro, nada sabia.

Na manhã seguinte, Matteo contou tudo. O rosto de Alessandro ficou duro.

— “Se partirmos para o confronto sem provas, viramos bandidos. Se calarmos, viramos cúmplices da nossa própria destruição.”

Lucia, que escutava em silêncio, disse apenas:

— “Talvez devêssemos falar com quem ainda escuta.”

No dia seguinte, Alessandro selou um cavalo e partiu para Nova Palmira, uma vila distante três léguas, onde havia um posto imperial e um delegado. Levava consigo uma cópia da carta de doação das terras, o relatório do padre Giustino sobre o incêndio, e o diário do senhor Cortese, deixado para trás — onde se lia uma frase marcante: “Fomos atacados pelo medo, não pelo inimigo.”

Foram dois dias de viagem. Na vila, encontrou o delegado Abílio Rocha: um homem negro, de bigodes finos e olhar calculista. Escutou tudo, mas manteve-se impassível.

— “O senhor sabe que o império tem os olhos voltados para o Norte. Aqui, somos retaguarda, senhor Bellarossi. Terra de silêncio. E de esquecidos.”

— “Então que este silêncio exploda,” respondeu Alessandro. “Porque nós não seremos esquecidos. Nem calados.”

Rocha ergueu os olhos e pela primeira vez sorriu.

— “O senhor é teimoso. Vai dar trabalho... Mas gosto de gente que não abaixa a cabeça.”

Voltou com ele um sargento e dois auxiliares. Mas o que Alessandro não esperava era a recepção tensa ao chegar.

Na sua ausência, Giacomo e outros homens haviam confrontado um grupo de guardas de terras — brasileiros contratados por um fazendeiro das redondezas, que alegava sobreposição de fronteiras com a colônia. Houve empurrões, tiros no ar, e um ferido: o jovem Pietro Moretti, baleado na perna.

A chegada do delegado evitou algo pior. Reuniu os líderes das famílias, os alemães e italianos juntos, e disse com clareza:

— “Se há disputa de terra, há lei. Se há crime, há justiça. Mas se houver guerra... só haverá mortos.”

Naquela noite, a colônia dormiu como quem sobreviveu a um terremoto.

Lucia acendeu uma vela na nova capela e chorou em silêncio. Paolo, já engatinhando, brincava com um graveto no chão de terra batida. Matteo olhava o céu e buscava entre as estrelas uma que lhe dissesse que tudo ficaria bem.

E Alessandro, pela primeira vez desde que chegou à América do Sul, sentiu-se pequeno.

Mas também entendeu que a liberdade — como a terra — só se conquista com raízes fundas e espinhos no caminho.


Capítulo VIII — As Cinzas e o Aço

O amanhecer seguinte não trouxe alívio, apenas a constatação de que tudo mudara. A bala na perna de Pietro Moretti tornara-se símbolo de algo maior: a inocência da colônia tinha sangrado. E não havia como voltar atrás.

Giacomo caminhava de um lado a outro na varanda de sua casa, os olhos vermelhos de vigília e raiva. A mãe de Pietro, dona Celina, gritara com ele na noite anterior.

— “Você levou meu filho pra guerra! Não é por terra que se mata!”

Ele não respondeu. Apenas fechou os punhos e virou o rosto. A dor, quando vinha, ele engolia em silêncio.

Enquanto isso, Alessandro passava de casa em casa, tentando acalmar os ânimos, falando com os chefes de família. Trazia palavras de conciliação, mas também alertas. A chegada do delegado Rocha fora um passo, não uma vitória.

— “Não temos inimigos entre nós”, dizia. “Mas há quem queira que tenhamos. E isso... é mais perigoso do que o fogo ou o aço.”

Na igreja reconstruída às pressas, o padre Giustino reuniu os colonos para uma missa de reconciliação. Havia mais ausências do que presenças. Entre os que vieram, alguns cruzavam os braços; outros não rezavam. Era uma comunidade fraturada, como barro rachado ao sol.

Na homilia, o padre falou de Jó. De perdas, de provas, de fé no meio da desolação.

— “Mas até Jó”, disse ele com a voz trêmula, “teve amigos que se sentaram ao seu lado no chão. E às vezes, mais importante que entender a dor... é não deixá-la sozinha.”

No fim da missa, Matteo observou Elvira acendendo uma vela por Pietro. Era pequena, mas firme. Havia algo novo em seus olhos. Não era medo — era fúria contida. Uma menina de dez anos que já aprendera que até a infância pode arder nas chamas do mundo dos homens.

Na tarde seguinte, Alessandro foi chamado à casa de Hans Müller. Lá, encontrou um mapa — antigo, desbotado, mas oficial. Mostrava as delimitações das terras imperiais na região do Alto Taquari.

— “Olhe aqui”, disse Hans, apontando com o dedo grosso e calejado. “As terras do fazendeiro Fontoura param antes do nosso rio. A colônia está segura. O que ele quer... é poder. Não hectares.”

Alessandro assentiu. Aquilo não era apenas sobre posses — era sobre controle. Fontoura queria que os italianos soubessem que estavam sob sua sombra. Um jogo de intimidação sutil, pontuado por violência dos jagunços e por rumores espalhados entre os nativos. Uma tática antiga.

Mas os colonos, sem saber disso, começavam a se armar.

— “Precisamos agir antes que haja outro Pietro. Ou algo pior.”

Na semana seguinte, Alessandro partiu outra vez, agora para Caxias. Lá, havia uma sede da Intendência Provincial. Levaria o mapa. E sua palavra.

Levou também Matteo. O menino insistira. Queria aprender. Queria proteger. Não era mais criança — era filho de colono, e isso mudava tudo.

A estrada era poeirenta, cruzando campos abertos e matas cerradas. Dormiram em cocheiras, comeram o que levavam nos bolsos: pão de milho, queijo duro, água morna. Em cada parada, Alessandro perguntava sobre Fontoura — e ouvia histórias. Terras cercadas à força. Grupos expulsos. Documentos desaparecidos.

Caxias surgiu ao longe como uma promessa — e um risco. Na sede do governo local, foram recebidos com frieza. O Intendente, um homem chamado Amaral, vestia linho branco e falava com palavras medidas.

— “Senhor Bellarossi, sabemos da importância dessas colônias. Mas sabemos também das dificuldades que surgem quando povos se instalam sem compreender os limites da ordem.”

— “E o senhor chama de ordem o incêndio, a ameaça, a bala que perfura a perna de um menino?”

O Intendente não respondeu de imediato. Passou os olhos pelo mapa.

— “Essas terras foram traçadas por engenheiros imperiais. Se há conflito... será analisado. Mas tenha paciência. O Brasil é vasto. E lento.”

Ao saírem, Matteo perguntou:

— “Pai... ele nos ouviu?”

— “Ouviu. Mas não nos escutou.”

Na volta à colônia, o clima era outro. Pietro começava a andar com ajuda de uma bengala feita por Elvira. Os homens, por ordem de Giacomo, cavavam trincheiras discretas atrás das casas, como se se preparassem para uma guerra que ninguém queria, mas todos temiam.

E numa manhã em que o vento voltava a soprar do Sul — trazendo o cheiro fresco de pinho e umidade — chegou um mensageiro.

Trazia uma carta. Vinha de Porto Alegre. Era um comunicado oficial.

E nele, dizia-se que o Ministério da Agricultura, sob pressão de diversos representantes, enviaria um agrimensor ao local em trinta dias para reavaliar as fronteiras da Colônia Dona Isabel.

Lucia segurou o papel nas mãos e chorou. Pela primeira vez, não era medo. Era alívio.

Trinta dias. Um mês para resistir.

O jogo mudava. Mas ainda era de risco.


Capítulo X — A Medida de Todas as Coisas

O barulho dos cascos chegou antes da poeira.

João Vicente Lisboa apareceu na entrada da colônia numa manhã fria, envolto num sobretudo de lã escura, seguido por dois soldados e um ajudante mulato que carregava pranchetas e um nível topográfico.

Ele não sorriu.

Seu olhar percorreu a clareira como se estivesse mapeando almas, não hectares. Os colonos, em silêncio, deixaram os machados descansarem. Os rostos estavam sujos, as roupas remendadas, mas os olhos... os olhos ardiam com dignidade.

Alessandro foi ao encontro dele, acompanhado por Hans Müller e Giacomo. Ao vê-los, João Lisboa desmontou lentamente. Estendeu a mão — mas só depois de examinar.

— “Sou João Vicente Lisboa. Oficial agrimensor, designado pelo Império. Trago as demarcações. Mas antes... quero ouvir a verdade.”

Era o início.

Instalado numa das poucas casas de alvenaria improvisada, Lisboa começou o trabalho como se estivesse interrogando um tribunal invisível. Recolheu testemunhos. Analisou documentos. Visitou lotes. Escutou o padre. Visitou a cruz da criança morta com sarampo — e não disse uma palavra, mas permaneceu ajoelhado mais tempo que o esperado.

Durante três dias, anotou. Mediu. Comparou mapas.

Na noite do quarto dia, alguém tentou incendiar o galpão onde dormia. O fogo foi contido a tempo — mas um dos soldados ficou com o rosto queimado. Lisboa não demonstrou medo. Apenas ordenou que montassem guarda armada nas trilhas.

No quinto dia, convocou uma assembleia.

Foi ao pé da grande figueira, onde os colonos realizavam suas missas ao ar livre. Mais de cem pessoas estavam reunidas — crianças no ombro dos pais, velhos sentados em troncos, mulheres com olhos fixos como pedra.

João Lisboa subiu num caixote e falou como um juiz, mas com a voz de um homem cansado:

— “Esta terra foi prometida por decreto imperial. E foi conquistada por enxadas, suor e luto. A marca da legalidade... está aqui.”

Ergueu o mapa selado com o brasão do império.

— “A partir deste dia, a Colônia Dona Isabel está reconhecida como núcleo agrícola de povoamento livre. Os lotes serão titulados em nome das famílias pioneiras. Quem tentar expulsá-los será julgado segundo a lei dos homens — e, se for o caso, também pela de Deus.”

Um murmúrio percorreu a multidão. Alguns choraram. Outros apenas fecharam os olhos.

Giacomo, que até ali permanecera imóvel, murmurou:
— “Vencemos sem matar ninguém.”

Mas Hans respondeu, com amargura:

— “Sim. Só enterramos os nossos.”

Na noite seguinte, alguém deixou uma carta anônima cravada na porta da casa de Alessandro. Uma frase apenas:

"A terra pode ter dono, mas o medo não tem cerca."

Não foi o fim do conflito — mas foi o fim da dúvida.

Fontoura fugiria para o Uruguai semanas depois, abandonando os capangas e a posse falsa. E quanto ao traidor dentro da colônia — Lisboa soube quem era. Mandou-o embora, discretamente, sob escolta. Nenhum nome foi dito. A paz custava mais caro que a verdade completa.

Nos dias seguintes, o som das enxadas voltou. Com mais força. Como se cada batida na terra fosse uma afirmação:

Estamos vivos. Estamos aqui. Esta terra é nossa porque a fizemos nossa.

Elvira plantou flores ao lado da cruz do pequeno Paolo. Matteo escreveu seu nome no batente da casa. Lucia voltou a cantar ao moer milho. E Pietro... Pietro passou a copiar cada página do seu caderno em outra letra, mais firme — para que, um dia, outros pudessem ler.

João Lisboa partiu com o sol nas costas. Ao despedir-se, entregou a Alessandro um pequeno envelope selado.

— “É o registro da posse legal. Assinado. Carimbado. Guardem bem — mas não para si. Guardem... para os netos.”

E montou no cavalo, desaparecendo entre as araucárias.

A colônia dormiu em paz naquela noite pela primeira vez em anos. Mas ninguém percebeu que, ao longe, o céu estrelado parecia mais limpo — como se até Deus respirasse aliviado.


Capítulo XI — Epílogo: Sob as Árvores do Tempo

O velho Pietro sentou-se devagar sob a sombra do pinheiro mais antigo da propriedade.

O tronco era grosso como três homens juntos. Os galhos erguiam-se como braços de gigantes, e o som do vento entre as agulhas fazia um murmúrio que lembrava vozes esquecidas. Ao seu lado, sua neta Clara, de apenas oito anos, segurava um caderno de capa vermelha.

— “Nonno, conta de novo a história da cruz de madeira...”

Ele sorriu. Os olhos, turvos pela idade, ainda brilhavam com aquele fogo que nem o tempo apagara. Tocou de leve o pingente que pendia do pescoço — uma pequena cruz de ferro oxidado que ele mesmo moldara com pregos antigos do galpão queimado.

— “Essa história não é minha, minha flor. É nossa. É da terra. É do sangue que regou o barro antes de ser solo fértil.”

E começou.

Contou sobre a viagem em porões apertados, sobre o suor colado nas tábuas do Vapor Roma. Falou do pai, Alessandro, que escrevia cartas como quem plantava sementes no coração dos que ficaram para trás. E da mãe, Lucia, que sorria mesmo depois de enterrar um filho no mar.

Descreveu o rosto de Giacomo, sempre sujo de lama e de coragem. E de Hans, que nunca abandonou ninguém, mesmo quando teve chance. Mencionou o Padre Giustino e sua fé que resistia às febres, às perdas, às pragas.

E falou de João Lisboa — o homem de farda que não usava espada, mas palavras.

Clara ouvia como quem recebia um tesouro invisível.

— “E depois, Nonno? O que aconteceu com a colônia?”

Pietro suspirou.

— “Ela cresceu. Virou cidade. Vieram escolas, igrejas, mercado. As casas de madeira deram lugar a paredes de pedra. Mas a raiz... essa nunca mudou.”

Apontou para o chão.

— “Está aí embaixo. Nas fundações. Nos ossos dos que ficaram. Nos nomes que demos às ruas. Nos que nunca foram embora — mesmo mortos.”

Clara anotava com cuidado. Escrevia com a mesma letra firme que o avô ensinara. Quando terminou, o sol já se escondia atrás das colinas. As sombras alongavam-se como velhos amigos voltando para casa.

Pietro se levantou com esforço. Olhou para o horizonte.

— “Promete que um dia você vai contar isso a alguém, Clara?”

Ela assentiu com os olhos grandes e sérios.

— “Prometo, Nonno.”

— “Então está feito.”

Naquela noite, Pietro adormeceu no quarto onde nascera. Ao lado da cama, repousava o caderno vermelho. Na última página, em caligrafia ainda infantil, lia-se:

“Esta terra foi conquistada com coragem, fé e lágrimas. E por isso, ela é nossa. Não porque a tomamos. Mas porque a amamos.”

Nota Histórica do Autor
Sobre "Liberdade de Cismon – Um romance de esperança, terra e destino"

Este romance de Piazzetta nasceu da memória coletiva de uma saga silenciosa, cujos protagonistas raramente aparecem nos livros de História. "Liberdade de Cismon" é uma homenagem aos milhares de imigrantes italianos que, entre o final do século XIX e início do século XX, deixaram para trás vilarejos empedrados, campos magros e promessas não cumpridas da recém-unificada Itália, em busca de um recomeço no sul do Brasil.

Alessandro Bellarossi é uma figura ficcional, mas sua jornada ecoa a realidade de incontáveis famílias oriundas do Vêneto, Trentino, Friuli e outras regiões italianas. A narrativa é ancorada em fatos históricos: a precariedade das viagens transatlânticas a bordo de vapores superlotados, os primeiros anos de colonização nas serras do Rio Grande do Sul, e o esforço hercúleo de transformar mata virgem em lavouras, barracos em lares, sobrevivência em futuro.

A Colônia Dona Isabel — atual Bento Gonçalves — foi uma das mais importantes experiências de colonização italiana no Brasil, marcada tanto por dureza quanto por esperança. Os registros utilizados para a construção deste romance foram coletados a partir de cartas reais de imigrantes, relatos orais de descendentes, atas administrativas imperiais e memórias comunitárias preservadas em arquivos municipais e centros culturais da Serra Gaúcha.

"Liberdade de Cismon" não pretende ser apenas um relato histórico, mas sim uma ponte entre passado e presente — entre a saudade dos que partiram e a força dos que ficaram. Ao dar voz a personagens que nunca existiram oficialmente, mas que viveram em cada gesto de quem lavrou, chorou e sonhou sob o céu sul-brasileiro, este romance deseja lembrar ao leitor que a liberdade, tantas vezes negada na terra natal, encontrou raízes em solo estrangeiro — e que delas nasceram não apenas colônias, mas também identidades, culturas e legados que perduram.

— O Autor